Estudos da AIL em
Ciências da Linguagem:
Língua, Linguística, Didática
Estudos da AIL em Ciências da Linguagem: Língua, Linguística, Didática
1ª edição: novembro 2015
Roberto Samartim, Raquel Bello Vázquez, Elias J. Torres Feijó e Manuel Brito-Semedo (eds.)
Santiago de Compostela - Coimbra, 2015
Associação Internacional de Lusitanistas
CDU: 80 Linguística. Filologia. 811.134.3 Português.
© 2015 AIL Editora
Diagramacão e capa: Rinoceronte Servizos Editoriais
Os textos foram submetidos a dupla avaliação anónima e aprovados para a sua posterior publicação.
Estudos da AIL em
Ciências da Linguagem:
Língua, Linguística, Didática
Roberto Samartim
Raquel Bello Vázquez
Elias J. Torres Feijó
Manuel Brito-Semedo
(eds.)
Associação Internacional de Lusitanistas (AIL)
Índice
Nota do Presidente da AIL.Genius Loci: a AIL em Cabo Verde
Nota do Presidente da Comissão Organizadora
Fraseologia na Índia portuguesa de seiscentos: o testemunho de O Soldado Prático de Diogo do Couto
Universidade Federal de Minas Gerais
Diversidade, desigualdade, diferença: línguas, política de línguas e memória
Tantas Vozes, Tantos Olhares: Mostra de Línguas, Literaturas e Artes no Campus Juiz de Fora
Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais
Linguagens na tela: o impacto da linguagem digital sobre a concepção de escrita
Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter
Elizangela Patrícia Moreira da Costa
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Espaço geopolítico em tradução semiótica
Instituto de Estudos Românicos, Faculdade Letras da Universidade Carolina
Dobras da e na Língua: de Pessoa a Pessoa
Universidade Federal Fluminense
Perceção de variantes dialetais do Português europeu continental: um estudo exploratório
Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes
Verbo-visualidade e argumentação em discursos jurídico-processuais
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Maria Teresa Vilardo Abreu Tedesco
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
O tratamento morfossintático dos substantivos de origem portuguesa no tétum-praça
Universidade Jaguelónica de Cracóvia
Os diminutivos no português europeu e no português do Brasil. Um estudo quantitativo
Universidade Jaguelónica de Cracóvia
Ensino de vocabulário na aula de Português Língua Estrangeira
Novas perspetivas sobre o papel do português na revitalização do galego nos primórdios do século XXI
Nota do Presidente da AIL.
Genius Loci: a AIL em Cabo Verde
O que significou para a AIL a organização do congresso no Mindelo em 2014? Não foi só o primeiro congresso em África da Associação que marca assim a sua projeção sempre mais global, ampliando o eixo Europa-América historicamente sedimentado, ao comemorar os 30 anos da sua bem enraizada história.
As novidades da virada foram multíplices: uma nova governância, outros papéis diretivos, novos projetos a inaugurar entre os quais uma plataforma -a plataforma9- com que estreitar no quotidiano as relações com os associados durante anos. Foi sobretudo a ocasião de um contacto intenso com Cabo Verde, São Vicente com o Mindelo cultural, musical e literário e Santo Antão, a ilha dos Flagelados do vento leste de Manuel Lopes, magnífica em seu perfil natural, áspero e encantador. Quem participou do evento da AIL vai conservar longamente a memória daquela paisagem ventosa e seca que expõe os marcos visíveis de uma luta inexaurível entre história e natureza.
A paisagem, no entanto, foi só um dos ingredientes melhores que tornaram única a experiência de Cabo Verde. Um outro foi certamente o contexto do Liceu Velho no Mindelo. Património vivo agora da Universidade de Cabo Verde, por lá passaram alunos como Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Teixeira de Sousa, Aristides Lima, e professores como Adriano Duarte Silva, Alberto Leite, Baltasar Lopes da Silva, José Alves Reis. A “Claridade” estava lá, com todas as suas projeções ainda tão vivas, vozes que ressonam e versos que encontram um referencial inesperado.
Deste ponto de vista a Universidade de Cabo Verde foi uma parceira e uma anfitriã imensurável que não poupou esforços, ciente que se tratava de uma ocasião para valorizar Mindelo como futuro centro de congressos científicos internacionais da complexidade do XI Congresso da AIL. A sensação forte que se sentia naqueles dias é que todo o arquipélago estava presente ao acompanhar os trabalhos da AIL. Por isso foi importante como a direção presidida por Elias Torres Feijó fez brilhantemente, organizar um congresso sólido do ponto de vista científico, sempre com as garantias de qualidade que se tem instaurado como boa prática permanente na atividade científica da AIL e que pudesse de certo modo também criar um marco. E assim foi.
A AIL, em suma, conseguiu e muito bem, inclusive através da sua programação de conferências, comunicações e momentos institucionais, interpretar o genius loci, o espírito do lugar, as suas atmosferas mitológicas e os seus rastos simbólicos que se misturam à dura história do arquipélago e de seus muitos passados coloniais, um espírito palpável e bem reconhecível na ilha.
É por isso que os estudos que se reúnem neste volume, reelaborados pelos autores depois dos debates públicos que ocorrem com as apresentações, são muito mais do que uma simples coleção de relevantes trabalhos que renovam muitos aspetos das disciplinas plurais que constituem o riquíssimo perfil da AIL hoje. É muito mais a concretização de uma memória comum que construimos num contexto tão especial, uma património que a AIL conservará dentro da própria já larga história. África é um dos muitos horizonte a que a AIL presta particular atenção: o nosso objetivo é fortalecer e disseminar sempre mais a vida da associação neste continente de imaginários e culturas singulares. Este é mais um começo. Não por acaso, entro no Conselho assessor da Associação o primeiro representante do continente, Manuel Brito-Semedo da Universidade de Cabo Verde.
São muito os agradecimento que restam de um contacto como este. Seria impossível lembrá-los todos e portanto escolhemos um nome coletivo que de certo modo todos os representa. Trata-se da Reitora da UNCV, Judite Nascimento: ela desempenhou um papel essencial para amparar institucionalmente o Congresso. E sempre acreditou na parceria com AIL como forte instrumento de internacionalização da sua Universidade. A AIL em Cabo Verde inaugurou uma relação que estes volumes confirmam e fortalecem.
Roberto Vecchi
Presidente AIL (2014-2017)
Nota da Comissão Científica
O XI Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, celebrado no Mindelo, em Cabo Verde, serviu para referendar a prática estabelecida no X Congresso consistente na submissão dos textos integrais das comunicações antes da celebração do congresso, para eles serem avaliados e aprovados por pares cegos. Depois os textos passaram a estar acessíveis para as pessoas participantes no site do evento, e uma vez revistos por seus autores e autoras eles são agora publicados nesta coleção de livros temáticos.
Por um lado, este sistema contribuiu para aumentar a qualidade dos textos apresentados; por outro, possibilitou acompanhar as mudanças no campo científico e nos sistemas de valorização da produção académica, evoluindo do velho conceito de anais de congressos para coleções temáticas, mais perfiladas em relação ao público-alvo em função de interesses investigadores específicos. Estas coleções garantem às pesquisadoras e pesquisadores um resultado que responde aos critérios científicos exigidos pelas suas instituições, maior divulgação e a possibilidade de fazer circular o seu trabalho em formato digital, com todas as garantias da avaliação por pares.
Deve ser reconhecido nesta apresentação o trabalho das pessoas que integraram, na condição de avaliadoras, a Comissão Científica, as quais generosamente disponibilizaram o seu tempo e o seu trabalho para avaliar em tempo muito reduzido e com elevado rigor todas as propostas apresentadas. Igualmente, às autoras e aos autores, que assumindo o processo proposto pela AIL, entregaram para a publicação trabalhos de alta qualidade científica, de grande diversidade temática e metodológica.
Esta coleção tem a vontade de oferecer uma panorâmica do mais avançado que está a ser produzido no âmbito dos estudos de língua portuguesa. Estes caraterizam-se cada vez mais pela abertura à interdisciplinaridade e pela incorporação de tópicos inovadores e menos explorados. A variedade destes novos estudos na lusitanística ficam recolhidos na publicação desta segunda série de livros temáticos que nascem com vocação de um rápido e duradouro impacto.
Raquel Bello
Coordenadora da Comissão Científica
Nota do Presidente da Comissão Organizadora
Como responsável, na qualidade de Presidente da Comissão Organizadora do XI Congresso da AIL e dos livros temáticos que agora se apresentam, juntamente com o Secretário Geral, Prof. Dr. Roberto Samartim, e a colega
coordenadora da Comissão Científica, Profa. Dra. Raquel Bello Vázquez, é o nosso desejo deixar aqui uma palavra de agradecimento a todas as pessoas que colaboraram neste processo que hoje acaba com a presente publicação. Particularmente, aos membros das Comissões Organizadora, Científica e de Honra; ao Prof. Dr. Manuel Brito Semedo, coordenador da Comissão Executiva, e a todas as pessoas e entidades, académicas, institucionais, públicas e particulares, que apoiaram o seu desenvolvimento, com especial destaque para o antigo Reitor da Universidade de Cabo Verde, Prof. Dr. Paulino Fortes, e a atual Reitora Profa. Dra. Judite Nascimento.
Pedimos também desculpa polo retraso na saída desta edição, prevista no seu momento para não ir além do primeiro trimestre do ano 2015. Circunstâncias totalmente alheias à vontade da AIL e relativas às parcerias institucionais previamente fixadas pola nossa organização que, finalmente, não se concretizaram, provocaram esta demora, que resolvemos não prolongar mais para não aumentar o prejuízo às pessoas que participam nestes volumes, a quem expressamos a nossa gratidão pola confiança em nós depositada.
Com os meus melhores desejos
Elias J. Torres Feijó
Fraseologia na Índia portuguesa de seiscentos:
o testemunho de O Soldado Prático de Diogo do Couto
Ana María García Martín
Universidad de Salamanca
(Espanha)
Poucos são ainda os recursos disponíveis para o estudo histórico da fraseologia portuguesa, âmbito disciplinar que, entre outros objetivos, permitiria a elaboração de um dicionário fraseológico histórico, isto é, uma obra de conjunto que compilasse as unidades fraseológicas —em adiante UFs— atuais e pretéritas do português, oferecendo abonações históricas delas e analisando, na medida do possível, a sua cronologia, processo de fixação e de conformação semântica. Um trabalho de tal magnitude não possuiria valor apenas para o melhor conhecimento de um aspeto lexical crucial da língua portuguesa, como é o seu sistema fraseológico, mas resultaria também indispensável para o filólogo e editor de textos antigos e clássicos. Como editora de textos literários portugueses clássicos, tenho-me deparado com frequência com enunciados fraseológicos de difícil interpretação, por vezes desconhecidos da língua portuguesa contemporânea, sem ter podido recorrer a uma obra que me fornecesse, quanto menos, outras abonações da mesma UF que me permitissem uma mais idónea interpretação do seu valor semântico. Enquanto se provê um tal recurso, que sem dúvida exige uma dedicação exaustiva e demorada, os trabalhos parciais sobre a fraseologia de obras literárias de tempos pretéritos poderão ir oferecendo informação valiosa sobre numerosas UFs, assim como sobre a mesma metodologia a ser desenvolvida para o seu estudo. A época clássica parece fundamental para a conformação do corpo lexical fraseológico português e interessa determinar qual terá sido o papel desempenhado pelos autores literários nesse processo histórico-linguístico. Este é o trabalho que propomos nesta comunicação, centrando o nosso escopo numa obra literária seiscentista de uma riqueza excecional em enunciados fraseológicos: O Soldado Prático do cronista da Índia portuguesa Diogo do Couto.
1. Escrito progressivamente nas últimas décadas do século XVI e até finais de 1611, O Soldado Prático é a obra mais pessoal do historiógrafo da Índia portuguesa, aquela que melhor reflete as suas preocupações sobre a antiga colónia e, junto com as Décadas, a que lhe granjeou maior fama[1]. Estruturada em forma de diálogo, género habitual na época para a especulação sobre as mais variadas matérias, a voz experiente do velho soldado apodera-se de quase toda a obra, conciliando um discurso erudito —abundante em abonações clássicas greco-latinas— com um tom coloquial que pretende reproduzir a dinâmica oral da conversa. Ora, um dos maiores acertos estilísticos da obra é o frequente recurso a locuções e idiomatismos que a salpicam da cor local do português falado em Goa em finais que quinhentos e inícios de seiscentos. A nossa contagem permitiu-nos estabelecer um corpus de cerca de 80 possíveis UFs, trabalhando com um critério de definição da unidade fraseológica que inclui a locução oracional, mas que exclui as parémias e provérbios[2].
Ora, este é o primeiro desafio que se coloca ao investigador que enceta o estudo das UFs de um texto literário: que critério aplicar para o reconhecimento e seleção das mesmas. São várias as caraterísticas com que podem ser definidas as UFs, como a pluriverbalidade, a idiomaticidade ou a fixação, entre outras[3], embora nenhuma delas lhes seja privativa. Assim, a primeira caraterística mencionada, a pluriverbalidade, é compartilhada também por locuções como parémias e provérbios, e ainda por colocações, provocando sérias dificuldades de delimitação entre elas[4]. Tradicionalmente, a idiomaticidade tem sido considerado como o traço mais definidor das UFs, isto é, o seu frequente significado translato ou metafórico, não deduzível a partir dos significados próprios das várias palavras que as constituem. Todavia, este traço tem sido questionado nos trabalhos mais recentes, tanto pelo facto de não ser exclusivo das UFs[5], como também por mostrar-se nelas em grau diverso[6]. Assim, a fixação adquire hoje o estatuto de traço mais relevante para a determinação de uma UF, isto é, o facto de tratar-se de uma combinação fixa e estável de palavras que, como resultado de uma evolução histórica, deixou de constituir uma construção livre e adquiriu uma forma fixa e um significado específico, condensados pela repetição[7].
Ora, a fiçaxão das UFs de um texto histórico pode confirmar-se por diferentes vias. Assim, em O Soldado Prático é por vezes confirmada pelo próprio autor, que acrescenta às UFs uma fórmula de inserção consistente num comentário metalinguístico que dá conta da sua recorrência no português falado na Goa do seu tempo, habitualmente “como lá dizem” ou “como dizem as velhas”[8]:
O bom é vir rico, porque então vos bailam as trepeças, como lá dizem; (71)
Também são sujeitos a paixões e infirmidades, pelo que não pode ser estarem a todo o tempo à pá, como lá dizem. (79)
Algũa rezão tendes nisso, mas são cousas essas que se não podem escusar, porque, como lá dizem, faço-te a barba, por que me faças o cabelo. (81)
[...] mas cuidam que cobrem o céu com ũa joeira, como dizem as velhas. (92)
[...] porque a Casa dos Contos é o prugatório dos feitores e tisoureiros da Índia, e onde também há dela e dela, como lá dizem. (144)
Ora se el-rei tirasse os cargos das mãos dos juízes, por cuidar que faziam sem-justiças e que recebiam peitas, e os metesse nas mãos dos vizo-reis, cudando que ficava o negócio mais puro, por certo que se engana, porque lhe dará com isso um ninho de guincho, como lá dizem; (191-192)
Não sei se tenho talento pera tanto; mas pois me Vossa Mercê disse que era serviço d’el-rei, farei, como lá dizem, das tripas coração, e tirarei forças de fraqueza. (252)
Um outro indício da fixação de uma UF é a sua repetição no próprio texto literário analisado, sempre que conserve a unidade formal e semântica. Isto acontece em O Soldado Prático com várias locuções, como tirar a terreiro, untar as rodas, dar com (alguma coisa) de pernas acima, ir à mão ou cair nas mãos, o que nos permite acreditar o seu estatuto de UF na língua da época. O reconhecimento da UF é imediato também quando ela se conserva vigente no português contemporâneo e pode comprovar-se nos dicionários de referência[9]. Assim acontece, no texto em análise, com as UFs[10] untar as mãos, levantar a lebre, cobrir o céu com uma joeira, pôr os pés, tirar a limpo, pagar o pato, abrir mão de, untar as rodas, ser uma lima surda, meter a fouce na messe alheia, tapar as bocas, lançar as barbas em remolho, um ninho de guincho[11], aos olhos vistos, ver a água pela barba[12], por fás e por nefas, fazer das tripas coração, tirar forças de fraqueza, às rebatinhas, à formiga, são como um pêro ou a peso de ouro, cujos contextos de ocorrência mostramos a seguir:
E Deus sabe por onde se foi este dinheiro e por onde se consumiu, porque sempre a mor parte dele vai em dívidas velhas, de que adiante tratarei, e estes repartidos por mãos de seus apaniguados e criados, que todos ficam com elas bem untadas. (85)
Vossa Mercê é que alevanta a lebre para eu correr, que bem desejo eu de passar por algũas cousas que têm bem escandalizado o mundo, e essa que Vossa Mercê tocou mais que todas. (86)
[...] mas como eles nas mais destas cousas cuidam que enganam a Deus e ao rei, andam tão ensaiados em certas cousas com que cudam que o fazem que pasmo de como não caem nisso; mas cuidam que cobrem o céu com ũa joeira, como dizem as velhas. (92)
E o que pior é que cudam estes senhores, como põem os pés na Índia, que o mundo é só pera eles e que tudo é seu, e que o empréstimo que os outros lhe fizeram lho deviam por fidalgo. (104)
E coitada da Justiça, em que poder se vê! Porque o que compra a vara há-de tirar a limpo o que deu por ela e o com que se há-de sostentar três anos, e inda há-de ajuntar pera quando vier outro vizo-rei acudir àquela galhofa; (110)
[...] e a qualquer que chegam com a vara na mão, são os compadres tantos, os empréstimos pera China, as peças e presentes, que não cabem em casa; e mal pelo que não tem que dar, que esse é o que vem pagar o pato! (110)
[...] de maneira que, pelas devassidões e injustiças que contei, parece que abre Deus Nosso Senhor sua mão daquele Estado, [...] (116)
E há alguns tão correntes nisto que levam provisões pera devassarem dos oficiais das alfândegas e capitães mouros das naus, no que lhe untam as rodas de feição que nenhum oficial, por culpas graves que tenha, o vedes castigar, e todos são soltos e livres. (137)
Mas pior! Saiba Vossa Mercê que isso é ũa lima surda e um cano por onde se vaza a mor parte da fazenda do rei, (140)
Que os vizo-reis tratam do que lhes releva; e, o que é muito pera notar, que dexam estas cousas, que são de tamanha obrigação sua, e metem a fouce na messe alhea; por que assi vão as cousas de mal em pior. (168)
[...] e fazei-me mercê que lho não consintais e vereis se vos tapam as bocas e se vos pagam vossas ordinárias! (169)
Por isso cada um lance as barbas em remolho, que tarde ou cedo hão-de pagar os males que fizeram e os juramentos que tão facilmente quebraram. (185)
Ora se el-rei tirasse os cargos das mãos dos juízes, por cuidar que faziam sem-justiças e que recebiam peitas, e os metesse nas mãos dos vizo-reis, cudando que ficava o negócio mais puro, por certo que se engana, porque lhe dará com isso um ninho de guincho, como lá dizem; (191-192)
[...] não querem os escrivães diante deles senão que se faça auto e tirem testemunhas, e que corra judicialmente, no que òs olhos vistos roubam aos mesquinhos, sem nunca se prover nisto. (212)
Ele está nos céus, e não dorme; medo hei que venhamos todos a pagar e que os que andarmos naquele Estado vejamos ainda a água pela barba, sem nos podermos valer. E já vou titubeando de paxão, e não atino com o que digo; por isso dêem-me Vossas Mercês licença, porque me quero recolher. (226)
[...] o que não há nos nossos vizo-reis, que, tanto que são eleitos, logo se lhe ajunta um exército de parentes e criados, que nem três estados da Índia bastam pera eles, e todos são acomodados por fás e por nefas; e os anos que governam fazem as cousas que tenho relatadas em toda esta prática. (228)
Não sei se tenho talento pera tanto; mas pois me Vossa Mercê disse que era serviço d’el-rei, farei, como lá dizem, das tripas coração, e tirarei forças de fraqueza. (252)
E, com eu avisar a alguns amigos disso, não que dom têm estes homens sobre o dinheiro alheo, que andam às rebatinhas a quem lho dará primeiro, e inda para lho tomarem os peitam. (264)
[...] batem logo lá na terra firme grande cantidade de bazarucos, e, à formiga, a metem em Goa, na qual ganham um poço d’ouro, porque inda a fazem mais pequena. (269)
[...] pagou depois os ordenados a seus herdeiros e da desobediência ficou tão são como um pêro. (277)
[...] pois o que tantos cobiçaram e que vos compraram a peso d’ouro, estimais tão pouco que estais arrependidos de vos terdes penhorado em cousa tamanha! (298)
Mas no corpus fraseológico fornecido por O Soldado Prático deparamo-nos também com UFs desconhecidas da língua contemporânea ou, pelos menos, não documentáveis nos dicionários de referência utilizados. Assim acontece com casos como ter para pouco, cair a pêlo, mudar o vinte para outra cama, bailar as trepeças, estar à pá, ser em sua mão, fazer a barba por que me faças o cabelo, rogar más Páscoas, cair nas mãos, chegar às orelhas, tapar os olhos aos cegos, fechar-se a cinco portas, saber a pancada ao vinte, dar na estocada, furtar a água, haver dela e dela, correr pela mão, achar menos, não dar uma palha, ir à mão, viver polo saco ou buscar na ribeira o que caiu no pego, cujos contextos de ocorrência se mostram a seguir:
[...] o que se tem por tamanha infâmia que o prove a que isto acontece não ousa de aparecer ante aqueles do seu tempo, porque ou hão que o tiveram para pouco, ou que lhe não acharam merecimentos para o despacharem. (p. 62)
Nunca cousa me caiu mais a pêlo que essa, porque toda esta noite estive cuidando no pouco segredo que na Índia se tem, assi nos conselhos árduos da guerra, como nos da justiça e fazenda; [...] (p. 63)
[...] mudou-se o vinte a outra cama: já as armadas se fazem por comprimento, sem tempo e sem ordem; os soldados andam clamando; as casas que em Goa havia d’esgrima tornaram-se em escolas de dançar e ensinar moças; (68)
O bom é vir rico, porque então vos bailam as trepeças, como lá dizem; tudo achais fácil, rogam-vos pera tudo e vós não rogais para nada, e inda para aquilo que desejais vos chamam; que esta calidade tem o dinheiro, com outras muitas cousas que calo. (71)
Também são sujeitos a paixões e infirmidades, pelo que não pode ser estarem a todo o tempo à pá, como lá dizem.(79)
[...] que culpa dareis ao despachador, se não foi em sua mão mais, nem as cousas deram outro lugar? (80)
Algũa rezão tendes nisso, mas são cousas essas que se não podem escusar, porque, como lá dizem, faço-te a barba, por que me faças o cabelo. (81)
Por essa conta rogarei muito más Páscoas a meu pai, que na mocidade me trouxe no paço, servindo el-rei de tocha e prato e dormindo pelas caxas de sua guarda-roupa;(81)
Que com as mãos sobre o missal promete de guardar os previlégios da cidade e na primeira cousa que lhe cai nas mãos põe os pés por cima de tudo e não guarda senão o que lhe releva! (87)
[...] que sempre têm lá com os feitores seus tratos e lhe lançam certas matrículas, que eles fazem com muito gosto, porque lhe hão-de cair nas mãos, a uns para os descontos e a outros pera darem suas contas. (144)
Isso passa dessa maneira? Por certo que estou espantado de quanta cousa lá vai sem cá se saber, nem se temerem os governadores que poderá isso algũa hora chegar às orelhas d’el-rei! (91)
E como isto é já com o pé no estribo, ninguém lhe sai, e então lhe passam os escrivães mil certidões dos tais escritos, com as quais vão tapar os olhos aos cegos, ficando toda a Índia escandalizada e por pagar deles e de seus criados. (92)
Mas agora, por gravidade, a que eu quisera pôr outro nome, se fecham os governadores a cinco portas, por furtarem o corpo a negócios alheos, para entenderem só nos seus. (101)
[...] porque o que não sabe a pancada ao vinte nem a moeda que corre, quer-se negociar ordinariamente apresentando sua petição, que é logo remetida ao secretário, a qual, como lá cai, é como alma perdida; porque, como os governadores e vizo-reis deram nesta estocada, e por aqui detreminaram enriquecer os seus, furtarão também a água ao secretário, e, quando vai com seus papéis, não lhe falam a prepósito às petições das partes. (102)
Mas com estes os desculpo, porque se isto não fizerem, coitados deles, que lá hão-de ir purgar suas culpas; porque a Casa dos Contos é o prugatório dos feitores e tisoureiros da Índia, e onde também há dela e dela, como lá dizem. (144)
Mas quem há que possa dar melhor informação disto que Sua Mercê, que cursou na Índia muitos anos de capitão, capitão-mor, e depois de governador da Índia, diante de quem todos os negócios se trataram? Estes e todos os mais lhe correram pela mão, junto ao diferente juízo que do meu tem, por sua ilustre geração e diferente criação. (147)
E pode ser socede isto em conta de feitor morto que estivesse por tomar; e se os herdeiros a quiserem acabar, acharão os tais papéis menos, que podiam ser de muita contia. (161)
Hei-de dizer esta verdade, e tenham-no Vossas Mercês por temeridade, e custe-me o que me custar: que não lhe dá aos ministros de cá e de lá mais da Índia que daquela palha que ali está; (166)
Azarias, rei de Jerusalém, por querer também tomar o ofício de sacerdote, lhe foi à mão o pontífice Azarias com os sacerdotes, os quais ele ameaçou; (170)
E o criado do vizo-rei, que bateu o seu cobre, fica com os cinco e seis mil cruzados de ganho; e se lhe quereis ir à mão e dizeis que não pode bater aquela moeda, ri-se de vós e zomba de todos. (269-270)
[...] o mais farei o que alguns fizeram: darei sentença por quem me mais der, e não curarei de ver Bártolo nem Baldo, porque isso será viver polo saco e estar amarrado ao prove do ordenado; e eu desejo de ter logo em três anos vinte mil cruzados. (209)
[...] porque o capitão que com mão fechada quer conquistar províncias, é ir buscar pela ribeira acima o que lhe caiu no pego. (234)
Apesar de não ser possível documentá-las em dicionários de referência do português contemporâneo, por vezes podemos encontrar registo de algumas dessas UFs em dicionários históricos do português, assim como em repertórios de parémias ou provérbios, onde não raro eram indexadas. Isto acontece, entre as mencionadas, com achar menos, registada no Vocabulário Portuguez, e Latino do P. Bluteau, onde é definida como “Achar que falta alguma cousa”[13], significado com que ocorre no texto coutiano. Também regista Bluteau a locução saber a pancada ao vinte, que define assim: “Diz se proverbialmente de quem sabe bem o seu negocio, & não se deixa facilmente enganar.”. Algumas das UFs referidas representam reconhecíveis variantes epocais de outras que ainda existem na língua contemporânea: é o caso de ter para pouco —hoje ter em pouco—, ser em sua mão —hoje estar nas suas mãos—, cair a pêlo —hoje vir a pelo— ou chegar às orelhas —hoje chegar aos ouvidos—.
Nos restantes casos, em que a ausência de outras abonações conhecidas dificulta o reconhecimento da UF, e em que carecemos de evidências sobre ela em obras metalinguísticas coevas como dicionários, gramáticas epocais, coleções de provérbios, etc., será o significado não literal, isto é, idiomático, da locução, o que permitirá alertar o investigador para o seu provável estatuto fraseológico. A opacidade semântica da locução poderá ser, nesses casos, muito diversa, dependendo do seu grau de motivação, e portanto a dificuldade de interpretação do seu valor semântico será também muito variável[14]. No caso das possíveis UFs acima referidas, algumas apresentam uma mais fácil interpretação semântica, como estar à pá ‘trabalhar’, fazer a barba por que me faças o cabelo ‘ajudar-se reciprocamente’, rogar más Páscoas ‘amaldiçoar’, cair nas mãos ‘ter a oportunidade’, tapar os olhos aos cegos ‘não enganar ninguém, ser evidente’, fechar-se a cinco portas ‘esconder-se da vista pública’, haver dela e dela ‘haver muito’, correr pela mão ‘ter à mão a oportunidade’, não dar aquela palha que ali está ‘não importar nada’, dar tudo cosido ‘explicar tudo claramente’, falar na pele de alguém ‘falar em alguém’, ficar o jogo na mão ‘ter uma oportunidade para agir como se quer’, cair nũa cousa ‘compreender’ ou ir buscar na ribeira o que caiu no pego ‘querer o impossível’. Pelo contrário, são semanticamente mais opacas UFs como bailar as trepeças, dar na estocada, mudar o vinte para outra cama ou viver polo saco, embora o seu valor semântico aproximado possa deduzir-se do contexto em que aparecem. Nestes casos, o evidente valor metafórico da expressão assegura-nos tratar-se de uma UF, faltando encontrar outras abonações da mesma em textos coevos para poder contribuir ao seu melhor conhecimento como UF histórica do português. Contudo, nem todas as expressões com significado translato que podemos encontrar nos textos literários estariam institucionalizadas[15], havendo casos que constituem criações originais do autor, resultado do seu recurso à metáfora no discurso livre. Também nesses casos, apenas o estudo de outras obras literárias da mesma época poderá garantir se a possível UF se encontrava fixada ou bem se se trata de uma criação original e livre do autor. Por exemplo, o autor de O Soldado Prático usa as expressões ao som de campãs tangidas e ao som de trombetas para exprimir como na Índia portuguesa não se guarda o segredo devido dos negócios:
Já’gora na Índia, nem inda neste vosso Portugal, há já discípulos de Pitágoras que guardem silêncio, porque tudo o que se faz é ao som de campãs tangidas; os segredos dos conselhos pelas praças ao som de trombetas, e assi as mais cousas. (67)
Igualmente, para referir o ócio ao que se votam os dirigentes coloniais, Couto serve-se por duas vezes da expressão à perna alçada, associada com outras imagens, como a de comer frutos deliciosos. Vejam-se os trechos onde ocorrem estas imagens:
E assi fica gastada a vida toda sem lograr aquilo que estoutros que digo, à perna alçada, em quintãs compradas com o suor de meus trabalhos, estão há muitos anos logrando. (82)
Digo, senhor, que estava isso muito bem, se nesse tempo não saísse despachado o criado do mordomo-mor, que nunca serviu el-rei, o do veador da fazenda, o do secretário, o do conselheiro e o apaniguado de Vossa Mercê e outros muitos desta estofa, que, com as mãos na cinta e a perna alçada, comendo os mira-olhos e figos berjaçotes, levam o melhor da Índia; senão quanto a estes lhe serve a minha petição, que está em poder do despachador, de alvítere para pedirem o que nela tenho apontado. (80)
Também a expressão com o pé no estribo é usada por Couto iconicamente para exprimir ‘a ponto de sair’:
E como isto é já com o pé no estribo, ninguém lhe sai, e então lhe passam os escrivães mil certidões dos tais escritos, com as quais vão tapar os olhos aos cegos, ficando toda a Índia escandalizada e por pagar deles e de seus criados. (92)
Deparamo-nos nesses casos com simples imagens construídas pelo autor ou estamos perante possíveis enunciados fraseológicos? Apenas outras abonações em obras coevas podem garantir tratar-se de UFs, como vimos reiterando, porque, nem toda a metáfora ou a imagem usada por um autor constitui um idiomatismo, embora elas estejam habitualmente na origem deste.
2. O abundante corpus fraseológico fornecido por O Soldado Prático obriga a perguntar-nos qual é o valor que a fraseologia cumpre na construção do discurso literário da obra. Habitualmente considera-se que a maior parte das UFs pertencem a um registo coloquial ou familiar, razão que bem pode justificar o seu abundante uso numa obra dialógica onde se pretende refletir o registo oral conversacional. Assim, são várias as UFs que servem ao autor para retratar a dialética viva que trata de criar entre as personagens que fazem parte do diálogo, como cair a pelo, tirar a terreiro, dar tudo cosido, levantar a lebre, tocar a tecla de ou molhar sopas. Cair a pelo significa ‘vir a propósito ou a calhar um tema na conversa’. Na verdade, trata-se de uma variante de vir a pelo, forma documentada por Bluteau e que ainda se mantém na língua contemporânea[16]:
Nunca cousa me caiu mais a pêlo que essa, porque toda esta noite estive cuidando no pouco segredo que na Índia se tem, assi nos conselhos árduos da guerra, como nos da justiça e fazenda; (63)
A expressão tirar a terreiro significa ‘desafiar a entrar na discussão’, sendo usada várias vezes na obra, assim como a variante trazer a terreiro:
Oh! Vossa Mercê quer-me tirar a terreiro de novo? Digo que sobre isso darei trezentos gritos. (184)
Segundo explica Bluteau (s.v. Terreiro), extrapola-se aqui ao âmbito dialético uma imagem da luta, procedente da antiga Roma[17]:
“Tirar a terreiro. Parece metafora, tomada destas frases Latinas, Vocare in arenam, descendere in arenam, etc. fundadas en que antigamente nos Amphiteatros de Roma, Arena, ae. Fem era o Terreiro, semeado de area, em que pelejavão os gladiatores; & entre nòs Tirar a Terreiro, val quasi o mesmo, que Desafiar, provocar, & obrigar a brigar, ou contender sobre algua causa.”
A UF dar tudo cosido é usada pelo velho soldado para replicar aos seus interlocutores pela clareza com que o obrigam a falar:
Muitas vezes me quer Vossa Mercê tirar a terreiro sobre as desordens dos vizo-reis! Mas que estivera presente o papa, ora quero-vos dar tudo cosido, pois não acabais de cair nestas cousas. (191)
Levantar a lebre significa ‘abrir um tema na conversa’. Trata-se de uma UF documentada por Bluteau e nos dicionários contemporâneos, que é usada neste contexto específico com o valor mencionado:
Vossa Mercê é que alevanta a lebre para eu correr, que bem desejo eu de passar por algũas cousas que têm bem escandalizado o mundo, e essa que Vossa Mercê tocou mais que todas. (86)
Com o mesmo sentido, ‘tratar um tema’, é usada tocar a tecla de:
A isso me não posso ter, já que Vossa Mercê tocou a tecla dos alvíteres, que não descubra o segredo deles, que pela ventura nunca chegou ao rei nem aos despachadores, pera mandarem prover em ũa cousa tão injusta e tanto contra a fazenda do mesmo rei. (93)
Já para interromper o tema da conversa, serve-se o velho soldado da UF dobrar a folha:
Enfim, senhores, que se houver de trazer todas estas cousas, será um infinito, porque infinito é o poder que os vizo-reis têm tomado. O bom é dobrar aqui a folha, porque toca a muitos.
Finalmente, o autor de O Soldado Prático faz um jogo de palavras a partir de uma UF que é molhar sopas, que significa no contexto ‘haver muitos assuntos para tratar, para conversar’, e que podemos considerar variante da atual molhar a sopa[18]:
Ora veja Vossa Mercê que tal anda o serviço d’el-rei e suas armadas como andam arriscadas. Deixo outras muitas sopas que se molham nesta porçalana de mel da fazenda do rei, que são infinitas, em que entram os oficiais da matrícula e dos contos, que sempre têm lá com os feitores seus tratos e lhe lançam certas matrículas, que eles fazem com muito gosto, porque lhe hão-de cair nas mãos, a uns para os descontos e a outros pera darem suas contas. (144)
3. Mas o recurso a frequentes idiomatismos explica-se também em O Soldado Prático pela função icónica das UFs[19]. Assim acontece quando o autor se refere ao roubo constante praticado por diferentes autoridades da Índia portuguesa. Nesses fragmentos, as UFs escolhidas têm um papel claramente expressivo, aportando, através do valor icónico das imagens de que resultam, um reforço na argumentação do velho soldado. Assim, nada menos que três vezes é usada pelo autor a UF levar pelos / nos ares, que tem o significado de ‘sumir, desaparecer’:
Morreu o homem ab intestado, não tem herdeiros, pertence sua fazenda à Coroa: esta logo é repartida e levada pelos ares, sem o rei dela ver um tostão. (94)
Deu o feitor ou almoxarife conta, ficou devendo quatro mil cruzados à fazenda do rei: primeiro que a conta se encerre, já o camareiro tem o alvítere e a provisão deles, que os leva pelos ares. (95)
O rendeiro d’alfândega que no cabo de seu arrendamento ficou devendo dez mil cruzados, são seus fiadores levados nos ares, porque dũa banda lh’afuzila o sobrinho do governador c’ũa provisão de mercê de três mil, da outra o camareiro com dous mil, da outra por outra via outros tantos, e assi em dous dias não fica pedra sobre pedra dos proves fiadores. (95)
Com o mesmo significado é usada a UF dar a tormenta em:
Morreu o feitor sem dar conta: lançam-lhe mão de sua fazenda; primeiro que saibam se a deve ao rei, deu a tromenta nela: pera ũa parte vai o dinheiro que se acha, pera outra os bens de raiz, para a outra os escravos e as jóias, de sorte que a prove da molher fica posta na rua, e seu marido, se lhe tomaram conta, não devia nada; (95)
Mais expressiva ainda é a UF levar em papos d’abuitres:
E se depois o rendeiro põe na Relação suas cousas, e prova que as perdas que houve foram por causa da guerra e de infortúnios, ou de lhe quebrarem os seus contratos, por onde se lhe mande tornar sua fazenda, como ela é já levada em papos d’abuitres, passam-lhe provisão pera se pagar em outro arrendamento novo, que a essa conta se faz; e assi fica el-rei dando sua fazenda aos criados do governador, porque, por derradeiro, ele é o que paga tudo. (95)
Repare-se que todas estas UFs surgem concentradas na mesma cena, a número IV da Segunda Parte da obra — pp. 94-95 da nossa edição —, o que mostra o uso intencional que o autor faz deste meio expressivo para transmitir a sua mensagem crítica. O recurso à fraseologia cumpre aqui uma função anafórica, através da reiteração de imagens que transmiten iconicamente a ideia do saque da Índia colonial portuguesa.
Com essa mesma intenção repete-se, neste caso ao longo de toda a obra, a UF de pernas acima, que é aplicada várias vezes à situação da Índia portuguesa:
E pola ventura que, se isto soceder, que eu temo muito que seja em tempo de um vizo-rei melhor, mais justiçoso e menos cobiçoso que todos, sendo eles os que a perderam e que deram com ela de pernas acima. (180)
Assi os vizo-reis e governadores da Índia: enquanto seguiram esta verdade, foi ela próspera e temida; mas, depois que se ela perdeu e que dispiram as armas e se dexaram de embarcar, e se recolheram às delícias da cidade de Goa, e se fizeram veadores da fazenda e presidentes da Relação, logo a Índia foi de pernas acima, e nós todos nos acovardámos e nos perderam tanto os imigos o respeito que aquilo que nós primeiro fazíamos, que era sostentarmo-nos de presas suas, o fazem eles agora, que se sostentam de presas nossas. (185)
Assi os vizo-reis e governadores da Índia: enquanto seguiram esta verdade, foi ela próspera e temida; mas, depois que se ela perdeu e que dispiram as armas e se dexaram de embarcar, e se recolheram às delícias da cidade de Goa, e se fizeram veadores da fazenda e presidentes da Relação, logo a Índia foi de pernas acima, e nós todos nos acovardámos e nos perderam tanto os imigos o respeito que aquilo que nós primeiro fazíamos, que era sostentarmo-nos de presas suas, o fazem eles agora, que se sostentam de presas nossas. (197)
Pois isto donde veo, ou quem lho deu senão a quem eles deram a justiça que era doutro? E inda mal porque isto é tanto assi, que nunca a Índia foi tanto pernas acima como depois que alguns destes entraram nela. Até o tempo de Jorge Cabral, em que não houve mais de um ouvidor geral, um provedor-mor e precurador da coroa, não foi a era dourada? (210)
O recurso frequente aos idiomatismos serve, portanto, em O Soldado Prático, à finalidade explícita de facilitar a comunicação eficiente da mensagem crítica que o autor de quer transmitir. Esta funcionalidade junta-se à já referida de reproduzir traços de língua oral que outorguem verosimilhança a um diálogo fictício. A frequência no recurso às UFs nesta obra clássica permite-nos reiterar, para concluir, a importância do estudo da fraseologia de textos literários antigos e clássicos como fonte profícua para a documentação do enorme cabedal fraseológico em língua portuguesa, tanto passado como atual, assim como para valorar o papel desempenhado pelos escritores clássicos na sua conformação histórica.
Bibliografia
Academia das Ciências de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian (ed. lit.). Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. 2 vols. Lisboa: Verbo, 2001.
Aguilar Ruiz, Manuel José. “Fuentes bibliográficas para el estudio de las locuciones desde una perspectiva histórica: elaboración de corpus e inserción en diccionarios”. Res Diachronicae. 8 (2010): 123-135.
Bluteau, Rafael. Vocabulário Portuguez, e Latino. 8 vols. Coimbra-Lisboa, 1712-1721.
Couto, Diogo do. O Soldado Prático. Edição de Ana María García Martín. Coimbra: Angelus-Novus, 2009.
Echenique Elizondo, María Teresa. “Pautas para el estudio histórico de las unidades fraseológicas”. Estudios ofrecidos al profesor José Jesús de Bustos Tovar. Coord. de J. L. Girón Alconchel [et al.]. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2003. 545-560.
García-Page Sánchez, Mario. Introducción a la fraseología española. Estudio de las locuciones. Madrid: Anthropos, 2008.
Instituto Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar (ed. lit.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.
Zuluaga Ospina, A. “Sobre las funciones de los fraseologismos en textos literarios”. Paremia. 6: 631-640.
[1] Veja-se sobre o processo de criação da obra, a introdução à edição da nossa responsabilidade, O Soldado Prático, Coimbra, Angelus Novus, 2009, pp. 9-54.
[2] Seguimos a definição de UF contemplada na obra de García-Page Sánchez, Introducción a la fraseología española. Estudio de las locuciones, Madrid, Anthropos, 2008, que se carateriza por considerar em conjunto as UFs oracionais e as que cumprem uma função sintática dentro de uma oração e que exclui parémias e provérbios. Cf. a sua delimitação nas pp. 20-22.
[3] Cf. García-Page Sánchez, ibidem, pp. 23-34.
[4] Igualmente, o limite superior das UFs suscita polémica, havendo estudiosos que admitem a existência de UFs oracionais, como García-Page Sánchez, e outros que a negam. Cf. ibidem, pp. 152-164.
[5] As colocações também podem experimentar uma transposição semântica, por exemplo, "caloroso acolhimento", "és um sol", traduzindo as aduzidas por García-Page Sánchez para o espanhol: "calurosa acogida", "eres un sol". Cf. ibidem, p. 27.
[6] Cf. García-Page Sánchez, ibidem, pp. 27-28. Acresce que a perceção da maior ou menor literalidade de uma UF resulta da competência cultural e do conhecimento enciclopédico do falante ou linguista que a analisa. Cf. García-Page Sánchez, ibidem, p. 28.
[7] Cf. García-Page Sánchez, ibidem, pp. 25-26. No entanto, a fixação apresenta frequentes exceções devidas a causas diferentes, como a etimologia popular, a marca diastrática, a economia linguística, etc.
[8] A numeração entre parênteses corresponde à página onde se encontra a citação na edição utilizada da obra. Os sublinhados são nossos.
[9] Usamos para esse processo os dicionários de referência da Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Verbo, 2001 e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001.
[10] Na nossa análise, como já antecipamos, consideramos tanto as UFs que cumprem uma função sintática na frase como aquelas que possuem um valor oracional. A maior parte das UFs documentadas são UFs verbais, isto é, equivalentes a uma forma lexical verbal.
[11] Trata-se neste caso de uma UF nominal, ninho de guincho, que tem o sentido de ‘um bom negócio, uma fonte de riquezas’.
[12] Neste caso trata-se de uma variante de dar a água pela barba.
[13] S.v. achar. Na verdade, a expressão literal fornecida por Bluteau é achar de menos. Trata-se neste caso de uma UF bem conhecida e que está na base da do espanhol echar de menos.
[14] A interpretação do valor semântico de um idiomatismo depende de fatores não linguísticos em grande medida. Cf. Garcia-Page Sánchez, op. cit., 389.
[15] Isto é, reconhecidas e adotadas pela comunidade linguística como parte do seu vocabulário. Sobre o conceito de institucionalização, cf. de novo García-Page Sánchez, ibidem, pp. 29-30.
[16] Bluteau, s.v. Pelo: "Veyo a pelo, id est, a tempo, a proposito, ao intento". No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, s.v. pêlo, “vir a pêlo” é definido como ‘vir a propósito, calhar na conversa’.
[17] O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea regista também as expressões trazer a terreiro, que define como ‘trazer ao campo da luta ou da discussão, trazer ao conhecimento’; chamar a terreiro, ‘desafiar alguém’ e descer a terreiro, ‘preparar-se para a luta, entrar na luta ou na discussão’.
[18] Registada no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, s. v. sopa, e definida como ‘Tomar parte numa conversa, numa discussão.’
[19] Cf. A. Zuluaga Ospina, "Sobre las funciones de los fraseologismos en textos literarios", Paremia, 6, pp. 634-635.
Ensinar qual Língua, em Países de Colonização Portuguesa?
Tensões no ensino de línguas em Cabo Verde[1]
Aracy Alves Martins
Universidade Federal de Minas Gerais
(Brasil)
1. Introdução
O estabelecimento de uma relação de cooperação no interior da comunidade dos países de língua portuguesa tem sido importante para a realização de diálogos interculturais, em que muito temos a partilhar com os países africanos. Nesse diálogo, a linguagem é um aspecto central da prática educativa intercultural. É através da linguagem que o processo de interlocução se realiza. O incentivo às reflexões dialógicas sobre a cultura do “outro” abre intercâmbios culturais, trazem a percepção do “outro” e, consequentemente, de si mesmo.
Consideramos, como Halliday, que “uma sociedade não é composta de participantes, mas de relações; e essas relações, por meio da linguagem, definem papéis sociais e que os membros de uma sociedade não desempenham somente um, mas muitos papéis ao mesmo tempo” (1978[2]:14-15, apud Novodvorski, 2013: 20).
Nessa perspectiva, a presente pesquisa se volta para aqueles membros da sociedade - os professores - em suas relações com aqueles que poderão construir, individual e coletivamente, um outro futuro para o seu país - os alunos - desde a mais tenra idade, sobretudo quando se constata que esses alunos, do Brasil e de outros países de língua portuguesa, a todo momento, experimentam o que afirma Assis (2009, apud Magalhães, 2013: 9), a partir dos dados de sua tese: “os nativos da África [e certamente os seus descendentes, em diáspora em diversos países] são representados de forma mais impersonalizada que outros, apresentados como europeus”.
Assumimos o conceito de interculturalidade como um diálogo entre diferentes grupos com direitos iguais (Hopenhay, 2009), tendo em vista diálogos entre países que compartilham uma mesma língua e que possuem culturas diversas. Dessa forma, a pesquisa que prevê diálogos interculturais faz pensar formas de superação de barreiras culturais que nos separam do “outro”, bem como pensar em uma predisposição para a leitura positiva de nossa multiplicidade cultural e social (Fleuri, 2003). Também a educação intercultural considera a discussão sobre a diversidade como um fundamento ético educacional que constitui as relações humanas. Esse fundamento está na base da análise e percepção das diferenças retratadas nos materiais didáticos, obras literárias e tensões resultantes de políticas linguísticas. Nesse sentido, nos alinhamos com a afirmação de Lopes (2005: 29): “O desafio ético de hoje, esse passatempo dos filósofos, é admitir estas diferenças e considerá-las enriquecedoras”.
Nesta pesquisa, busca-se ampliar o conceito de interculturalidade, entrelaçando-o à troca de informações entre diferentes níveis organizacionais sociais e discursivos e à tomada de consciência de questões locais e do contexto social mais amplo nos países de língua portuguesa envolvidos.
Nesse sentido, Perpétua Gonçalves (2009: 223), pesquisadora sobre a situação das línguas maternas em Moçambique, refletindo a respeito da formação das variedades africanas do Português (VAP) como um processo complexo, que envolve uma gama diversificada de aspectos de natureza linguística, histórica, cultural e até econômica, nos alerta que o que nos falta ainda é também - e não menos importante – a distância histórica sobre este processo, que nos permita avaliá-lo com objetividade e isenção científicas.
Lembrando, com Dijk (2008: 8), que muitas manifestações de racismo, seus preconceitos e ideologias subjacentes são adquiridos, confirmados e exercidos pelo discurso, uma abordagem analítica do discurso para estudar o racismo é crucial para entender sua reprodução. Por isso, nesta pesquisa, as perspectivas teórico-metodológicas das análises de textos verbais, visuais, interssemióticos e multimodais se vinculam à ACD – Análise Crítica do Discurso – (Dijk, 2008; Fairclough, 2001; Leeuwen, 1997).
Conquanto sejam três os eixos desta pesquisa, neste texto será abordado apenas aquele que se refere às tensões entre língua oficial e línguas locais, seja pelo ponto de vista da problematização, seja pelo ponto de vista de algumas experimentações, a que os pesquisadores desta pesquisa tiverem acesso, ainda carentes de uma verticalização e aprofundamento para investigação e análise.
Neste texto será enfatizado, por ser um tema visível e gritante no cotidiano caboverdiano, o terceiro eixo da Pesquisa em Rede: relações entre língua oficial/línguas maternas. Não realizando propriamente um estudo linguístico ou sociolinguístico sobre a temática abordada, levanta, antes de tudo, questões mais abrangentes relativas à Linguagem e Educação. Fazendo um estudo exploratório de publicações existentes[3] e de experiências vivenciadas, tais como uma experiência de “oratura” (Veiga, 2004) na Biblioteca Nacional[4] e do Projeto Piloto de Educação Bilingue, do Ministério de Educação e do Desporto, abordado mais adiante, espera-se dar subsídios para que investigadores da Pesquisa em Rede, além de outros investigadores, possam aprofundar estudos, debruçando-se sobre esses materiais, a respeito dos outros dois eixos da pesquisa – Manuais Escolares[5] e Literatura para Crianças e Jovens[6] - entre outras temáticas. São materiais a serem valorizados, estudados, analisados.
2. Tensões no ensino de Línguas em Cabo Verde
Quando pesquisadores estrangeiros chegam a Cabo Verde, surpreendem-se com o uso intenso e corrente da Língua Caboverdiana, nas situações mais diversas: no aeroporto, nos outdoors, no rádio, na televisão, nos hotéis, na universidade, às vezes até em seminários formais, quando se torna necessário solicitar que todos se mantenham, nos momentos de debate, falando em português, em respeito aos estrangeiros.
Entretanto, apesar de todas essas possibilidades de uso, entre diversas faixas etárias, nas mais variadas camadas sociais, com grande quantidade e qualidade de materiais linguísticos e pedagógicos produzidos, ao longo das últimas décadas, com várias tentativas de políticas linguísticas, o caboverdiano ainda não conquistou o estatuto de língua escrita e, consequentemente, de língua de ensino, mediante a língua oficial, o português.
Para discutir essas contradições, serão chamados, em seguida, alguns pesquisadores, caboverdianos ou não.
2.1. A Construção do Bilinguismo
Vêm da Sociolinguística as discussões postas por Manuel Veiga (1988, 2003, 2004), docente da Universidade de Cabo Verde, cuja tese de doutorado, produzida na França, em 1988, já abordava o estudo do Crioulo de Cabo Verde. Em suas produções mais recentes, o pesquisador diagnostica em Cabo Verde uma situação de diglossia[7] – em que uma língua de prestígio é utilizada nas funções consideradas nobres, enquanto a outra se apresenta mais como língua dominada –, postulando a possibilidade de uma situação de bilinguismo funcional, possuindo ambas as línguas um estatuto social e funcional útil e prestigiante (2004: 9-10), ou seja, uma situação de complementaridade funcional e social” (12), que, na Sociolinguística exige o conhecimento do Eu e do Outro.
Pedagogicamente, esse investigador ainda argumenta que “negar o Crioulo não só significa negar a nossa identidade como também dificultar a pedagogia do português. E isto porque a língua primeira constitui a melhor referência na aprendizagem de uma segunda língua” (Veiga, 2004: 12). Esse fenômeno tem sido detectado pelos investigadores em países como Angola e Guiné Bissau.
A proposta apresentada por esse pesquisador, O Caboverdiano em 45 Lições, que merece uma análise mais detida, abrange, na primeira parte, aspectos sociolinguísticos, tematizando o porquê e os conteúdos das lições, o contexto, as matrizes, os princípios e particularidades do Ccv (Crioulo de Cabo Verde), os tempos difíceis, as tentativas pioneiras (António de Paula Brito, Cónego Teixeira, Pedro Cardoso, Eugênio Tavares, Napoleão Fernandes), as contribuições no campo das Letras, Artes e Tradições, o Pós-Independência, as tentativas na Política Linguística, e, na segunda parte, trata da constituição da Escrita e do alfabeto, finalizando com a aprovação do ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdiano)[8]. Na terceira e quarta partes, são apresentados, pormenorizadamente, os aspectos morfológicos (estrutura e formação das palavras, substantivos, adjetivos, pronomes, verbos em suas conjugações, advérbios, conjunções, preposições, locuções e interjeições) e sintáticos (frase, oração, período, discurso, voz, regência) do caboverdiano. Na Conclusão, dirige-se à sociedade, em especial aos alunos e professores, acreditando que “não tardará o dia em que o Ccv será oficializado, o dia em que será alargado o seu ensino e o seu uso nos mass’média, na literatura e na administração do País”.
Mencionando, ao longo de suas produções, a importância das condições estruturais, institucionais, pedagógicas e da formação de professores no país, a respeito da produção de materias didáticos, Veiga (2004: 141) defende que “cada professor deverá ser um investigador em exercício e cada aluno um pesquisador em projecção”, já que aposta na “imaginação e criatividade do educador e dos educandos”.
Sobre sua proposta da Construção do Bilinguismo, o autor argumenta:
Ao português que já é língua official e de situações formais de comunicação, torna-se necessário alargar o seu ensino e conferir-lhe o estatuto de língua do quotidiano informal, em paridade com a Lcv [Língua Caboverdiana]. Quanto à Lcv que já é língua do quotidiano informal, há que se reconhecer-lhe o estatudo oficial em paridade com a Lp, reforçar o seu uso formal e implementar o seu ensino, do primário ao universitário (…) Tal política linguística é uma exigência da nossa história, da nossa cultura, da nossa identidade. (2004: 129, ênfase adicionada).
2.2. Projeto Piloto de Educação Bilingue
Após essas reflexões sobre o investimento institucional quanto ao bilinguismo, pelo ponto de vista da Universidade de Cabo Verde, será apresentada esta segunda experiência em prol do caboverdiano como língua de ensino, na escola básica.
Trata-se do Projeto Piloto de Educação Bilingue, instituído pelo Ministério da Educação e Desporto de Cabo Verde, sob orientação da Professora Ana Josefa Cardoso (2005), atividades desenvolvidas com os alunos do primeiro ano da Escola Básica.
Os polos educativos nº 3 de Ponta de Água, na cidade da Praia, e do Flamengos, Concelho de S. Miguel, respectivamente, são as escolas seleccionadas para acolher a experiência piloto da educação bilingue em Cabo Verde. Uma medida que o Ministério da Educação e Desporto pretende generalizar num futuro próximo a todas as escolas do ensino básico, como forma de valorizar a língua caboverdiana e melhorar a aprendizagem da língua portuguesa.
Nesta experiência, os docentes vão leccionar a língua cabo-verdiana e a portuguesa em simultâneo, 50 por cento de aula por cada língua (MED, 2013: 1, ênfase adicionada).
O professor da língua caboverdiana na Escola Ponta de Água, no mês de instalação do Projeto Piloto de Educação Bilingue, demonstrava satisfação com a experiência, sobretudo por sentir o entusiasmo dos alunos, em resposta à ambientação da escola, com materiais escritos em crioulo e com incontáveis momentos de produção oral e escrita (rótulos, cartazes, letras de músicas, histórias, canções), por parte dos aprendizes, em língua materna, língua local, presenciados e registrados por esta pesquisa. Por exemplo: havia escrito em cada objeto o seu nome em português e em caboverdiano: porta/porta, mesa/mesa, secretária/sekretária[9], parede/paredi. Ou então, cartazes com objetos – borracha/boraxa, cadeira/kadera – Mezis di anu, Dias di Simana, Painel di nunbrus (1-10), versos, letras de músicas.
O professor de Ponta de Água, Fernando Jorge, se posiciona sobre o projeto piloto, identificando-se como falante da língua caboverdiana, irmanando-se com a argumentação que vem sendo reforçada por diferentes sujeitos, ao longo deste texto, no tocante à importância da língua materna na construção da identidade cultural: “A língua cabo-verdiana é a nossa cultura, a nossa forma de pensar e é através dela que conseguimos demonstrar como é que a nossa estrutura psíquica está organizada. Só vamos ter vantagem em estudar a nossa língua” (MED, 2013: 1, ênfase adicionada).
Segundo o professor da Escola de São Miguel, Augusto Gonçalves, considerando boa a experiência, pelo ponto de vista da contribuição da língua materna, no momento da aprendizagem, da construção de conhecimentos, “os alunos se mostram muito à vontade ao falar em crioulo e expressam as suas ideias, e isto tem revelado oportunidades de aprendizagem significativas em duas línguas” (MED, 2013: 2, ênfase adicionada).
Os Materiais de Leitura Escrita[10] do Projeto Piloto, que se inicia com o provérbio: Si ka fila tudu, ta fila un ponta [Se não se pode fazer tudo, pelo menos se faz uma parte], apresenta a seguinte constituição: Vogal (fazer desenho, completar palavra, pintar tudo com cada vogal, circundar letra, completar quadro, copiar palavras); Konsuanti (desenho, completar palavras, juntar sílabas, frase na ordem, separar palavras, dividir palavras e contar sílabas, escolher palavras para escrever frase, desenho para ilustrar frase, escrever frase, descobrir palavras escondidas, pintar da mesma cor palavras com mesmo número de sílabas, copiar frase, ordenar letras); Dígrafus - dj, nh, lh, tx (desenho, completer frase, responder a perguntas, escrever palavras que rimam, ler texto, formar palavras e escrever); Kazus di Leitura – al, el…; ar, er…; as, es…; br, dr, fr, fr, kr, pr, tr, vr; bl, fl, gl, kl, pl, tl (os mesmos exercícios anteriores além de: usar palavras e escrever frases de acordo com a imagem, circundar ou escrever palavras ou frases que têm as sílabas tais) Ditongus – ai, au, ei, eu, ia, ie, io, iu, ua, ue, iu, uo; (circundar ditongos, escrever frases) Trigrafu – str, skl, spr, skr, spl (completer palavras, descobrir palavras escondidas na sopa de letras, como: strela, skrebe), splika.
Evidentemente, o material pedagógico, ainda em processo de construção, segundo os próprios sujeitos envolvidos no projeto piloto, atende parcialmente, seja quanto à autonomia do material, nesse momento ainda fotocopiado em preto e branco, seja quanto às cores, que poderiam motivar ainda mais os alunos, seja quanto à construção do conceito de linguagem atrelado à perspectiva estruturalista em detrimento das concepções, mais textuais e discursivas, ainda distantes das concepções de alfabetização, letramento, que serão discutidas a seguir.
Resta ainda investigar quais são as relações entre esses projetos, em prol das políticas linguísticas em Cabo Verde.
3. Algumas reflexões
Provavelmente tenha sido um pesquisador brasileiro, Paulo Freire, que mais tenha entendido e trabalhado e prol da praxis revolucionária de Amílcar Cabral, no seu discurso sobre a democratização da cultura e de libertação. Suas ideias já pressupunham dimensões individuais, institucionais, sociais, políticas, econômicas e culturais, de um trabalho de alfabetização, quando afirmava que à educação cabe uma formação integral do aluno com fins de informar e intervir no mundo e estar-no-mundo, ser-mundo (Freire, 2003). Outros pesquisadores, mais tarde, alargaram tais conceituações até se pensar nas relações entre Alfabetização e Letramento (Kleiman, 1995), (Soares, 1998, 2004), em Novos Estudos do Letramento (Street, 2003) e em Letramentos Múltiplos, que abrangem as “competências básicas para o trato com as línguas, as linguagens, as mídias e as múltiplas práticas letradas, de maneira crítica, ética, democrática e protagonista” (Rojo, 2009: 119).
Na verdade, os Letramentos Múltiplos já são vivenciados socialmente hoje pelos falantes da língua caboverdiana, que já a utilizam em Cabo Verde, inclusive em práticas letradas, em impressos, cartazes, outdoors, televisão, rádio, internet, entretanto não a utilizam, correntemente, como língua de ensino, nas instituições escolares.
3. 1. Algumas reflexões sobre Alfabetização e Letramentos
A abordagem dos estudos sobre alfabetização faz pensar em aspectos cognitivos e tecnológicos que envolvem todo o processo pessoal e coletivo de aquisição da leitura e da escrita, com intercessão das práticas de oralidade.
… e o que é propriamente alfabetização, de que também são muitas as facetas – consciência fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema–grafema, habilidades de codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita (Soares, 2004: 30).
A abordagem dos estudos do letramento faz pensar no mergulho das crianças em materiais escritos produzidos em língua materna, ampliando o que já se vê nas ruas, nos meios de comunicação (outdoors, placas, cartazes, programas de televisão, entrevistas, etc.), em Cabo Verde:
… parece ser necessário rever os quadros referenciais e os processos de ensino que têm predominado em nossas salas de aula, e talvez reconhecer a possibilidade e mesmo a necessidade de estabelecer a distinção entre o que mais propriamente se denomina letramento, de que são muitas as facetas – imersão das crianças na cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos e gêneros de material escrito. (Soares, 2004: 30)
Lembrando, sempre, todavia, que não há como desvincular esses dois processos, intimamente interligados, no sentido de alfabetizar letrando, ou letrar alfabetizando:
Por outro lado, o que não é contraditório, é preciso reconhecer a possibilidade e necessidade de promover a conciliação entre essas duas dimensões da aprendizagem da língua escrita, integrando alfabetização e letramento, sem perder, porém, a especificidade de cada um desses processos, o que implica reconhecer as muitas facetas de um e outro. (Soares, 2004: 30)
De acordo com Street (2003: 1), os Novos Estudos do Letramento compõem um recente campo de pesquisa que representa uma nova visão da natureza do letramento que escolhe deslocar o foco dado à aquisição de habilidades, como é feito pelas abordagens tradicionais, para se concentrar no sentido de pensar o letramento como uma prática social.
Isso implica o reconhecimento de múltiplos letramentos, conforme Rojo coloca em cena, em seus estudos, a multissemiose ou a multiplicidade de modos de significar que as possibilidades multimidiáticas e hipermidiáticas do texto eletrônico trazem para o ato de leitura: já não basta mais a leitura do texto verbal escrito – é preciso relacioná-lo com um conjunto de signos de outras modalidades de linguagem (imagem estática, imagem em movimento, música) que o cercam, ou intercalam, ou impregnam; esses textos multissemióticos extrapolaram os limites dos ambientes digitais e invadiram os impressos (jornais, revistas, livros didáticos) (Rojo, 2009: 105-106).
Pedagogicamente, Soares argumenta que são diversas as possibilidades, os caminhos pelos quais se chega, individual ou coletivamente, ao letramento e à alfabetização, em uma multiplicidade de aportes teórico-metodológicos e experimentações práticas.
… consequentemente, a diversidade de métodos e procedimentos para ensino de um e de outro, uma vez que, no quadro desta concepção, não há um método para a aprendizagem inicial da língua escrita, há múltiplos métodos, pois a natureza de cada faceta determina certos procedimentos de ensino, além de as características de cada grupo de crianças, e até de cada criança, exigir formas diferenciadas de ação pedagógica (Soares, 2004: 30-1).
Vygotsky (1984), por uma concepção sociointeracionista, incrementa essa discussão, a respeito da construção cognitiva e social dos aprendizes, sobre o processo de alfabetização e letramento, na interação com o objeto de conhecimento e os outros parceiros (colegas e professores).
Soares, referindo-se a suas experiências em processos produtivos de formação de professores brasileiros, acrescenta que “desnecessário se torna destacar, por óbvias, as consequências, nesse novo quadro referencial, para a formação de profissionais responsáveis pela aprendizagem inicial da língua escrita por crianças em processo de escolarização” (Soares, 2004: 31, ênfases adicionadas).
Note-se que, no tocante à língua caboverdiana, aguarda-se por uma produtiva discussão no tocante à formação de professores alfabetizadores, certamente por um referencial, como o das “muitas facetas” da alfabetização: além da faceta linguística, também as facetas psicológica, psicolinguística, sociolinguística (Soares, 2004).
Freire considera ainda a linguagem como algo comprometido, também, com as classes sociais” (Freire, 1978: 176) e que, conforme reforça Veiga (2004), o processo de alfabetização é facilitado quando se trabalha com a língua materna do aprendiz, conforme se problematizará, a seguir, a respeito das relações entre línguas.
3.2. Algumas reflexões sobre Tensões no ensino de Línguas
De acordo com Revuz (1998), a didática do ensino de línguas tem postulado um confronto descabido na relação entre língua materna e estrangeira. Questionando teorias que defendem métodos de aprendizagem de línguas baseados no ideal de “criar” um ambiente que permita ao aluno reviver o processo natural de aquisição da língua materna, a autora aponta os riscos da negação da língua materna e a proibição de seu uso em sala de aula: “aprender uma outra língua é fazer a experiência do seu próprio estranhamento, no mesmo momento em que nos familiarizamos com o estranho da língua e da comunidade que a faz viver” (Revuz, 1998: 228).
Nesse sentido, uma língua constitui processos identitários do sujeito, que envolvem tanto a afirmação de sua própria língua, já que o “eu” da língua estrangeira não é, jamais, o da língua materna. Uma língua não pode ser tomada apenas como um instrumento de comunicação, mas como parte de sua identidade. A aprendizagem de uma língua estrangeira envolve, portanto, a constituição de uma nova identidade, para além da dimensão meramente verbal. A aprendizagem de estruturas sintáticas e das variações semânticas requerem correlações com a língua materna. Além disso, se a língua alvo tem um capital cultural mais valorizado no mercado das trocas simbólicas, sustentado pelas imposições econômicas, a desvalorização da língua materna pode gerar resistências que têm implicações negativas no processo de aprendizagem.
Como Revuz, defendemos que as relações língua materna/línguas estrangeiras devem ser consideradas em sala de aula, tendo em vista levar o aluno a construir ativamente seu processo de identificação com a língua aprendida. Além disso, a visão intercultural que defende o contato entre culturas, em pé de igualdade – contato intrínseco ao aprendizado de línguas - deve ser considerada.
4. Considerações Finais
Refletindo, finalmente, como Pereira (2010: 20), em sua tese de doutorado, sobre cultura, “como sendo o padrão ordenado de estruturas de significado expresso por meio de símbolos historicamente transmitidos, dentro das quais, determinadas ações são percebidas e interpretadas”, precisamos pensar sobre o jogo entre política e cultura em Cabo Verde, onde se pode ver e ouvir a língua caboverdiana nas ações cotidianas, entre sujeitos de todas as camadas sociais, inclusive na Universidade, nos outdoors e nas mídias.
Lima (2000: 84), em sua dissertação de Mestrado, faz menção à literacia (letramento), após afirmar, sobre a língua caboverdiana, que demonstrou-se a maturidade duma língua capaz de realizar todas as necessidades de comunicação(…), desde a faculdade lúdica, essa capacidade de brincar com as palavras, até as atitudes linguísticas, comportamento que implica uma abordagem interdisciplinar; e depois pergunta: como compreender todas as potencialidades da língua realizada nos diferentes domínios científicos (…)?
São esses diferentes domínios científicos que esta pesquisa precisa ainda conhecer, em futuros estudos, seja a partir de trabalhos de investigação já produzidos[11], seja a partir da coleta de dados, em pesquisas empíricas.
Tendemos a pretender investigar como a pesquisadora Lima, 2007:
Uma pesquisa mais aprofundada poderá demonstrar qual a função da língua cabo-verdiana e portuguesa e porquê que os próprios locutores têm dificuldade em assumir a sua própria língua materna como língua oficial. Por uma concorrência desleal, imposta por motivos de política social e económica do país, a língua caboverdiana não é utilizada na modalidade escrita (82).
Em se tratando das relações entre língua oficial e línguas maternas, aspecto muito comum, no contexto dos países de língua portuguesa, como que considerando, ainda que lentamente, a Resolução no. 8/98, que vem em epígrafe no livro de Sanches (2005) – “Será valorizado, progressivamente, o crioulo cabo-verdiano, como língua de ensino” –, enquanto Veiga (2002, 2004) pleiteia migrar da diglossia para o bilinguismo funcional, Sanches (2005: 100) argumenta que o “ensino das línguas cabo-verdiana e portuguesa seja feito da forma mais adequada possível, segundo os modernos métodos das línguas primeira e segunda[12]”, a Universidade de Cabo Verde avança, propondo um Mestrado em Português, Língua Segunda, Língua Estrangeira, 2013/2014, modificando o ponto de vista e o estatuto da língua caboverdiana, buscando compreender “as interferências linguísticas do caboverdiano no processo de aprendizagem do português” (Cardoso, 2005).
O Mestrado visa potenciar o estudo descritivo e didáctico decorrente da situação linguística de Cabo Verde - uma língua materna em todo o território nacional, a língua cabo-verdiana, e uma língua segunda, a língua portuguesa, e contribuir para o desenvolvimento desse estudo no que respeita à língua portuguesa[13].
Quint, vislumbrando o futuro, em sua abordagem do caboverdiano como língua mundial, ressaltando o uso e a produção de materiais didáticos para o seu ensino a comunidades caboverdianas da grande quantidade de emigrantes de Cabo Verde, nos Estados Unidos, na Holanda e em outros países da Europa, de certo modo, conclama o país a uma ação política em prol da cultura, como essa “ancestralidade plasmada sobre a baía e o porto grande” (Duarte, 1993).
A língua caboverdiana, produto de uma simbiose equilibrada entre elementos europeus e africanos, é um dos principais traços culturais partilhados pelas comunidades cabo-verdianas dispersas pelas duas margens do Atlântico. Contudo, o futuro do crioulo, a médio e longo prazo, dependerá em última análise do seu estatuto no arquipélago de Cabo Verde, único lugar no mundo onde ele é língua da maioria, gozando duma vitalidade diariamente reforçada (Quint, 2009: 141, ênfase adicionada).
Certamente é essa busca da ancestralidade, dessa cultura, dessa identidade que fará o povo do Arquipélago de Cabo Verde chegar mais perto do que antes era uma utopia: a Língua Caboverdiana conquistando o seu lugar, como língua escrita, em ambientes formais, como língua de ensino.
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Vygotsky, Lev. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Paulo: Martins Fontes, 1984.
[1] Esta comunicação refere-se a uma pesquisa, em andamento, que tem apoio do CNPq, aprovada no edital Universal nº 14/2012.
[2] Halliday, M. A. K. Language as Social Semiotic: The Social Interpretation of Language and Meaning. London: Edgard Arnold, 1978.
[3] Além das produções acadêmicas, publicadas na Revista da Universidade de Cabo Verde – Revista De Estudos Cabo-Verdianos, www.unicv.edu.cv -, outras obras serão aqui mencionadas, que, por sua vez, mencionam outras igualmente importantes.
[4] Há, na Biblioteca Nacional de Cabo Verde, um espaço para se contar histórias para crianças e adolescentes. As histórias são contadas, tanto pelas bibliotecárias quanto pelas próprias crianças e jovens, em português e em crioulo.
[5] Cf. Martins et al, 2011.
[6] Literatura Infantil:
- Tomé Varela – escrito em Língua Cabo-Verdiana – vários volumes. Silva, Tomé V. da. Na Boka Noti [Na Boca da Noite]. 2a. idison, vol.1. Mindelo – S. Vicente, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro 2004. – Un libru di stórias tradicional (...) Pa tudu nos gentis grándi y pikinóti na país o na stranjeru.
- Leão Lopes – Unine; A História de Blimundo (Mito Fundador de Cabo Verde)
- Magalhães, Natacha –Mãe, conta-me uma História. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2009.
- Fátima Bettencourt (caboverdiana) A cruz do Rufino
- Marilene Pereira (Brasileira em Cabo Verde) - Bentinho, o Traquinas. Praia: Instituto de Promoção Cultural, (2000); Aventura na Cidade Velha: Meus vizinhos Passarinhos
- Hermínia Curado- A magia das palavras
- Luiza Queirós -Saaraci, o gafanhoto do deserto. Praia-Mindelo. Instituto Camões/Centro Cultural Português, 1998
- João Lopes (Antropólogo) - Vamos conhecer Cabo Verde
- Zaida Sanches - Coleção Stera (Esteira). O Reino das Rochas, A sopa da Beleza, A greve dos animais, A Princesa do mês de agosto.
- Graça Matos Sousa. O caracol Julião. O Monstinho da Lagoa Rosa.Praia-Mindelo. I. Camões/C. Cultural Português, 2001.
- Dina Salústio. A Estrelinha Tlim Tlim. Praia-Mindelo, I. Camões/C. Cultural Português, 1998.
[7] Cf. outros estudos:
- Cunha, Celso. “A situação linguística de Cabo Verde e Guiné-Bissau: português e crioulo frente a frente”. RJ: Studia, 9, 1980.
- Duarte, Dulce A. Bilinguismo ou diglossia? As relações de força entre o crioulo e o português na sociedade cabo-verdiana. Praia: Spleen-Edições, 1998.
- Rodrigues, Herculano. Cabo Verde - o português e o crioulo em presença: proposta de uma abordagem metodológica. Dissertação de Mestrado, Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2007.
[8] Vários autores (Coord. Manuel Veiga). Proposta de Bases do Alfabeto Unificado para a Escrita do Caboverdiano (ALUPEC), Praia, 1994.
[9] Neste texto, estão sublinhados os elementos curiosos, que não constam na língua portuguesa.
[10] Cardoso, Ana Josefa. Si ka fila tudu, ta fila un ponta. Uma Experiência de Educação Bilingue. Materiais de Leitura e Escrita. 2013.
[11] Produção acadêmica recente sobre a temática:
- Mendes, Amália Faustino. Referencial para o ensino em português língua segunda em Cabo Verde. Universidade de Lisboa, 2010.
- Pereira, Júlia Ramos Melícia. Alfabetização de crianças cabo-verdianas em língua portuguesa como língua não materna. Universidade Aberta, 2010.
- Rodrigues, Albertino Africano Mendes. Pensar currículo como um enunciado cultural com foco na Língua Crioula Cabo-Verdiana. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2010.
- Varela, Maria Antônia Moreira. Os Manuais de língua portuguesa e o desenvolvimento da expressão oral no ensino secundário de cabo Verde. Universidade de Lisboa, 2010.
[12] Cf. Freire, Maria Goreti. O ensino do português L2 a partir do caboverdiano LM. Dissert. Mestr., Univ. Lisboa, 2007.
- Lopes, Amália. As Línguas de Cabo Verde: uma radiografia sociolinguística. Dissert. Dout., Universidade de Lisboa, 2011.
- Mendes, Amália. (2009). Referencial para o ensino em português língua segunda em Cabo Verde no contexto da oficialização da língua cabo-verdiana. Dissertação de Mestrado, Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
- Pinto, Jorge. Contributos para a Formação Contínua de Professores de Português L2 em Cabo Verde: dificuldades perante uma estratégia inovadora, Dissertação de Doutoramento, Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 2010.
- Sanches, Carlos. Factores do (In)sucesso Escolar na Disciplina de LP no 2º Ciclo do ES em Cabo Verde. Dissertação de Mestrado, Universidade de Aveiro, 2008.
- Santos, Aurélio. O crioulo e o português: sugestões para uma política do idioma em Cabo Verde. Dissert. Mestr., Univ. Lisboa, 2006.
Diversidade, desigualdade, diferença: línguas, política de línguas e memória
Bethania Mariani
UFF-LAS / CNPq / FAPERJ
(Brasil)
O título desse artigo é indicativo de dois aspectos que nortearão sua escrita: um lugar teórico a partir do qual pretende-se discutir política de línguas e história das línguas, e uma apresentação pontual de análises de políticas de línguas e jurisprudências envolvidas na regulamentação da diversidade linguística, seja para defendê-la, seja para reduzi-la a um monolinguismo. Essas políticas de línguas, em suas historicidades, guardam memórias que podem se reatualizar quando outras políticas e outras jurisprudências se constituem para a promoção de novas intervenções nas línguas faladas.
O lugar teórico articula dois campos do saber: História das Ideias Linguísticas e Análise do Discurso. Ambos situam o pesquisador no entremeio das Ciências Humanas e Sociais uma vez que não separam a linguagem da história, ou seja, são campos de saber que articulam a produção de sentidos com suas condições histórias e ideológicas de produção. Assim, as políticas de línguas serão examinadas tendo em vista análises de situações históricas de conflito linguístico em que jogam sentidos da língua de colonização e de língua nacional: língua portuguesa no Brasil, língua portuguesa em Moçambique e língua inglesa nos Estados Unidos da América.
De imediato, uma distinção teórica: o uso da expressão ‘política de línguas’ (Guimarães, 2002; Orlandi, 2001) como forma de marcar a inscrição nos campos de saber acima mencionados. ‘Política de línguas’ remete para uma maneira de conceituar ‘língua’: língua como objeto simbólico-político que tanto se inscreve em práticas sócio-históricas como inscreve práticas sócio-históricas afetadas pela memória. Aqui não se dissocia língua da historicidade da constituição, organização e funcionamento dos Estados Nacionais. Para o campo da História das Ideias Linguísticas interessa discutir a produção de discursos que constituem saberes tácitos ou saberes que ganham a chancela de conhecimento científico sobre as línguas nacionais. Que efeitos de sentidos esses discursos produzem nas políticas de línguas?
A posição de um estudioso das línguas formula ideias linguísticas (Auroux, 1992), ou seja, saberes sobre a língua, representações que podem ser tácitas ou da ordem da produção de conhecimento científico, com a elaboração circunstanciada de descrições, análises, dicionários, gramáticas, além da descrição das variedades, das atitudes dos falantes frente à diversidade etc. Essa produção de saberes não é a-histórica nem ingênua e tem a ver com o fato de que devemos assumir, como estudiosos da linguagem, que qualquer que seja a produção de saber sobre uma língua parte de algum lugar teórico e produz efeitos políticos sobre o conhecimento produzido. Isso implica afirmar que qualquer posição teórica é uma posição política uma vez que se inscreve em compartimentações epistemológicas, e inscreve o conhecimento produzido em determinado paradigma. Assim sendo, nossas posições teóricas são posições políticas: as teorias, mesmo que não explicitem um posicionamento político, portam diferenças que manifestam essa posição. (Guimarães, 2002) Para Guimarães, a noção de político “está no fundamento das relações sociais, não está no falar sobre, está no cerne do funcionamento social e linguístico e tem a ver com os lugares de enunciação, e não com as pessoas empíricas.” (Guimarães, idem: 15) A noção de política de línguas busca tornar visível o “conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. (...) O político é incontornável porque o homem fala. O homem está sempre a assumir a palavra, por mais que esta lhe seja negada.” (Guimarães, idem: 16)
Falar sobre política de línguas tomando a diversidade, a desigualdade e a diferença é tomar uma posição teórica bastante indicativa de uma preocupação: as línguas e os sujeitos que as falam estão imbricados nessa diversidade, desigualdade e diferença, mas o funcionamento da diversidade, da desigualdade e da diferença nem sempre está visível no todo social e histórico para esse sujeito ao tomar a palavra. Em termos da Análise do Discurso, tomar a palavra é inscrever-se no funcionamento sócio-histórico, nos processos de produção de sentidos que circulam sobre as línguas e sobre os sujeitos, e cuja memória, no jogo paradoxal do lembrar-e-esquecer, nem sempre está presente de modo perceptível. Essas noções – político na língua e política de línguas (Orlandi, 2001, 2009) – marcam situações linguísticas em que falar de diversidade silencia a desigualdade e o confronto, silenciando, assim, sobre as hierarquizações produzidas.
Um simples exemplo: por que falamos português no Brasil? Parece uma pergunta óbvia, mas ela implica um retorno a uma maneira de se contar a história do Brasil que apaga a diversidade das línguas indígenas, apagando o acontecimento histórico e discursivo da colonização linguística (Mariani, 2004) As línguas e os sujeitos que as falam inscrevem-se histórica e socialmente e, como tal, dada a inscrição histórica e social, produzem sentidos. Em outras palavras, os sujeitos significam a si próprios e significam a língua que falam sempre inseridos no social, nas relações históricas de força, produzindo assim valores atribuídos à(s) língua(s), às suas variedades e aos próprios sujeitos nas hierarquizações sociais.
Para o teórico, para o estudioso das línguas, para além de reconhecer a diversidade linguística, a defesa da diversidade linguística seria efetivamente uma forma de eliminar desigualdades? O que seria, de fato, reconhecer as diferenças? Em primeiro lugar, criticar a suposta homogeneidade de uma língua. Na perspectiva aqui formulada, o reconhecimento da ficção da homogeneidade de uma língua não necessariamente implica na crítica à situação de desigualdade. Do ponto de vista da História das Ideias Linguísticas, em sua visada discursiva, interessa a compreensão dos processos históricos e das políticas de línguas (explícitas – quando aspectos jurídicos intervém, e implícitas – significativamente colocada nos versos da canção Língua, de Caetano Veloso: “ouçamos com atenção os deles e delas da TV Globo’, por exemplo) que produzem essa ficção de homogeneidade.
Quando se tem em vista relações de sentidos entre as línguas em países colonizados, a história da construção dessa ficção de homogeneidade linguística nacional comparece nas lutas de independência, na constituição do Estado-nação; e nas relações de força entre os sujeitos dadas essas condições históricas; na produção de gramáticas, dicionários, instrumentos linguísticos fundamentais na gramatização das línguas. (Auroux, 1992; Orlandi, 2002; Mariani, 2004)
Há condições históricas que constituem não apenas uma imagem da unidade das línguas, essas condições propiciam também as possibilidades de identificação ou não dos sujeitos que praticam as línguas com essa unidade linguística imaginária. Assim, uma língua pode ser nacional e oficial, com uma imagem de unidade; e, ao mesmo tempo, a diversidade linguística pode ser reconhecida, mas, no exercício de sua práxis discursiva concreta (ou seja, em sua produção de sentidos cotidiana), e nos processos que institucionalizam juridicamente a língua nacional e que reconhecem a diversidade (refiro-me à diversidade reconhecida na Constituição nacional), o que ocorre é a reafirmação da desigualdade.
Vejamos alguns exemplos recentes. No aeroporto de Lisboa, pode-se observar uma política de línguas em curso: um cartaz indica uma fila de imigração específica para membros da CPLP. No entanto, o guichê dessa fila estava fechado. Branco (2013), ao analisar documentos oficiais da ONU e da UNESCO, depreende enunciados que indicam: “todas as línguas são admitidas como línguas de trabalho, mas as línguas oficiais são...”. Outra situação em que ocorre o reconhecimento da diversidade, mas que mantém a desigualdade é a política bilíngue do Paraguai, uma vez que pouco se ensina guarani nas escolas. Em S. Gabriel da Cachoeira, conforme se pode ler no sítio oficial da prefeitura (www.camarasgc.am.gov.br) “a língua oficial é o português, porém, mais três idiomas foram aprovados por lei municipal (145/2002), ou seja, o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa, línguas tradicionais faladas pela maioria dos habitantes, dos quais 85% são indígenas.” Sem dúvida, oficializar três línguas indígenas é admitir, conforme a Constituição de 1988, que o Brasil é um país multilíngue (são 180 línguas indígenas remanescentes e umas 25 a 30 línguas de imigrantes) No entanto, tornar oficial uma língua nacional não resulta também em fazer valer a lei que está na LDB (1996) que prevê o ensino bilíngue gratuito e obrigatório, com material didático – gramáticas e dicionários – adequado.
O reconhecimento oficial da diversidade linguística na Constituição brasileira não minimiza os efeitos da desigualdade linguística. Como já comentei anteriormente (Mariani, 2008), um estranho paradoxo constitui o sujeito em sua posição de falante do português brasileiro: o falante nega a diversidade ao dizer que não sabe falar sua própria língua materna, algo que é da ordem de uma evidência para esses falantes, inscritos, sem se dar conta, em uma política silenciadora das diferenças em nome de uma língua imaginária. Esses brasileiros, podemos presumir, não se identificam com a língua normatizada e ensinada nas escolas, variedade linguística considerada difícil, abstrata, distante de seu dia a dia. Entre a língua fluida e a imaginária (Orlandi, 2001) há uma distância enorme, e o reconhecimento das diferenças entre o chamado português padrão (língua oficial e nacional) e o vernáculo não é suficiente para suprimir desigualdades. A língua marcada juridicamente na Constituição produz um efeito de monoglossia (Zandwaiss, 2011) que silencia a historicidade da maneira como se constituiu a relação entre língua oficial e constituição do Estado nacional no Brasil e produz uma não identificação para muitos brasileiros.
Pensemos, aqui, nas ideias linguísticas que circularam durante a colonização linguística e nos momentos imediatamente posteriores à independência do Brasil. Selecionamos, especificamente, três questões: a obrigatoriedade do uso do português no século XVIII; o nome da língua que se fala no Brasil, e a querela entre gramáticos e literatos no século XIX. Vou apresentar brevemente essas questões.
Quando falamos em colonização linguística (Mariani, 2004 e 2008) referimo-nos às idéias lingüísticas que circulavam na Europa e que impregnam discursos colonizadores presentes não apenas no relato de viajantes e missionários que vão ao Novo Mundo, mas também nos assim chamados relatos históricos que, muitas vezes por encomenda, têm a tarefa de fazer a história do Brasil. Entre os séculos XVI e XVIII, o conjunto destes textos, um conjunto marcado por repetições e comentários, vai constituindo um discurso histórico sobre o processo da colonização, deixando entrever diferentes sentidos atribuídos à diversidade lingüística, sobretudo àquela referente aos povos indígenas. Deixam entrever também políticas de línguas que se estabeleceram com a entrada das línguas européias, o português e o latim, bem como o espanhol e o francês.
Embora a questão da diversidade lingüística não seja tema central nestes textos, neles depreende-se a necessidade do conhecimento das línguas indígenas. Conhecer estes povos e conhecer suas línguas, em termos práticos, representava uma das chaves para a total conquista, expansão e colonização do território. A colonização linguística engendrada pela metrópole portuguesa organizou-se em torno de uma ideologia do déficit cultural e linguístico, déficit que, ao mesmo tempo, era postulado como já existente e prévio ao contato propriamente dito, quanto servia para legitimar a forma como a dominação se processava. Assim, desde a Carta de Pero Vaz de Caminha e as primeiras descrições feitas por Anchieta, Gândavo, Fernão Cardim e Ambrósio Brandão, entre outros, constata-se e comprova-se linguisticamente um sentido para a falta que já se presumia encontrar: o F, o R e o L inexistem na língua indígena e materializam a ausência de um poder religioso, de um poder real central e de uma administração jurídica. Deste modo, as línguas são objeto de observações linguísticas e, simultaneamente, o processo de descrevê-las reifica uma certa imagem linguístico-cultural pré-construída.
Na ótica do colonizador português, essas três instituições nucleares do aparelho de Estado – religião, realeza e direito – simbolizam um estágio avançado de civilização que têm como base uma única língua nacional gramatizada e escrita. Desse ponto de vista, a língua portuguesa é também uma instituição que faz parte do funcionamento social geral da nação, ao mesmo tempo em que dá legitimação escrita às outras instituições do reino. Os habitantes da terra brasílica e suas línguas, portanto, não são civilizados porque a eles se atribui a falta do que os portugueses possuem e vêem como essencial à civilização. Legitimam-se em uma teoria linguística uma teoria religiosa e uma outra de natureza político-jurídica, ambas servindo como justificativa para a expansão das terras da metrópole.
A construção desse conhecimento, um conhecimento marcado pelos saberes europeus, é responsável pela manutenção de uma determinada direção de sentidos para as línguas em circulação na colônia. Institui-se, assim, um primeiro sítio de significância (Orlandi, 2001) sobre as línguas indígenas, que tanto possibilita inúmeras repetições e paráfrases em torno desse imaginário da deficiência lingüística quanto justifica a ideologia da superioridade das línguas européias e, mais especificamente, da portuguesa. Ele possibilita, com a cristalização do gesto de interpretação ali constituído simbolicamente, a naturalização desse sentido de falta para as línguas e para os sujeitos que as falam: é como uma evidência dessa precariedade e dessa deficiência que ambos serão ouvidos e descritos, ou seja, interpretados. Esse sentido de deficiência, falta, precariedade não estaria ainda reverberando, deslocado para o falar do brasileiro, na maneira de significar como falamos, tal como discutimos no início desse artigo?
A análise desses textos históricos que falam sobre as línguas permitiu caracterizar um tipo de raciocínio através do qual se construía uma forma de conhecimento sobre “as coisas do Brasil”, seus habitantes e as línguas que circulavam. Permitiu, dessa forma, verificar os diferentes status atribuídos às línguas e às posições discursivas ocupadas pelos sujeitos falantes. E permitiu verificar, também, a concomitância, a convivência conflituosa entre a língua geral, as línguas indígenas, a língua portuguesa e outras línguas europeias que por aqui circulavam nesse período.
O século XVIII traz uma mudança drástica: a língua geral, assim denominada pelos jesuítas, que era largamente utilizada por toda as capitanias – tanto nas cidades quanto nos engenhos, nas fazendas – é proscrita, é silenciada no mesmo gesto de política colonial que produz o banimento dos jesuítas das terras da colônia. Em 3 de maio de 1757, implementa-se o Diretório dos Índios (“Diretório que se deve observar nas povoações dos Índios do Pará, e Maranhão”), com a imposição real da língua portuguesa como língua exclusiva da colônia, sendo concomitantemente ordenada a interdição da língua geral.
Em seu parágrafo 6, pode-se ler a ordem real:
Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações, que conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos Povos conquistados seu próprio idioma, por ser indisputável (sic), que esse é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se introduz neles o uso da Língua do príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo Príncipe. Observando pois todas as Nações polidas do Mundo este prudente, e sólido sistema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer nela o uso da Língua, que chamaram geral; invenção verdadeiramente abominável, e diabólica, para que privados os Índios de todos aqueles meios, que os podiam civilizar, permanecessem na rústica, e bárbara sujeição, em que até agora se conservaram, para desterrar este perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e Meninas, que pertencerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da Língua própria das suas Nações, outra chamada Geral; mas unicamente da Portuguesa na forma, que sua Majestade tem recomendado em repetidas Ordens, que até agora não se observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado. (Documentos vários do Maranhão e Grão Pará. 1719-1809. Volume 9. Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico do Brasil.)
O Diretório, um conjunto de prescrições que visavam organizar em várias instâncias as condutas colonizadoras na região norte da colônia, foi implementado pelo Governador das Capitanias do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal. Em 17 de agosto de 1758, um alvará régio estendeu seu alcance e sua aplicação para toda a colônia. A extinção do Diretório só se efetiva quarenta anos depois, por força de uma carta régia promulgada em 12 de maio de 1798.
Depreende-se que o Diretório encontra-se filiado a um imaginário histórico constituído pela vontade de uma universalidade que relaciona língua, nação conquistadora e nação conquistada. E o sentido de língua (oficial), aqui, é o idioma de um povo conquistador, no caso o povo português em sua semelhança postulada com outras nações civilizadas. Língua não é mais um instrumento catequético, mas é exclusivamente um elemento constitutivo da civilização europeia, uma civilização inclusiva, ou seja, que quer incorporar imaginariamente o índio como súdito. Pode-se mesmo afirmar nesse ponto que civilização e nação, aqui, não têm o mesmo sentido para os portugueses e para os jesuítas, ainda que sejam sentidos que supõem uma única língua: a portuguesa. Outro ponto importante para ser destacado: o sentido de Língua Portuguesa como língua de conquista traz uma memória já inscrita nas primeiras gramáticas da Língua portuguesa: “É melhor que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma.” (Oliveira, 1975)
A diversidade linguística (línguas indígenas e línguas europeias que circulavam na colônia), que antes estava submetida à língua geral, continua cedendo seu lugar à unidade a partir da língua portuguesa, ainda que imaginária. A imposição do português como única língua a ser falada e ensinada na colônia representa a possibilidade de transparência e controle, por parte do poder real, do sujeito colonizado. Mais ainda, visa a transparência de fato na gestão do cotidiano da colônia brasileira a partir do século XVIII.
O importante é entender que essa imposição produz efeitos: um efeito de homogeneidade (ou de ficção de monoglossia, como vimos anteriormente); um efeito de evidência (aqui sempre se falou português) e o silenciamento das línguas indígenas. Essa política de línguas instituída no século XVII reverbera no Estado brasileiro nos séculos seguintes nas polêmcas entre gramáticos e literatos, entre gramáticos e linguistas, e ainda hoje...
A questão da língua nacional provoca desconforto nos discursos de independência sobre a língua. A língua será significada como continuidade ou como ruptura? Como saudosismo ou como instauração do novo? (Mariani e Jobim, 2006) Nesses discursos, os ideólogos da independência, quando oriundos das elites, constroem sentidos para fazer emergir um nacionalismo que para se constituir é significado naquela que foi a língua do colonizador. Uso o verbo no passado – “foi a língua do colonizador” – porque de fato, para além de alterações vocabulares e morfofonológicas, para além do desconforto que sua utilização pode causar nos discursos dos ideólogos[1], há que se considerar que ocorre um processo de ressignificação da língua do colonizador como língua nacional enquanto objeto simbólico.
No século XIX, durante os anos de nação independente, discute-se o nome da língua do Brasil: Língua brasileira? Português-brasileiro? Língua portuguesa? Discute-se a especificidade da língua falada aqui (“o povo que chupa o caju não pode falar da mesma forma que o povo que sorve a nespera”, como afirma J. de Alencar, no prefácio de Sonhos d’Ouro), mas não se discute a ideia de unidade imaginária que recobre a nação: a evidência de que no Brasil se falava português nem aparece na primeira constituição do Império.
Em termos de Brasil, há uma tensão presente nos discursos políticos que visavam conferir essa qualidade de pertencimento a um certo lugar: a dispersão dos falares do português-brasileiro somada às inúmeras línguas indígenas e a persistência de uma vontade político-ideológica de unificação que passava, necessariamente, pela constituição de uma língua nacional homogênea. Administrar o território brasileiro como Império ou como República foi um processo político e também linguístico que se realizou com o desenvolvimento de saberes linguísticos sobre uma língua nacional almejada.
Além disso, temos que a constituição da nação, sobretudo após o advento da República, corresponde a um processo de transformação da sociedade. Como atribuir o determinante ‘brasileira’ a uma língua de colonização em uma nação que se moderniza? Em 1935 e em 1946 a questão da denominação retorna na forma de projetos de lei e resoluções jurídicas (Dias, 1996), mostrando o quanto demandas político-discursivas de fixação de uma língua nacional e de um nacionalismo linguístico permaneciam atuais e atuantes. Falar na língua nacional como língua brasileira era defender a ideia de uma língua comum, produzindo como “efeito a aglutinação de indivíduos de um mesmo território sem que se colocasse em causa a participação desses indivíduos na nação” (Dias, 1996: 75).
Essa vontade de unidade linguística imaginária para a língua falada, somada à ideia de unidade nacional, ganha sua concretude ideológica nos primórdios da Republica em dois congressos do início do século: o congressos de Língua Cantada, em 1937, e o de Língua falada no Teatro, em 1956. (Mariani, 2010) Podemos reconhecer aqui um embrião de política de línguas sendo gestado em ambiente acadêmico. O Primeiro congresso brasileiro de língua falada no teatro (Salvador, 1956) elege o português falado no Rio de Janeiro como pronúncia padrão, tem nas palavras de Celso Cunha (1958), em seu discurso programático de abertura, a defesa dessa imagem de unidade:
As condições peculiares de nossa formação lingüística revelam uma dialectalização que não parece tão variada, tão múltipla e secular quanto a que existiu em vários países da Europa. (...) Ora, se essa característica parece válida para laboratórios de cultura como a Ásia, a Europa e mesmo a África, não o parece menos para os países americanos, cujo passado lingüístico pré-europeu poucos traços deixou no presente. (...) parece que estamos no limiar de uma era sócio-política em que as grandes línguas nacionais tendem a apresentar progressivamente uma unidade relativa muito mais ampla do que a que num passado ainda próximo parecia impossível. (...) uma nação que pelas características sociais e econômicas do mundo moderno, tende progressivamente para uma grande unidade, sem os entraves de um tradicionalismo regional radicado multissecularmente. (Cunha, id., ibid., negrito nosso).
Assim, para o gramático “ a fixação de uma língua-padrão será mais um elemento civilizador e um processo de cultura”. Lembrando o Congresso de Língua Cantada, em 1937, dirá C. Cunha que há lições a serem seguidas: 1) “um fator patriótico de unidade nacional”; 2) “a pronúncia carioca apresenta-se como a mais evolucionada dentre as pronúncias regionais do Brasil, a mais rápida e mais incisiva, a de maior musicalidade na pronúncia oral, a mais elegante, a mais essencialmente urbana”; e, finalmente, 3) que “por ter se fixado na capital do país, um produto inconsciente, uma síntese oriunda das colaborações de todos os Brasileiros e por isso mesmo mais adaptável a todos eles“. (Cunha, 1958)
Sendo praticada pelo teatro, e aos poucos por todos os brasileiros, se produziria uma intervenção única na língua fluida, esse é o sonho de alguns gramáticos naquele momento histórico. Algo que vai além do imaginário dessa UMA língua presa nos moldes da língua imaginária de que nos fala Orlandi (2009). Se as normas tivessem se tornado lei, de fato, talvez essa tivesse sido uma intervenção decisiva sobre a língua falada no Brasil.
Por outro lado, gramáticos e muitos intelectuais se voltam para a diversidade dialetal, reconhecendo a variação lingüístico-cultural durante as aptividades do Primeiro Congresso de Dialectologia, ocorrido em Porto Alegre, em 1958. O Questionário lingüístico-etnográfico brasileiro, de Candido Jucá (filho), apresentado e discutido durante o congresso é bem explícito: “Evidentemente, a maneira de falar das pessoas cultas não está em consideração. O que se quer saber é como o povo fala” (Jucá, 1958: 5). Unidade opondo-se à diversidade, eis a tônica dos congressos de 37, 56 e 58.
Observa-se, nos recortes apresentados, a tensão política entre a língua fluida e a língua imaginária: “Na unidade da língua nacional”, nos diz Orlandi, “o gramático cria o imaginário de UMA língua regida para todos os brasileiros e mostra os desvios, as diferenças (variedades), na uniformidade (nacional)...” (Orlandi, 2002: 206).
O mesmo não se passou quando da colonização linguística de Moçambique. Apenas a partir das Conferências de Berlim (1885) e de Bruxelas (1887), que determinaram a partilha da África pelas potências europeias a partir de regras internacionais uniformes para ocupação do território, que Portugal, em função desse reposicionamento político internacional, passa a administrar mais vigorosamente seu território de Ultramar com medidas socioeducativas que objetivavam de fato a ocupação e a civilização dos povos africanos pela introdução da língua e dos costumes portugueses.
Como já tive oportunidade de dizer (Mariani, 2011, 2012a e 2012b), decretos promulgados em 1845 e em 1869 organizaram um novo sistema educacional, o qual “definia os diferentes tipos de educação a serem ministrados a africanos e europeus” (Ferreira, op. Cit.: 63). Mais para o final do século, novas missões católicas portuguesas se dirigem à África e instituem escolas missionárias voltadas para os portugueses que lá se encontravam, sobretudo para os africanos. Em se tratando de política religiosa, o modo de trabalho em nada diferia dos séculos anteriores: “Os encarregados das escolas das missões estavam sobretudo preocupados em obter conversões. (...) O ensino era geralmente ministrado na língua africana local, e por vezes em português” (Mariani, 2011: 65). É, portanto, a partir do final do século XIX que Portugal começa, de fato, a implementar uma política de línguas a fim de tornar a língua portuguesa a língua hegemônica e civilizatória.
Qualquer língua colonizadora, com o passar do tempo, se modifica não apenas pelo contato com outras línguas, não apenas porque se encontra deslocada da metrópole de origem, mas também em função dos processos de resignificação que entram em jogo em função da colonização. Se não houve um investimento na gramatização das línguas banto, nem houve um investimento, até o século XX, no incremento do português para a população em geral, no momento da revolução e no pós-revolucionário, a densidade da questão lingüística se constitui para os membros da Frente de Libertação Moçambicana (FRELIMO): Como falar-se no e para o mundo moderno? A historicização da língua portuguesa, nesse momento em que a luta pela descolonização ganha um outro contorno: à imagem de língua do colonizador agrega-se a imagem de língua pela independência. Enquanto língua oficial, essa língua do ex-colonizador pode ser considerada língua nacional? (Firmino, 2006, p. 45) Afinal, se é uma língua escolhida para a integração nacional, seria o português uma língua que habitaria a subjetividade de todos os moçambicanos? Afinal, a língua portuguesa nunca chegou a ser uma língua nacional em Moçambique, ou melhor, uma língua materna com sentimento de nacionalidade.
Deste ponto de vista, o caso da política de línguas em Moçambique no período pós-independência, pós-revolução (Mariani, 2012) apresenta questões instigantes e bem diferenciadas. Por um lado, o discurso colonizador português estabeleceu políticas de línguas que produziram uma censura, um silenciamento local (Orlandi, 1984), uma submissão ideológica das línguas banto à língua portuguesa. O discurso revolucionário, por sua vez, estabeleceu inicialmente uma política de línguas com o intuito de construir um homem novo em uma nova sociedade moçambicana unificada, e, para tanto, sem desprestigiar as línguas autóctones, estabeleceu a língua portuguesa como língua oficial. Na década de 70 do século passado, a intervenção do Estado moçambicano sob a política da FRELIMO buscou produzir uma regulamentação na maneira como os moçambicanos se relacionavam com as línguas em circulação, mas não tinha como apagar o modo próprio como as elites e o povo significavam estas línguas. Não é suficiente afirmar “A orientação geral definida pelo Partido FRELIMO e pelo Governo Moçambicano considera a Língua Portuguesa um factor de unidade nacional.” Uma afirmação política como essa em um Estado plurilíngue nascente não apagou a história política inscrita, principalmente, no modo como os moçambicanos em geral significavam as línguas banto e a língua portuguesa, em função da memória que constitui essas mesmas línguas. Talvez fosse o caso de o Português ser uma língua segunda, e apenas isto. Havia uma memória inscrita no português falado pelos moçambicanos: o português falado pelo nativo de Moçambique era chamado de “pretoguês” (Firmino, 2005) e, ao mesmo tempo, os revolucionários supunham a possibilidade de moçambicanizar o português. História e língua assim se tocam e materializam as contradições do período pós-revolucionário, marcando tanto a impossibilidade do legislar sobre tudo quanto o irrealizado de planejamentos administrativo-linguísticos do tudo dizer de determinada maneira.
Mencionei os falantes e os revolucionários...como ficaram submetidos seja como meros falantes, seja como aqueles que fazem as políticas. aos efeitos de uma memória da colonização linguística, com suas políticas de línguas.
Ponderações finais...
Vimos que a historicização da Língua Portuguesa no Brasil e em Moçambique - historicização que implica em alterações substanciais em termos de sua unidade e de suas variedades no pais outrora colonizado - quanto a gramatização da(s) língua(s) autóctone(s) com vistas a uma real prática em âmbito da formação social, e lembremos aqui que a “unidade do Estado se materializa na e pelas instituições “ (Orlandi, 2009: 175), propiciam uma real representação política dessas línguas.
No estabelecimento de uma política de línguas, quanto vale uma língua? Há alterações substanciais nesse ‘valor linguístico’ do século XIX para o XX. No século XX, o apagamento do político nas línguas tem sido uma tônica, sobretudo nesses tempos neoliberais, quando a economia se sobrepõe ao político...e às línguas. Novas configurações de sentidos têm se materializado no organização das línguas no mercado consumidor, constituindo assim um estranho mercado de línguas: defesa da diversidade? Como?
Nos últimos anos algumas obras relacionando a Lingüística com a Economia têm sido publicadas. (Mariani, 2005) Os economistas Bloom e Grenier (1992) localizam em uma publicação coletiva de 1965 o marco inicial que assinala a constituição de um objeto estudo: as línguas como uma variável econômica.
Sendo as línguas significadas como uma variável econômica, seja por linguistas, seja por economistas, isso permite tomá-las como um elemento a mais em cenários econômicos reais ou projetados, com custos e benefícios a serem calculados. Quais as implicações políticas, quais as consequências ideológicas em tomar as línguas como variável econômica?
Já nos perguntamos em outros momentos: o que significa falar de línguas em termos econômico-financeiros? E considerando que não há língua sem os sujeitos que a falam, atribuir valores econômicos para as línguas não seria também determinar o valor de uma sociedade e o valor dos falantes, tanto no caso de língua materna quanto no caso de se tratar de segunda língua? Como ficam as línguas como elementos simbólicos das nações? O preconceito linguístico deslizaria para preconceitos linguísticos entre nações?
Há um certo discurso político-econômico em circulação proclamando os benefícios e a inevitabilidade da globalização enquanto formação de um mercado mundial único, com uma moeda comum e uma língua comum. Sonhos totalitários que remontam à vontade de invenção do ‘basic english’ em séculos passados... Sonhos totalitários de uma língua única com o apagamento da diversidade...e com a manutenção da desigualdade, pois a diferença é inerente aos sujeitos e às línguas que falam.
Bibliografia
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[1] Veja-se, por exemplo, os dizeres dos constituintes de 1823, a disputa quanto ao nome da língua nacional, as querelas travadas no âmbito literário etc.
Tantas Vozes, Tantos Olhares: Mostra de Línguas, Literaturas e Artes
no Campus Juiz de Fora
Carmem Silvia Martins Leite
Patricia Pedrosa Botelho
Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais
(Brasil)
Introdução
O grande escritor, poeta, cronista Affonso Romano de Sant’Anna, em sua obra Porta de Colégio, consegue captar, de forma extremamente poética e expressiva, os meandros que caracterizam a etapa de vida em que nossos jovens se encontram:
Uma vez uma mulher me disse: vocês jovens não sabem a força que têm (…) Foi essa frase que deu para martelar em minha cabeça a toda hora que uma adolescente passa com sua floresta de cabelos em minha tarde, toda vez que um rapaz de ombros largos e trezentos dentes na boca sorri com estardalhaço gesticulando nas vitrinas das esquinas (…) Por isso, ver um ( ou uma jovem) no esplendor da idade é como ver o artista no instante de seu salto mais brilhante e perigoso ou ver a flor na hora em que potencializa toda a sua vida e imediatamente nunca mais será a mesma. (Sant’Anna, 1995: 39)
Essas palavras, imediatamente, remetem-nos aos nossos adolescentes espalhados pelos corredores, sentados pelas escadas relaxadamente, cheios de energia e de criatividade. Esse é o perfil de nossos alunos do ensino médio integrado aos cursos técnicos de um instituto federal de educação. Ávidos por experiências interativas, desejam o novo, o surpreendente, o debate e a possibilidade de intervenção no processo de ensino e aprendizagem. E parece que nós, docentes, na verdade, não sabemos a força que eles têm.
Segundo Freire (1982: 80), o professor que dialoga, de fato, com os educandos é um educador problematizador que “refaz, constantemente, seu ato cognoscente na cognoscibilidade dos educandos”. Dessa forma, esses alunos “em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também”. E é isto que nossos alunos desejam: serem sujeitos e coautores do conhecimento.
O ensino de Literatura no ensino médio integrado deve-se pautar em novos paradigmas que rompam com a fragmentação do conhecimento e a compartimentação das disciplinas que impedem a articulação e as influências entre as partes e a totalidade. A formação geral imediatista, voltada para os vestibulares, bem como os conhecimentos técnicos direcionados puramente para o mercado de trabalho impedem o reconhecimento dos limites da lógica e do mecanicismo. Não devemos perder de vista que estamos diante de uma sociedade movida por novas relações de produção e por novas formas de comunicação estabelecidas pelas tecnologias de informação e comunicação, e a escola deve preparar o aluno para enfrentar a complexidade de um mundo globalizado.
Partindo desse cenário que permeia a educação do século XXI, os Parâmetros Curriculares Nacionais do ensino médio (PCNs) propõem que o ensino de Literatura seja articulado à gramática, à produção do texto escrito, às normas, “por uma perspectiva maior que é a linguagem, entendida como um espaço dialógico em que os locutores se comunicam (PCNs: 44)”. O aluno, dentro dessa perspectiva, desloca-se do papel de mero espectador para apropriar-se do discurso e divulgar suas ideias de maneira fluente.
Segundo Santos (1989: 65), em sua obra Para uma teoria da interpretação: Semiologia, literatura e interdisciplinaridade, o processo ler/escrever “só se tornará uma práxis, quando forem requeridas novas condições para que todos possam vir a exercitar a atividade criadora. Ler tornar-se-á um gesto mais vivo, mais político, mais feliz e mais integrado à vida diária e social, caso seja praticada a experiência da escritura (verbal, pictórica, musical, corporal)”. Para Santos, do encontro entre professor e aluno, mediado pela literatura, a escola não tem possibilitado ao segundo buscar respostas afastadas da fala do professor. Para se reverter essa setorização, seria necessário que a escola trabalhasse para que “todos, alunos e professores, desenvolvessem a capacidade de intuir, no sentido chomskyano do termo, vivenciando os processos de produção das significações”.
Carmem Silvia Martins Leite /
Sem dúvida, quando o aluno passa a se apropriar do discurso, torna-se capaz de verificar a coerência de sua posição, de compreender o discurso do outro e, consequentemente, divulgar suas ideias de forma objetiva (PCNs, 1999: 20). Assim a “importância de liberar a expressão da opinião do aluno, mesmo que não seja a nossa, permite que ele crie um sentido para a comunicação do seu pensamento”(PCNs, 1999: 44). Acrescenta o documento que “O gostar ou não de determinada obra de arte ou de um autor exige antes uma preparação para aprender a gostar. Conhecer e analisar as perspectivas autorizadas seria um começo para a construção das escolhas individuais.” (PCNs, 1999: 20).
O que podemos observar, a partir de nossa prática, é que nossos alunos deixam o ensino fundamental e adentram o ensino médio com muitas deficiências em relação à compreensão e à produção de gêneros textuais diversos, em especial, aqueles que possuem um caráter simbólico e metafórico, característica esta inerente aos textos literários. Somado a isso, percebemos a dificuldade da formulação de ideias e opiniões pessoais, tendo em vista a carência no desenvolvimento da expressão verbal, tanto na comunicação escrita quanto na oral. Este é o desafio que está posto para nós, docentes: propiciar aos nossos alunos um campo fértil de interação dialógica que os permita articular e compartilhar significados coletivos, aliás, essa é a principal razão de qualquer ato comunicativo.
Relato de experiência: I Mostra de Línguas, Literaturas e Artes do IFSUDESTEMG/ Câmpus Juiz de Fora
Em sintonia com os Parâmetros Curriculares Nacionais e os novos paradigmas contemporâneos de ensino-aprendizagem, os docentes do núcleo de línguas do IFSUDESTEMG – Campus Juiz de Fora - compartilhavam, há muito, a ideia de se criar um espaço coletivo, envolvendo professores e alunos das três séries do ensino médio integrado aos cursos técnicos. O objetivo principal da realização de uma Mostra de Língua, Literatura e Artes seria o de propiciar momentos prazerosos de reflexão crítica, de interdisciplinaridade, de divulgação e de produção do conhecimento de Literatura, para que os alunos pudessem expressar-se de forma criativa, lançando mão de recursos comunicativos e tecnológicos diversos.
Abordar a literatura, a língua e a arte, tendo em vista as noções de intertextualidade e interdisciplinaridade nos levou ao desafio de trabalhar com a Mostra Tantas vozes, tantos olhares...Vivenciamos uma experiência desafiadora, mas ao mesmo tempo gratificante ao ver a possibilidade de efetivar o que nos ensina Paulo Freire:
Acredito que seja nosso dever criar meios de compreensão de realidades políticas históricas que deem origem a possibilidades de mudanças. Penso que seja nosso papel desenvolver métodos de trabalho que permitam aos oprimidos (as), pouco a pouco, revelarem sua própria realidade. (Freire, 2001: 35)
Também, diante da responsabilidade de envolver o aluno e desenvolver suas habilidades para as diversas leituras e expressões como forma de torná-lo crítico e produtor de sua própria história, a Mostra Tantas vozes, tantos olhares..., permite que os estudantes se aproximem de autores, obras e temas tão exigidos no PISM e em vestibulares do Brasil.
O projeto nasceu a partir de conversas informais entre as professoras Teresa Videira e Maria José de Andrade Barino, que também procuravam atender à necessidade de criar mais oportunidades para que todos pudessem ter acesso ao conhecimento, já que, muitas vezes, nem todos tem condições de aprofundar nos estudos. O Projeto representa a possibilidade de participar de encontros que dão condições a eles de concorrerem a uma vaga no ensino superior.
Dessa forma, reconhecemos que:
Os professores não são anjos nem demônios. São apenas pessoas (e já não é pouco!). Mas pessoas que trabalham para o crescimento e a formação de outras pessoas. O que é muito. São profissionais que não devem renunciar à palavra, porque só ela pode libertá-los de cumplicidades e aprisionamentos. É duro e difícil, mas só assim cada um pode reconciliar-se com sua profissão e dormir em paz consigo mesmo. (Nóvoa, 2003: 14).
Assim, num misto de responsabilidade e crença na Educação, surgiu a Mostra Tantas vozes, tantos olhares...- ano I. Os professores do Núcleo de Línguas do IFSUDESTE MG, campus Juiz de Fora, abraçaram o Projeto e ele teve concretizada sua primeira edição em 2012.
O Projeto “nasceu” de modo humilde, prejudicado pela indisponibilidade de tempo para sua efetivação, devido à paralisação dos professores, mas “nasceu” firme. Salas temáticas, que apresentaram obras de autores previamente determinados, foram montadas por todas as turmas do Integrado, por meio de criação de ambientes que recriaram histórias, os alunos ensinaram e aprenderam mais sobre os autores, seus estilos e obras. Do caldeirão da bruxa com frases de Clarice Lispector ao cenário do crime de Agosto, de Rubem Fonseca, tudo inspirava reflexão, análise e troca de conhecimentos. Tudo, cartazes com informações importantes e análises, cartazes com questões de vestibulares, músicas de época, vídeos, desenhos e pinturas, sugeriram um mergulho nas obras dos autores... O atendimento ao público, sob orientação dos professores, foi feito pelas turmas do Integrado previamente preparadas pelo professor.
Enquanto a Literatura impregnava as salas de aulas, abertas à visitação, nos corredores, trabalhos de Arte foram expostos. Em 2012 foi implantada a disciplina de Artes nos Cursos Técnicos Integrados do Instituto de Ciências e Tecnologia – IFET – Campus Juiz de Fora. Foi um ano letivo desafiador, por ser o IFET um Instituto com a grade curricular tradicionalmente direcionada para as Ciências Exatas.
Durante o ano, decidiu-se trabalhar com uma Ementa e um Conteúdo Programático alinhados às Diretrizes Educacionais propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio – PCNEM, 2002. – desenvolvida de forma a habilitar os alunos a interpretar e analisar os textos e narrativas culturais a partir da apreciação, da fruição e das análises estéticas, morfológicas, sintáticas e conceituais, de imagens e/ou obras de arte; analisar, refletir e compreender os diferentes processos da Arte, com seus diferentes instrumentos de ordem material, ideal e poético, como manifestações socioculturais e históricas; ampliar e aprofundar o olhar crítico sobre a produção artístico-cultural do presente e passado, nacional e internacional, compreendendo sua dimensão sócio-histórica e refletindo, respeitando e preservando as diversas manifestações de Arte e suas múltiplas funções utilizadas por diferentes grupos sociais e étnicos; compreender e inter-relacionar as diversas obras de arte através da contextualização pelas vias artística, histórica, social, biológica, psicológica, filosófica, ecológica e antropológica, entre outras; desenvolver a pesquisa no campo teórico e prático através de produções artísticas, individuais ou coletivas, em suas variadas linguagens, experimentação de materiais, técnicas e suportes, além de proporcionar consultas em livros, internet e visitação a exposições.
Ao longo do ano letivo foram trabalhados os seguintes conteúdos: Desenho de Observação (Formas, Luz e sombra, Enquadramento, Proporção, Ocupação do espaço), Perspectiva (Construção do Espaço Ilusório, Ponto de fuga, Gradação de tons, Proporção, Composição), Pré-Modernismo (Desconstrução da forma, Monet, Van Gogh, Matisse, Gauguin, Picasso, Dalí), Pautas da Arte Moderna (Artistas e Obras, Materiais pertinentes ao Período Moderno), Pautas das Tendências Contemporâneas (Artistas e Obras, Materiais, Meios, Suportes, Utilização do Espaço, Montagem de obras na Linha Contemporânea).
O resultado dos trabalhos produzidos foram transformados numa exposição coletiva com cerca de oitocentas obras feitas pelos alunos dos primeiros anos integrados e foram apresentadas na Mostra Tantas vozes, tantos olhares...- ano I.
Essa exposição começou a ser construída com cerca de um mês de antecedência. Os próprios alunos trabalharam nos títulos das obras, montaram os painéis e ajudaram na montagem da exposição. Com essa produção, puderam ter contato com processos de curadoria ao tomarem decisões quanto aos critérios de organização da mostra, além de desenvolveram, ainda, a capacidade de trabalhar em equipe e a lidar com grandes formatos.
Em 2013, o Projeto terá sua segunda edição. Pretendemos que venha ampliado. Filmes, documentários e curtametragem serão apresentados e discutidos pelos alunos e professores; oficinas serão oferecidas para que sejam discutidos temas como leitura de imagem, charges e histórias em quadrinhos; intertextualidade; releitura de pinturas clássicas; leitura de poesias, encontros de Inglês, Espanhol e LIBRAS... A música apresentará seus talentos nos intervalos das atividades programadas. O Projeto crescerá porque sonhos se somam a sonhos e se transformam em realidade.
Carmem Silvia Martins Leite /
Além de toda a nova estrutura, nosso Projeto se abrirá para a comunidade, o que possibilitará que mais estudantes se banhem nas águas na arte e da cultura, porque compartilhar conhecimento é o segredo da verdadeira sabedoria e “ninguém é professor sozinho, isolado” (Nóvoa, 2003).
Temos a certeza de que o Projeto não parará de crescer, porque sabemos que de fato, o resultado qualitativo de nossa mostra só foi possível, sem dúvida, pelo comprometimento e interação entre professores e alunos. Houve, inicialmente, uma adesão entusiasmada por parte dos docentes de Português e Literatura, Língua estrangeira e Artes que, em consonância com uma abordagem interdisciplinar, ofereceram uma gama de opções comunicativas aos discentes, um novo olhar epistemológico, em favor de uma nova concepção de ciência, de arte, de filosofia que não é isolacionista, mas que, sobretudo, dialoga com outros saberes. E, em resposta aos estímulos e orientações mediados pelos professores, os alunos mostraram “a força que têm”, dando asas à criatividade.
Por meio de encenações, dinâmicas, desenhos, pintura, cartazes, pesquisas biográficas, documentários, exposição escrita e oral, nossos jovens deram verdadeiras aulas sobre estilos literários, movimentos artísticos, reflexões filosóficas e existenciais, movimentos históricos e políticos, apresentando outras leituras e novos olhares sobre os conteúdos estudados no contexto da sala de aula. Enfim, revelaram suas habilidades e inteligências múltiplas (na visão de Howard Gardner), cujo potencial encontrava-se “adormecido”, pronto a ser despertado, conforme nos lembra Rubem Alves, comprovando que, realmente, a aprendizagem acontece a partir de estímulos variados.
Impressões e relatos dos docentes:
Profª. Drª. Aline Alves Fonseca
Com a turma de terceiro ano integrado ao técnico em eletromecânica, fizemos uma oficina de arte para explorar a intertextualidade existente entre a literatura e as artes plásticas. Trabalhamos as obras literárias: Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto e O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago. Em algumas aulas preparatórias, estudamos um pouco sobre a vida e a obra desses autores, o contexto histórico em que tais obras foram produzidas e os movimentos artísticos que estavam em vigor na época em questão. Com a ajuda da professora Paula Veloso, vimos um pouco da história dos movimentos artísticos efervescentes na segunda metade do séc. XX como a Pop Art e o Concretismo.
Em aulas destinadas à oficina de arte, os alunos foram convidados a produzir imagens que revelassem os sentimentos e as interpretações que construíram sobre as obras literárias lidas anteriormente. Tínhamos os seguintes materiais disponíveis: papel para desenho do tipo cartolina nas cores branca e preta, lápis de cor, canetas hidrográficas, tintas guache e gizes de cera. Os alunos podiam escolher trabalhar com quaisquer desses materiais e, então, produziam a imagem. Para ajudar na inspiração, as carteiras foram dispostas em um grande círculo, para que os alunos pudessem interagir, e reproduzimos músicas de artistas brasileiros da segunda metade do sec. XX, como: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Legião Urbana, Cazuza, etc.
Após a feitura das imagens, trabalhamos o gênero textual “legenda de arte”, cada aluno escolheu um nome para sua obra, descreveu os materiais utilizados e as dimensões da imagem e narrou, de forma sucinta, as inspirações e interpretações cabíveis de sua produção.
O trabalho final foi exposto na Mostra de Línguas, Literaturas e Artes, realizada no dia 15 de dezembro de 2012, no Campus Juiz de Fora. Uma sala de aula foi preparada pelos próprios alunos e se transformou em uma “Galeria de Arte” onde os alunos recepcionavam e apresentavam suas obras aos visitantes.
Figura 1: Legenda da imagem – “O DESCONHECIDO (33 x 55.5 cm).
Cartolina e caneta hidrográfica. A obra mostra a ilha desconhecida à procura de si mesma.”
Com esta atividade, os alunos foram instigados a se posicionarem como autores, como produtores de seus próprios conhecimentos, foram desafiados a utilizar a linguagem visual para expressar seus sentimentos e suas interpretações com relação às obras literárias estudadas. Essa leitura intertextual das artes tem se mostrado uma tendência em exames como o ENEM.
Profª. Ms. Carmem Silva Martins Leite
Minha experiência com o Ensino Médio Integrado, em específico, com a turma do 1º Eletromecânica, refere-se ao meu trabalho de sala de aula com a Língua Inglesa. De acordo com a leitura de alguns estudiosos da área de linguística, que defendem que “ensinar uma língua é, sobretudo, ensinar a partir da realidade do aluno”, pensei que seria pertinente oferecer ao nosso aprendiz a oportunidade de realizar uma pesquisa voltada para utilização dos Empréstimos Linguísticos da Língua Inglesa em nosso cotidiano. A partir dessa proposta, notei que a maioria desses alunos não sabia da contribuição da língua inglesa para a formação de nossa língua. O próximo passo foi estimulante e envolvente, pois junto deles pude acompanhar e orientar o trabalho de pesquisa, desenvolvido com o apoio de materiais diversos, tais como livros de língua inglesa e outros referentes ao assunto, além do auxílio do computador em sala de aula. E, para terminar, no dia da Mostra, fizeram a exposição dessa pesquisa através de um Picture Dictionary confeccionado por eles e de uma explanação oral desse material didático.
Carmem Silvia Martins Leite /
Profª. Ms. Solange da Silva Augusto dos Santos
Figura 2: Mostra de cartazes feitos pelos discentes
A mostra intitulada ‘Tantas vozes, tantos olhares’ foi um projeto idealizado pelas professoras, Teresa Maria Videira e Maria José Barino, que envolveu o Núcleo de Línguas. Tal projeto foi relevante, pois mobilizou uma atividadade extra-classe, que envolveu a criatividade e participação dos alunos e professores. No caso da disciplina de Literatura brasileira, revelou-se uma estratégia didático-pedagógica muito produtiva. Os alunos, ao montarem as salas temáticas sobre as obras literárias, desenvolveram os seguintes aspectos psicossociais, tais como: interação e colaboração, além de desenvolver a competência linguística de apresentar por escrito e, oralmente, a exposição de um trabalho para o público, que visitou a mostra de artes, línguas e literaturas.
Prof. Ms. Vicente de Paulo Ferreira
A 1ª. Mostra de Arte e Literatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas, Campus Juiz de Fora, que teve como subtítulo Múltiplos olhares, deu-nos a oportunidade de, exercitando o nosso olhar pedagógico, poder observar como nossos alunos e alunas – envolvidos no processo – agiram e reagiram à proposta de trabalhar com autores indicados ao PISM/2012. Ao pesquisar a vida e obra desses escritores, com o desafio de expor o resultado a outros estudantes da instituição e seus convidados, quais olhares marcaram a sua performance nesse empreendimento?
O primeiro olhar é o da criatividade. Sem dúvida, ele foi o que mais ressaltou ante o público visitante. Foram relevantes: a ideia de criar um caminho com pedras para simular a “pedra no meio do caminho” do poema de Drummond (e também o caminho para entrar em contato com a obra drummondiana ali exposta); a de mostrar um aparelho de choque elétrico e outros mecanismos usados em manicômios como tratamento da loucura, como forma de introduzir o/a visitante ao mundo de “O alienista”, de Machado de Assis; os desenhos ilustrativos de diversas obras e autores, com Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros. Ao lado desse olhar, outro não menos importante, foi o envolvimento, o interesse em pesquisar, a dedicação em realizar e, por fim, de explicar aos visitantes o resultado da pesquisa. Cada grupo se esmerou no que fez. E por fazer bem, merece os aplausos de quem pôde se deliciar com esses olhares múltiplos.
Prof. Ms. Wagner Rodrigues Belo
Figura 3: “Feria de la Hispanidad”
O projeto “Feria de la Hispanidad” é uma iniciativa do núcleo de língua do campus Juiz de Fora do IFSudesteMG e visa promover um espaço de apresentação, discussão e reflexão da cultura hispânica no contexto acadêmico institucional. Através de produção e divulgação de trabalhos envolvendo múltiplas temáticas, os alunos tem acesso à diversidade étnico-racial e cultural dos distintos países que adotam o espanhol como língua oficial em seu país, ou ainda àquelas nações que se utilizam deste idioma como língua de comunicação entre os seus habitantes. Temas como músicas típicas, aspectos da culinária, formação social dos países, festas populares, danças, dentre outros, são apenas alguns dos temas destacados no evento. O ponto alto da atividade é a preparação de uma paella valenciana, prato típico da região de Valencia (Espanha), durante o evento e todos os presentes podem se deliciar com um pouquinho da culinária daquele país durante a atividade.
Profª. Drª. Patrícia Pedrosa Botelho
Os alunos de Língua Portuguesa e Literatura dos cursos técnicos de Eletromecânica, de Edificações e de Eletrotécnica participaram da 1ª. Mostra de Arte e Literatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas, campus Juiz de Fora, com documentários, encenações de peças teatrais e exposições por meio de cartazes e representações de xilogravuras para ilustrar as manifestações históricas, sociais e culturais das obras Incidente em Antares, de Érico Veríssimo e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Os alunos apresentaram o conteúdo e a temática presentes nestas obras de modo criativo, perspicaz e instigante para aqueles cujos horizontes ainda não haviam adentrado o “emaranhante” ambiente da pós-modernidade. Os que ali estavam a assistir também contribuíram com informações extratextuais. A transdisciplinaridade completou o evento que reuniu não somente elementos literários, mas também contribuições advindas de outras disciplinas.
Considerações finais
Inegavelmente, a tentativa de romper com a separação entre Linguagem, Arte e Literatura, de um lado, e conhecimento científico do outro possibilita aos nossos alunos uma visão mais complexa de mundo. Uma complexidade, conforme explicita Edgar Morin (2000), que vem de complexus (do grego), e se refere àquilo que é tecido em conjunto, na interação das partes, trazendo uma nova organização do conhecimento. Observamos que todas as áreas do conhecimento buscam, a cada dia, a articulação com outros campos do conhecimento, tais como as Ciências Humanas, Ciências da Natureza, as Ciências Exatas, entre outras. A Medicina, por exemplo, tem buscado conhecimentos da Psicologia, da Linguagem, da Filosofia, para melhor compreender o comportamento dos pacientes a partir de manifestações gestuais, verbais, culturais, dentre outras.
Carmem Silvia Martins Leite /
Cabe a nós, docentes da área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, procurar, também, sempre lançar mão de subsídios interdisciplinares para que possamos, conforme orientação dos PCNs, “criar uma escola média com identidade, que atenda às expectativas de formação escolar dos alunos para o mundo contemporâneo (p. 9)”. Quando “tecemos em conjunto”, ou seja, de maneira sistêmica, práticas pedagógicas mais prazerosas e interativas no campo da linguagem, despertamos em nossos alunos a motivação e a curiosidade para o ato de aprender, como nos orienta o grande filósofo da educação Paulo Freire, e atraímos os jovens para o prazer da leitura, como tão bem explicitou Roland Barthes em seus escritos sobre a linguagem e, principalmente, em sua postura carismática junto a seus discentes durante toda uma vida acadêmica, quando suas aulas, extraordinariamente, abarrotavam-se de alunos que disputavam um espaço para ouvirem o discurso sedutor e democrático do nobre mestre.
É necessário que valorizemos nos jovens seu poder de reflexão crítica, de um pensar diferente que, muitas vezes, não coincide com o do professor, e que pode, até mesmo, ir além. A propósito, isso faz parte da dinâmica do processo dialógico. É como “ver a flor na hora em que potencializa toda sua vida e imediatamente nunca mais será a mesma”, conforme expressa Affonso Romano de Sant’Anna. Em suma, este é um momento único para os jovens, de um extremo florescimento de ideias e criatividade. Daí nós, docentes, não perdermos de vista que o saber realmente assimilado para toda a vida é aquele que é fruto, verdadeiramente, da aprendizagem significativa.
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Linguagens na tela: o impacto da linguagem digital sobre a concepção de escrita
Dinorá Fraga
Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter
(Brasil)
1. Introdução
A estudante liga o computador e, apressada, clica em documentos onde está o arquivo do artigo que fundamenta seu estudo. Recebe, então, o aviso: download, aguardando a imagem. Esta ação e este aviso fazem parte de nosso cotidiano de ações no contexto informatizado. No entanto, pode e deve suscitar um estranhamento: como um texto verbal pode ser considerado como imagem? Em que esta questão pode nos levar à busca da concepção da escrita produzida em telas, pela linguagem digital, no caso, que nos interessa, na tela do computador? Consequentemente, não estaríamos mais diante da clássica visão analítica de considerar linguagem verbal e não verbal e de suas relações como dois sistemas distintos. Estaríamos, agora, diante da escrita como aparecimento do visual. Esta é a proposta deste texto, que argumenta a favor de uma teoria unicista da linguagem quando constituída e manifestada em telas, a partir da linguagem digital, em que linguagem verbal e não verbal estariam diante das mesmas condições topológicas e visuais constituídas como acontecimento material na tela do computador. Tal proposta possui razões epistemológica, filosófica e linguística,que passaremos a explicitar.
2. Razão de ordem epistemológica: as linguagens na tela como elemento visual e topológico envolve a superação das dicotomias
Comecemos pela proposta da indissociabilidade entre tekhné e phýsis. Em Fraga (2011), vemos que técnica e natureza são orientadas pela separação desses dois tipos de conhecimentos. A autora afirma que tekhné é um conceito grego que entende todas as atividades como práticas humanas, desde as mais cotidianas até as mais elaboradas, como as artes plásticas. É um saber fazer humano, diferente do princípio de geração das coisas pelos processos da natureza. Nos dois casos, temos uma poiesis. Em Platão, pela técnica, o homem imita a natureza. Então, a técnica é vista numa posição de inferioridade. Imita a phýsis, sendo, assim, inferior a ela. Para Aristóteles, as coisas artificiais, vindas da técnica humana, são inferiores às coisas naturais porque só essas possuem o princípio do vir a ser.
Ainda com a autora, vemos que, a partir do século XVIII, a atividade técnica vai ser ligada ao saber científico. Este processo culmina no século XX com a junção definitiva entre ciência e técnica expressas no termo ciências tecnológicas. Forma-se, então, uma tecnosfera, em que a tecnologia é transformada em cultura. Nesse campo, inserimos uma abordagem da escrita em superfície plana bidimensional, como é o caso da tela do computador.
Heidegger (2002) propõe o argumento geral de que a posição que pensa a técnica como meio não torna acessível a essência da técnica. Considerar a técnica como meio é uma concepção instrumental de técnica. A análise de técnica como fim e meio se refere à teoria das causas material, formal e eficiente. O produto técnico não tem em si o princípio de seu movimento. Contudo, porque faz passar do estado escondido ao não escondido pelo trabalho científico, torna-se desvelado. Passa, neste sentido, a ser phýsis. Surge a técnica como poiesis e está ligada à phýsis. A técnica tem um sentido que permite o desvelamento. Seu ponto decisivo não consiste na utilização dos meios, mas no desvelamento. Neste sentido, a técnica é “pro-duction”. E é neste campo de manifestações culturais como uma phýsis digital que inserimos, aqui, a escrita na tela do computador.
Na superfície plana, se instaura o movimento que, pelos programas informatizados, aproxima a técnica de uma espécie de poder autosuficiente, ao estilo do homem bicentenário de Asimov, quando o robô chega ao estado de sentir emoção e se humanizar, envelhecendo e amando. Necessário, assim, rever a concepção de linguagem verbal escrita nas superfícies como relação de associação com os sons da fala e com as formas sonoras de organização. Pela linguagem digital, o verbal se instala e se desvela no campo das imagens.
Nessa linha de argumentação, queremos pensar a genealogia da escrita como técnica entendida como fusão entre phýsis e teckné. Propomos, então, de acordo com Fraga (2011), uma relação de técnica diretamente vinculada à comunicação. A tecnologia enquanto poder do ser humano se automatiza, logo, se torna autopoiética na medida em que comunica, gerando sentidos pela persuasão e interpretação para muito além da decodificação de sinais, ou de signos.
É neste momento que é possível pensar a tecnologia como phýsis. Inserida na forma de constituição acima referida, ela se fundamenta como autopoiesis, entre outros por um dos aspectos principais vinculados ao surgimento da linguagem digital: trata-se da crise da representação. Sobre isso, Foucault (1992) apresenta uma proposta de surgimento de representação. Em sua epistemologia arqueológica propõe a construção dos significados na relação entre as palavras e as coisas diferentes da relação entre palavras e sons. Esse aspecto já nos possibilita pensar as palavras como coisas na tela, logo, como imagem. Na Idade Média, as palavras e as coisas coincidiam no jogo das similitudes.
Foucault (1992) propõe quatro tipos de similitudes: a emulação, em que as coisas dispersas através do mundo se correspondem como a luz dos olhos à luz das estrelas; a conveniência entre a alma e o corpo, por exemplo: foi preciso que o pecado tivesse tornado a alma espessa, pesada e terrestre para que Deus a colocasse nas entranhas da matéria; a analogia que institui o semelhante através do espaço, a relação do céu com os astros encontra-se igualmente na erva com a terra; finalmente, as simpatias atraem peso para o solo e o leve para o éter, impelem as raízes para a água, as rosas de um funeral tornam triste e agonizante quem respirar seu perfume. Há então uma indiferença entre o que assinala e o que é assinalado.
Nesta episteme medieval, a escrita se mistura com as figuras do mundo. A linguagem não é um sistema arbitrário. Faz parte do mundo com suas similitudes e assinalações. Está entre as figuras visíveis da natureza, logo, phýsis. Os nomes estão depositados sobre aquilo que designam, assim como a força está escrita no corpo do leão. Surge uma indistinção muito importante entre o que se vê e o que se lê. Daí a importância da escrita sobre a oralidade e o fortalecimento da concepção de escrita como imagem, coisa que se apresenta, antes de tudo, como algo material diante de nossos olhos. Nos séculos XVII e XVIII, a linguagem, enquanto coisa escrita, assume o funcionamento de representação como algo que mostra e refere algo que está fora. Bacon e Descartes, cada um à sua maneira, fazem a crítica da semelhança, retirando-a da indiferenciação das similitudes e inserindo-a no ato racional de comparação. Epistemologicamente, isto torna possível separar as palavras das coisas pela arbitrariedade e convencionalidade, aspecto prioritário no trato dos estudos linguísticos na ciência moderna. Surge o signo, talvez como a maior tecnologia da modernidade, mediando a coisa que representa através do significante, imagem sonora, à coisa representada (a idéia). E nesta relação desaparece a realidade, substituída, agora, por um sistema de signos linguísticos.
A linguagem assume, aqui, um papel funcional de veiculação de idéias, social e historicamente constituídas, tornando-se transparente. O real, sensível e experienciado, desaparece abrigado pelos conceitos que buscam ser universais.
A esta condição dicotomizada, de cisão da modernidade entre phýsis e teckné propomos que a teckné, por seus produtos comunicacionais digitais, institui uma empiria, que passa a estar no mundo, constituindo o que está sendo chamado neste trabalho, de segunda phýsis — os produtos tecnológicos comunicacionais digitais são detentores de um poder autopoiético. Eles não se colam à realidade, a constituindo como referente, mas a criam por códigos constituídos por sinais elétricos. Nessa linha de pensamento, a escrita pode passar a ser encarada como uma produção cultural da teckné entendida, então, como imagem, porque constituída como visibilidade em uma dada superfície.
A critica às dicotomias, que aqui centralizamos na questão da técnica e da natureza, é possível pela geração de um espírito de época permitido por avanços científicos como a dialética partícula/onda, emque a matéria é uma manifestação de um modo de ser da onda. Não existe matéria e energia como realidades separadas, mas como manifestação de um só modo de existência que é a onda. Seria, talvez, uma visão monista proposta por Espinoza. O que estamos propondo é que as tecnologias digitais constituídas em superfícies planas, no caso das escritas pelo argumento epistemológico apresentado, apresentam essa lógica monista no âmbito da escrita, constituída como uma substância gráfica comum ao verbal e não verbal. Para Espinoza, o que existe é um conjunto de fenômenos que pertencem a uma única matéria em permanente atividade, em nosso caso uma única substância gráfica imagética, única matéria, em movimentos formais de expressão, linear e não linear, a convidar para que sejam dotadas de diferentes significações próprias por suas formas de organização, mais da razão, no caso do verbal, ou das emoções, sentimentos e, também, da razão, no caso do não verbal. Ambos, contudo, imagéticos, por isso, a expressão apresentada aguardando o download da imagem.
3. Razões filosóficas: imagens e comunicação digital
É nas tecnologias digitais, ou numéricas, que as características da tecnologia comunicacional como uma segunda phýsis aparecem de forma mais radical. Couchot (1999) afirma que, na figuração ótica, cada ponto da imagem ótica corresponde a um ponto do objeto real, contudo, nenhum ponto do objeto real preexistente corresponde ao pixel. O pixel é a expressão visual de um cálculo efetuado pelo computador. O que preexiste a ele é o programa e não o real. A tecnologia informatizada não é mais maquínica como a câmara escura ou o tubo de raios catódicos, mas é abstrata e provém de um domínio científico. Nesta lógica, passamos, então, a usar a expressão criar, gerar, quando nos referimos às tecnologias, logo na mesma função da natureza que é de autopoiesis, numa aproximação com o primeiro sentido grego de natureza.
Trazemos Flusser (apud Baitello Junior, 2005), quando afirma, referindo-se à contribuição de Flusser (1985) ao pensamento comunicacional, que este levantou duas questões importantes: a importância crescente das imagens e da comunicação digital. Flusser entendeu que o código da escrita não seria mais o código dominante do futuro e que imagens em movimento, imagens técnicas, produzidas por aparelhos, convencionais ou digitais, ganharam muito espaço. Notemos que a proposta do presente texto não é essa. Tal abordagem de Flusser (1985) separa imagem de texto verbal, numa perspectiva contrária, então, ao que está sendo aqui defendido. Contudo, chama a atenção para a questão da importância que Flusser dá às materialidades das tecnologias e que os impactos materiais destas eram pontos que apareciam com bastante força em seu pensamento. Ele comungava da tradição materialista, que avaliava as configurações tecnológicas e as estruturas materiais dos meios. Nesse aspecto, somos partidários da proposta de Flusser. Ao cogitarmos a visão unicista, ou monista, da escrita como imagem, somos adeptos dessa ênfase na materialidade dos meios que acabam sendo a mensagem, pela força autopoiética do meio, conforme McLuhan e Fiore (1997) e a teoria semiótica (Greimas, 1996), em que a função de forma de expressão é constituidora dos efeitos de sentido, os conteúdos a partir das formas.
Outro aspecto de discordância em relação Flusser (1985) vem de que, em nossa proposta pela perspectiva monista aqui apresentada, não haveria graus de abstração como o filósofo propõe. Ele Sugere que a imagem, ou o não verbal para ele, seria abstração de primeiro grau porque representa o mundo de maneira simbólica, abstraindo duas das quatro dimensões (tempo e espaço). Com a escrita linear, surge o pensamento histórico. Segundo o autor, ainda, os textos verbais são abstração de segundo grau e buscam explicar as imagens. Na proposta aqui apresentada, na tela, por serem formas de expressão gráficas em superfícies planas, o que aparece são textos apreendidos, ambos, simultaneamente, por estesia, sensações e, pela razão, como forma de apreensão singular de textos na tela, indiferenciados entre verbal e não verbal, em um primeiro momento de sua materialidade, as visualidades. Novamente, aparece a perspectiva monista. Assim, o não verbal pode abrigar conceitos e o verbal pode provocar leituras estésicas, tal como as imagens poéticas fazem revelar na cultura do livro impresso. Agora, letras, palavras, frases têm movimento material, têm efeitos de tridimensionalidade, logo, de espaço, provocadores de sensações, emoções e pensamento. Não cabe, então, tipos de abstração do mais ao menos convencional e arbitrário em relação à realidade porque a escrita na tela é, ela mesma, materialidade.
Destacamos, aí, as linguagens digitais, em seu poder de criar mundos e sentidos. Os sentidos, que por elas se constituem, articulam o eixo dos conceitos historicamente produzidos aos sentidos em que uma das instâncias de produção é o corpo. As tecnologias midiáticas e, em particular, as digitalizadas, com sua característica cibernética, geram realidades. Devido às suas condições de linguagem numérica, criam novos efeitos visuais e auditivos, constituindo no ser humano que com elas convive, novos modos de conhecer, que passam necessariamente pelo corpo, como sua instância de produção, conforme relatos de Kerckhove (1995) obre experiências desenvolvidas no Laboratório de Análise dos Media da Simon Fraser University, em Vancouver.
Nestas experiências, a interação midiática é instituída no plano sensorial mais que no plano intelectivo. Retoma-se a importância da fenomenologia como a lógica da expressão do sensível, cujo sentido ocorre antes no corpo que na consciência. Aí é o corpo, em primeiro lugar, que instaura a instância do sentido comunicacional, e em nosso argumento a informática é uma mídia.
Frayze-Pereira (1995), recuperando o estudo da fenomenologia nas teorias da linguagem, lembra que é necessário retornar às “coisas mesmas”, a um mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata e dele dependente como a geografia em relação à paisagem.
Contudo, é nas tecnologias digitais ou numéricas que as características da tecnologia comunicacional como uma segunda phýsis aparecem de forma mais radical. Couchot (1999) afirma que na figuração ótica cada ponto da imagem ótica corresponde a um ponto do objeto real, contudo, nenhum ponto do objeto real preexistente corresponde ao pixel. O pixel é a expressão visual de um cálculo efetuado pelo computador. O que preexiste a ele é o programa e não o real. Daí decorre que seja o corpo a primeira instância de produção de sentido e nele apontamos a indiferenciação entre verbal e não verbal, últimas fases dos sentidos já formados. Somente a seguir, como ato mental da consciência, surgem as leituras diferenciadas, mas, sempre, entregando-se aos efeitos do plano da expressão.
A estesia é, aí, a forma de apreensão dos sentidos do mundo exterior, possibilitando a experiência pelo corpo, enquanto, assim, entende-se que movido pelo prazer, uma dimensão de manifestação de ser. Haveria uma constituição da lógica da comunicação que não seria dada pela lógica mercantilista, de aquisição de bens, mas por uma lógica do humano, em seu sentido de sensibilidade, estesia, em que o fim é o ser humano e suas possibilidades tecnológicas de construção de sentido.
Nesse aspecto, o uso da mídia informatizada revelar-se-ia como altamente recomendável do ponto de vista educacional pelo poder de desenvolvimento do humano. Greimas (1996) afirma que, no formigueiro das tomadas de decisão sobre a semiótica, há uma voz que busca se ocupar das tensões instáveis e do dinamismo das estruturas. Afirmamos que diante de qualquer texto digital há essa tensão em que a cultura da racionalidade, voz vigente e poderosa, manda buscar as diferenças e que o corpo, numa cognição expandida, orienta para buscar as sensações e os sincretismos. Ambos estão articulados em suas diferentes formas de expressão, mas unidos pela substância gráfica e dinâmica, devido ao movimento. Nessa dinâmica, assumimos que o sensível e o inteligível se sustentam mutuamente e que ambos são regimes de construção do real como efeito de sentido. Como propõe Landowski (1995) para outros contextos de linguagem, a significação já está presente no sensível, mola mestra das significações. Entendemos que, na mídia informatizada, este sensível não é apenas o que sentimos, mas o que significa.
4. Aspectos linguísticos e semióticos da linguagem na tela
Insistimos que este texto tem por objetivo ocasionar uma reflexão sobre a enunciação do texto na tela do computador. Começamos pelo gesto de lincar, chamado por Johnson (2001) de linking, em se tratando da tela do computador. Já na produção de sentido na página impressa, está explícito o movimento, tradicionalmente conhecido, como escrever. O desafio é compreender no que o escrever do texto produzido pela linguagem analógica, própria da escrita em dispositivos impressos, se difere do linking produzido pela linguagem digital, e em que ambas as linguagens constituem modos diferentes e semelhantes de escrita. Neste caso, os diferentes tipos de tela seriam constituidores de diferentes tipos de escrita? Este texto se ocupa em fazer uma argumentação sobre esta pergunta, que pode ser decorrência do desenvolvido até o momento.
Como hipótese inicial, estamos entendendo que há duas possibilidades de produção de sentido que se materializam em dois atos de escrita para efeitos de interesse das reflexões propostas para este texto: o da página impressa, também tela no sentido topológico e o da tela de computador. A partir da reflexão sobre as perguntas acima, somos levados a pensar nas implicações que essas escritas, como atos de produzir sentido, trazem ao ensino e aprendizagem de línguas. Dessa forma, pretendemos considerar, como ponto de partida, a tela não como um mero suporte de ativação do interesse e do prazer ou como um elemento secundário no processo de aprendizagem, mas como um ambiente constituidor de significados que nascem nas interações dos atos de lincar e clicar como novos atos de escrita, assim como se chama escrever o ato de pegar a caneta ou o lápis e agir sobre uma superfície plana chamada papel. Isso a coloca numa posição de interface. Vamos começar situando os diferentes tipos de escrita como ligados a uma cultura específica: a do sincretismo. Essa cultura produz um espírito de época que orienta para a coexistência de várias possibilidades de escrita que podem acontecer simultaneamente, a partir de uma genealogia comum conforme desenvolvido que é a imagem, regime do visível. A cultura do sincretismo permite apresentar o conceito textos sincréticos trazido pela semiótica. A partir do conceito da semiótica de textos sincréticos, passamos a considerar insuficiente para a compreensão e produção dessa nova arquitetura de texto, que se constrói na tela do computador, a ideia de que o texto não verbal complementa o texto verbal.
Inicialmente, é relevante que discutamos o conceito de enunciação do texto na página impressa, que é o ato de escrever, já que os atos de clicar e lincar e de zapear, próprios da enunciação do texto na tela do computador são gestos de escrever também aqui propostos como visão lato senso de escrita. A escrita na tela do computador permite ao leitor uma liberdade de ação maior, a qual abarca alternativas de interação com o texto como conexão, escolha, travessia de níveis temporais, espaciais e sonoros diversos, enfim, alternativas multilineares de esgotar as possibilidades de interação com a mídia. Flusser (1985), ao se referir à câmera fotográfica, destaca o nível temporal de interação, o qual compreende olhares contemplativos ou breves, e o nível espacial, o qual abrange visualizações ampliadas ou diminuídas na tela. A interação com o texto da tela do computador inclui, além destes níveis propostos por Flusser, o nível sonoro, mas pode obedecer a esta mesma lógica, aspecto este que uma pesquisa de ordem empírica poderá revelar.
5. O texto na página impressa: um contraponto
A compreensão da escrita na página impressa exige que comecemos pelas características tradicionais do signo linguístico que organizam a compreensão do texto linguístico em qualquer espaço em que ele é constituído. Para Saussure (1971), o signo une um conceito a uma imagem acústica, ou seja, o significado ao significante. Uma imagem acústica é a impressão psíquica do som de uma palavra, ou melhor, uma imagem sensorial. Podemos, por exemplo, falar conosco mesmos sem mover os lábios ou a língua. Uma imagem acústica é, portanto, a representação da palavra enquanto fato de língua virtual, fora da realização da fala, de acordo com Saussure (1971).
O signo apresenta o caráter linear, no qual o significante acústico desenvolve-se no tempo, em extensão mensurável numa só dimensão: linha. A linha, própria do texto impresso, contém elementos dispostos um após o outro, numa cadeia, linha após linha, página após página.
É no âmbito dos estudos atuais sobre a linearidade em Saussure (1971), a partir de Arrivé (2010) e Bronckart (2009), que surge a possibilidade de trazermos os estudos sobre linearidade para a ideia de sequencialização no espaço e não no tempo. No texto digital, existe em uma linearidade situada no espaço e não no tempo conforme o significante auditivo (da cadeia da fala) e assim como Arrivé (2010) traz vemos que os manuscritos de Saussure (1971) se referem a uma fisiologia do som, assim como em uma nota do CLG há uma referência à imagem acústica do ato fonatório. (Saussure,1971). Propõe-se, então, no estudo da produção do texto digital, a possibilidade de pensar em uma imagem motora das mãos sobre uma superfície plana, isso é, sobre o espaço, constituinte topológico não verbal do texto na tela, logo ligado à não linearidade da imagem. Tal imagem, constituída segundo a mesma lógica de significante, imagem de algo materializado, teria uma forma de expressão organizada pelos links. Aqui se apela para Hjelmslev (1975) nos planos de conteúdo e expressão, que orientaria para a) uma sequência e b) para uma sequência que possui a substância de expressão no movimento das mãos, de base motora. Assim, o hipertexto, como texto, responderia como mecanismo enunciativo a ações sobre uma superfície plana bidimensional orientada mais pela não linearidade própria da sequencialização da imagem do que pela linha pela extensão, própria da linguagem verbal, diferente da concepção de uni-espacialidade proposta por Saussure (1971) e trazida por Arrivé (2010), ao se referir à temporalização, constituidora da linha. Particularmente importante para esta discussão é o conceito de diacronia. Imaginemos Saussure(1971) escrevendo no mesmo dia em dois cadernos diferentes. Eis aí um hipertexto. Quanto a mecanismos de textualização, os programas de computador apresentam uma cronologia: indicam nove categorias de ação - ação arquivo. Dentro desta, surgem três subcategorias: arquivo novo, gravar como e propriedades. A subcategoria editar desdobra-se em selecionar tudo, com o índice ctrl+A e encontrar texto, com o índice F2.
Outro aspecto marcante no texto que não é da interface tela digital é o da previsibilidade. A arquitetura do texto na página impressa é caracterizada pela ordenação e linearidade dos elementos que o compõem, cuja forma de aparição se torna previsível ao leitor. Maturana (1997: 164) afirma, “Um sistema ser determinado estruturalmente significa que ele é determinístico e que, em sua operação, a escolha está fora de questão”. O fato da aparição dos elementos do livro estar estruturalmente determinada tem como consequência a limitação de ação naquele espaço. A estrutura já é conhecida pelo leitor, o qual não encontrará alternativas na sua interação com o texto, que se tornará previsível como acontece com a sequência não linear.
Do ponto de vista da relação entre aspectos imagéticos e conceituais, é importante ressaltar o que segue. O texto impresso costuma ser uma explicação de uma imagem, ou a imagem uma ilustração do texto. O aspecto imagético permanece subordinado ao aspecto conceitual. Segundo Flusser (2007), a linha passa a ser o conceito dos fatos, o que mostra uma distância maior entre escrita e realidade do que entre imagem e realidade, já que mostrar fatos é mais fiel ao real do que conceber fatos. Encontramos, portanto, no texto impresso, uma distância significativa entre imagem e texto verbal, a qual justifica a ideia de que o texto não verbal complementa o texto verbal no caso da escrita do texto no suporte impresso.
6. A escrita na tela como imagem em uma proposta de legibilidade
A semiótica visual, ao se propor como visual se circunscreve como modo de expressão à teoria do visual. Se voltarmos à proposta de Saussure (1971) sobre a ausência de um vínculo natural entre o significado e significante, assumindo o caráter artificial deste vinculo, vemos que, sendo a escrita visual, nada mais pertinente do que buscarmos em uma teoria do visual uma das possibilidades constitutivas da escrita, a partir do que já argumentamos.
Então, na linha da proposta que chamamos de unicista ou monista do texto na tela, instala-se a confluência entre visibilidade e ligibilidade. Ferreiro (1986) já apresentava este aspecto do ponto de vista genético, ao perguntar à criança se tudo que dá para ler dá para ver e se tudo que dá para ver dá para ler. As respostas apontaram para uma dimensão psicogenética do ler como ver. Esse aspecto nos leva a uma inferência básica de que o ver está na raiz do ler, aspecto este recuperado pela linguagem na tela, quando letras em textos verbais podem ser formatadas em variadas fontes, cores e posições no espaço da tela, criando os efeitos estésicos, de sensações, antes referidos.
Bibliografia
Arrivé, Michel. Em busca de Ferdinand de Saussure. São Paulo: Parábola, 2010.
Baitello Júnior, Norval. A era da iconofagia: ensaios de comunicação e cultura. São Paulo: Hacker, 2005.
Bronckart, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sóciodiscursivo. 2.ª ed. São Paulo: EDUC, 2009.
Couchot, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In Parente, André (org.). Imagem-máquina: A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.
Ferreiro, Emília. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
Flusser, Vilém. A filosofia da caixa preta. São Paulo: HUCITEC, 1985.
Flusser, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Foucault, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Cultrix,1992.
Fraga, Dinorá Moraes de; Axt, Margarete. (org.). Politicas do virtual: inscrições em linguagem, cognição e educação. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2011.
Frayze-Pereira, João Augusto. Olho d’água: arte e loucura em exposição. São Paulo: Escuta / Fapesp, 1995.
Greimas, Algirdas Julien. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, 1996.
Heidegger, Martin. “A questão da técnica” Leão. Petrópolis: Vozes, 2002.
Hjelmslev, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975.
Johnson, Steven. Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.
Kerckhove, Derrick de. A pele da cultura. São Paulo: Annablume, 1995.
Landowski; Eric. Do inteligível ao sensível. São Paulo: EDUC, 1995.
Maturana, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.
Mcluhan, Marshall; Fiore, Quentin. El medio es el masaje. Barcelona: Paidós, 1997.
Saussure, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 3.ª ed. São Paulo: Cultrix, 1971.
Livros didáticos de língua portuguesa: a proposta pedagógica para a leitura de textos verbo-visuais na coleção Português: linguagens
Elizangela Patrícia Moreira da Costa
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Universidade do Porto
(Brasil)
Este artigo objetiva discutir resultados parciais de investigação, em andamento, em nível de doutoramento, intitulada “A verbo-visualidade em livros didáticos do ensino fundamental: uma abordagem dialógica” e vinculada ao projeto “Verbo-visual e produção de sentidos: perspectiva dialógica”, coordenado pela Profa Dra Beth Brait. A pesquisa de doutoramento se insere no âmbito da Linguística Aplicada e dos Estudos da Linguagem e objetiva discutir as relações linguístico-enunciativo-discursivas implicadas no processo de leitura de gêneros discursivos constituídos na/pela verbo-visualidade como plano de expressão, presentes em duas coleções de livros didáticos de Língua Portuguesa (LDP): Para viver juntos: português e Português: linguagens, destinadas ao 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental (6º ao 9º anos), indicadas pelo Programa Nacional do Livro didático (PNLD) 2014 e selecionadas a partir da escolha dos professores de duas das maiores escolas públicas de Cuiabá-MT, Brasil.
A escolha do objeto de estudo nasce das inquietações da pesquisadora com os resultados de pesquisa de mestrado, que objetivou investigar quais capacidades eram mobilizadas em específicas atividades de leitura de duas coleções de LDP do Ensino Médio.
Os resultados da dissertação apontaram para uma inexpressiva presença dos gêneros verbo-visuais, nas atividades de leitura dos livros analisados, e demonstraram que a sua didatização pouco contribui para a mobilização de capacidades específicas para a leitura de gêneros que aliam em sua composição a materialidade verbo-visual. Em muitas das ocorrências, observamos questões cujo foco centrava-se na materialidade verbal em detrimento da materialidade visual, elemento este que só pode significar na conjunção com os elementos verbais e não verbais do texto. Tomar uma única materialidade de um texto verbo-visual em detrimento das demais, descaracteriza-o enquanto enunciado concreto socio-historicamente situado.
Como os resultados do mestrado apontaram para lacunas no tratamento didático dado aos textos verbo-visuais em LDP do Ensino Médio, podendo impactar na formação leitora de estudantes da fase final do ciclo básico de escolarização brasileira (1º ao 3º anos do Ensino Médio) - fase esta em que supõe-se que as competências leitoras já foram desenvolvidas no ciclo básico inicial, e pretendem ser consolidadas nos anos finais de escolarização -, esta pesquisadora foi instigada a conhecer os livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental para compreender como se dá a inserção e o tratamento didático dos textos constitutivamente verbo-visuais (charges, tiras etc.) e constituídos pela verbo-visualidade (notícias, reportagens de jornais etc.) e como essa inserção pode (ou não) alterar as relações linguístico-enunciativo-discursivas no processo de leitura de jovens estudantes que a eles tiverem acesso nas escolas públicas brasileiras.
Assim, a investigação de doutoramento objetiva discutir as relações linguístico-enunciativo-discursivas implicadas no processo de leitura de gêneros discursivos constituídos na/pela verbo-visualidade como plano de expressão, presentes nas coleções de livros didáticos de Língua Portuguesa (LDP) do Ensino Fundamental.
Na atual fase da investigação, procedemos à descrição das duas coleções de livros. Nesta comunicação, optamos por apresentar os dados mais recentes, desenvolvidos em período de bolsa sanduíche, na Universidade do Porto, Portugal. Trata-se da descrição da coleção Português: linguagens, editada em 2012, pela Editora Saraiva, e destinada aos 3º e 4º Ciclos da Educação Básica Brasileira (6º ao 9º anos do Ensino Fundamental). Primeiramente, apresentamos resumidamente o referencial teórico-metodológico que nos auxilia no enfrentamento da pesquisa. Em seguida, a descrição da coleção analisada com breves comentários sobre os achados dessa fase da investigação, justificamos a importância desse procedimento e as próximas etapas da pesquisa. Nosso objetivo é conhecer minuciosamente o corpus da pesquisa, a fim de estudá-lo em toda a sua riqueza de informações.
1. Referencial teórico
Como fundamentação teórica, este trabalho estabelece diálogo com importantes contribuições de Bakhtin e o Círculo, no que se refere ao estudo do signo verbal e visual, com os estudos sobre a dimensão verbo-visual do enunciado, desenvolvidos por Brait (2009; 2012) e demais pesquisadores brasileiros.
Além disso, busca o diálogo com as teorias da leitura (Chartier, 1998; Abreu, 2006) e com os construtos teóricos sobre o letramento (Soares, 2009) e multiletramentos (Rojo, 2009), a fim de podermos discutir, comprovar ou não a hipótese formulada em nossa pesquisa: a de que os textos verbo-visuais presentes nos livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º anos) não colaboram para a formação leitora de jovens estudantes desse nível de ensino, nas escolas brasileiras.
Os fundamentos teóricos desenvolvidos por Bakhtin e o Círculo, especialmente, os conceitos de dialogismo, relações dialógicas, enunciado concreto, gênero de discurso e seus elementos indissolúveis (conteúdo temático, forma composicional e estilo) e compreensão ativa, nos auxiliarão na compreensão do nosso objeto de estudo, o livro didático de Língua Portuguesa como um gênero discursivo, que segundo Bunzen e Rojo (2005) possui unidade discursiva, autoria e estilo alinhados por um discurso autoral, responsável pelo engendramento dos textos/enunciados em gêneros diversos como também na análise do corpus, constituído por gêneros verbo-visuais, presentes nas seções dedicadas à leitura, nas duas coleções de LDP selecionadas.
O arcabouço teórico de Bakhtin e o Círculo, como esclarece Brait (2012), pode nos oferecer elementos para a leitura do texto verbal e também do visual. Para a autora, em determinados textos o engendramento entre os elementos verbais e visuais se constitui de forma indissolúvel, como interdependentes, exigindo do analista não só o reconhecimento dessa especificidade como também metodologia e fundamentação teórica compatíveis com essa realidade. Assim, a autora esclarece:
O termo verbal é compreendido tanto na sua dimensão oral quanto escrita e visual abrange tanto a estaticidade da pintura, da fotografia, do jornalismo impresso, e a dinamicidade do cinema, do audiovisual, do jornalismo televisivo, etc. Nesse sentido, o que ganha relevo é a concepção semiótico-ideológica do texto que, ultrapassando a dimensão exclusivamente verbal reconhece visual, verbo-visual, projeto gráfico e/ou projeto cênico como participantes da constituição de um enunciado concreto. Assim concebido, o texto deve ser analisado, interpretado, reconhecido a partir dos mecanismos dialógicos que o constituem, dos embates e tensões que lhe são inerentes, das particularidades da natureza de seus planos de expressão, das esferas em que circula e do fato de que ostenta, necessariamente, a assinatura de um sujeito, individual ou coletivo, constituído por discursos históricos, sociais e culturais, mesmo nos casos extremos de ausência, indefinição ou simulação de autoria (Brait, 2012: 88-89).
A autora denomina dimensão verbo-visual de um enunciado, a dimensão em que tanto a linguagem verbal quanto a visual, de modo indissolúvel, desempenham papel constitutivo na produção e efeitos de sentido de um texto. Assim, a compreensão de um enunciado verbo-visual exige considerar a linguagem verbal e visual como uma única materialidade: a verbo-visual, sob pena de amputarmos uma parte do seu plano de expressão e, consequentemente, da compreensão das formas de produção de sentido desse enunciado.
Para tanto, faz-se ainda fundamental buscarmos uma concepção de leitura e de letramento que sejam compatíveis com os dispositivos teórico-metodológicos que escolhemos para a nossa pesquisa. Com tal finalidade, apoiamo-nos nos estudos de Chartier (1998), que ao construir seu arcabouço teórico sobre a leitura, reflete sobre o leitor, discutindo pontos essenciais sobre a leitura e o perfil do leitor nos tempos contemporâneos.
Além disso, buscamos nos apoiar em estudos mais recentes sobre as abordagens de letramento, cujos resultados têm apontado para a heterogeneidade das práticas de leitura, escrita e usos da linguagem em sociedades letradas, enfocando o caráter sociocultutural e situado das práticas de letramento. Isso posto, buscaremos os estudos desenvolvidos por Rojo (2009) sobre multilletramentos. A autora defende a necessidade de uma educação linguística que leve em conta: os múltiplos letramentos, os letramentos multissemióticos, “ampliando a noção de letramentos para o campo da imagem, da música, das outras semioses que não somente a escrita.” (p. 107), e os letramentos críticos e protagonistas “requeridos para o trato ético dos discursos em uma sociedade saturada de textos e que não pode lidar com eles de maneira instantânea, amorfa e alienada [...]”. (p. 108).
Com tais dispositivos teóricos, buscamos respostas para as seguintes questões:
1. Quais gêneros discursivos constituídos no/pelo plano verbo-visual estão presentes em duas coleções de LDP do 6º ao 9º anos do Ensino Fundamental?
2. Como se dá o tratamento da materialidade verbo-visual nos LDP selecionados?
3. Como o tratamento da materialidade verbo-visual nos LDP selecionados altera as relações linguístico-enunciativo-discursivas constitutivas do processo de leitura?
Para tanto, o trabalho dividide-se em cinco etapas de procedimentos metodológicos distintos:
No atual estado da investigação, foram realizadas as fases compreendidas nas etapas a, b e c. Para a seleção das coleções de livros didáticos de Língua Portuguesa, procuramos escolas públicas que fossem representativas em Cuiabá-MT, Brasil. O critério estabelecido na escolha dessas escolas foi o de procurar aquelas que tivessem o maior número de alunos matriculados nos 3º e 4º ciclos (6º ao 9º anos) do Ensino Fundamental. Para tanto, apoiamo-nos no Censo Escolar 2011 da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso – SEDUC/MT.
Nesse contato com as escolas, procuramos conhecer os LDP do 6º ao 9º anos do Ensino Fundamental, indicados pelo PNLD 2014, e escolhidos pelos professores de Língua Portuguesa desse nível de ensino, a saber:
Escola |
Título da obra |
Autores |
Ano de publicação |
Editora |
Anos a que se destinam/ Formato |
1 |
Para viver juntos: português (COL 1) |
Ana Elisa de Arruda Penteado et al. |
2012 |
Edições SM |
6o ao 9o anos/ 4 volumes |
2 |
Português: linguagens (COL 2) |
William Roberto Cereja; Thereza Cochar Magalhães |
2012 |
Saraiva |
6o ao 9o anos/ 4 volumes |
Quadro 1. Informações das coleções de livros didáticos.
Fonte: elaborado pela autora
Na próxima seção, apresentamos a descrição da coleção Português: linguagens. As análises quantitativa e qualitativa (fases d e e) terão como objetivo confrontar as informações coletadas nesta etapa com o que de fato se efetiva nos livros a serem analisados.
2. Descrição da Coleção Português: linguagens
Nesta seção, apresentamos a descrição da coleção Português: linguagens, com base nas resenhas apresentadas no Guia do livro didático (PNLD/2014), nas orientações contidas nos manuais dos professores e em nossas observações durante a leitura e pré-análise do material didático.
Imagem 1: Capa
Fonte: Coleção Português: Linguagens. 2012
A coleção (Imagem 1) foi indicada pelo PNLD 2014 e editada, em 2012, pela Editora Saraiva. É composta por quatro volumes, dedicados aos 6o, 7o, 8o e 9o anos dos 3º e 4º Ciclos do Ensino Fundamental para as escolas públicas brasileiras.
Cada volume da coleção traz um sumário dividido em quatro unidades temáticas. Estas, por sua vez, dividem-se em três capítulos. Cada unidade é finalizada com uma seção nomeada Intervalo com um projeto que busca articular a leitura, a produção escrita e a oralidade, sempre culminando em um produto final, como por exemplo, a produção de um jornal, mostras etc. Por delimitação de espaço, apresentamos apenas as primeiras páginas do sumário de um dos volumes da coleção:
Imagem 2: Sumário.
Fonte: Coleção Português: linguagens. Volume do 7º ano, 2012: 4 – 5.
Cada capítulo organiza-se em torno de três eixos principais: leitura, produção de textos e conhecimentos linguísticos. As seções e subseções relacionadas a cada eixo não são regulares. Por exemplo: nem todos os capítulos iniciam pelo estudo de um texto; a subseção denominada “Leitura expressiva do texto”, em um capítulo, passa a denominar-se “cruzando linguagens”, em outra, e assim por diante. Ao observarmos essa irregularidade na organização das unidades e seus respectivos capítulos, buscamos e encontramos, no “manual do Professor”, justificativa para tal estratégia de organização:
Dos três capítulos iniciais de cada unidade, dois são abertos com textos verbais e estão organizados em cinco seções essenciais: Estudo do texto, Produção de texto, Para escrever com adequação/coerência/coesão/expressividade, A língua em foco e De Olho na escrita. (Cereja e Magalhães, 2012: 6, grifo dos autores).
O capítulo destinado à leitura de textos com linguagens não-verbais ou verbo-visuais tem, segundo os autores, o objetivo de ampliar estratégias de leitura para essas modalidades de linguagem, e, nesses capítulos, a seção de leitura é denominada “Cruzando linguagens”. Nas palavras dos autores:
Um desses três capítulos apresenta a leitura de uma ou mais imagens – pintura, fotografia, cartum, escultura, etc. – todas elas relacionadas ao tema central da unidade. Essa parte, situada no início do capítulo, antes das seções de produção de texto e gramática, destina-se à leitura sistematizada de linguagens não verbais ou mistas (verbais e não verbais), com o objetivo de ampliar as estratégias de leitura do aluno nessas modalidades de linguagem, ampliar seus referenciais culturais e “sua leitura de mundo”. (Cereja e Magalhães,, 2012: 6, ênfase dos autores).
Segundo a resenha do Guia do livro didático (2014), o eixo da leitura utiliza-se de diferentes estratégias, com atividades que auxiliam o aluno ao desenvolvimento de capacidades leitoras como a compreensão global, articulação entre as partes do texto e a produção de inferências; exigem do aluno a análise dos recursos linguísticos do texto, promovem a leitura expressiva e propõem o estudo do texto verbo-visual, a partir da comparação deste com o texto verbal. Além disso, propicia a troca de ideias entre os alunos a fim de desenvolver a capacidade de expressão e argumentação oral.
No final da seção desse eixo, apresenta-se um pequeno texto para a leitura de fruição. Este é um dado que pretendemos confrontar na fase da análise qualitativa. Buscamos compreender se o trabalho proposto pelos autores para o estudo de textos visuais e verbo-visuais de fato se efetiva nas atividades dessa seção.
Os seguintes textos são privilegiados nas atividades de leitura:
No que se refere à seção “Produção de texto”, o referido documento destaca que as atividades favorecem a oralidade e a escrita, tomando como objetos de ensino gêneros textuais diversificados. No tocante à produção escrita, as atividades relevam o contexto social de uso da linguagem, definindo suas condições de produção e circulação. No entanto, enfatiza a ausência de detalhamento das etapas de produção e de orientações quanto à construção da textualidade. Assim, a resenha da coleção destaca:
[...] Quanto aos textos escritos, as atividades situam a prática da escrita em seu contexto social de uso e as propostas definem as condições de produção e circulação, geralmente ligadas ao projeto. Contudo, por vezes falta detalhamento a respeito das etapas do processo de produção e orientação mais explícita quanto à construção da textualidade. Embora as unidades tragam seções sobre “como escrever com coesão”, ou “como escrever com expressividade”, nem sempre o estudo desses recursos se articula à proposta de escrita. (Ministério da Educação, 2014: 85).
Os textos selecionados para as seções de produção de texto são os seguintes:
No eixo da oralidade, destacam-se propostas que possibilitam a vivência de uso da linguagem oral em instâncias públicas e formais. O Guia do livro didático (2014) enfatiza que a obra vem acompanhada de DVDs com exemplos de diferentes gêneros orais públicos, em situações diversificadas de uso, o que, segundo o documento, constitui-se como “um bom apoio para o trabalho didático”. (Ministério da Educação, 2014: 86). Os textos privilegiados no eixo da oralidade são:
O eixo dos conhecimentos linguísticos enfatiza os componentes gramaticais, abrangendo aspectos textuais e discursivos, a partir da proposição de atividades com vistas à análise do funcionamento da língua no texto e seus efeitos de sentido:
No estudo da gramática, possibilita-se ao aluno a observação e a análise do conceito em foco, formaliza-se a conceituação e propõem-se exercícios de aplicação. As formas e as estruturas morfossintáticas são analisadas também quanto à sua função na construção do texto e quanto ao seu valor semântico e seus efeitos enunciativos no contexto de determinado discurso. (Ministério da Educação, 2014: 88).
As propostas desse eixo são finalizadas com a seção “De olho na escrita”, que, em todos os capítulos, abrange atividades que focalizam à ortografia e à acentuação. Os conteúdos privilegiados são:
O Guia do livro didático (2014) apresenta um boxe com os pontos fortes, fracos e destaques de cada obra. No caso dessa coleção, chama-nos a atenção o destaque para a “análise de textos visuais e de textos compostos de linguagem verbal e imagens” (86). Isso porque um dos objetivos do nosso trabalho é o de compreender como o tratamento da materialidade verbo-visual pode (ou não) alterar as relações linguístico-enunciativo-discursivas constitutivas do processo de leitura.
As aberturas de unidade intercalam pequenos textos com imagens (fotografias, pintura, desenhos, ilustração etc.), que nos parecem ilustrar os textos verbais que acompanham. Essa estratégia, segundo os autores da coleção, no manual do professor, funciona como organizadora dos capítulos subsequentes ou como aquecimento para o tema tratado na unidade. Apresentamos um exemplo de abertura:
Imagem 3: Abertura de Unidade.
Fonte: Coleção Português: linguagens. Volume 6º ano. 2012: 10 – 11.
As aberturas de unidades, exemplificadas na imagem 3, apresentam o gênero discursivo a ser trabalhado no conjunto dos três capítulos que as constituem. No caso do nosso exemplo, o gênero selecionado é o conto maravilhoso.
Observa-se na imagem a sua constituição verbo-visual. De um modo geral, todas as aberturas são constituídas pela mescla de linguagens verbal e visual, o que parece anunciar a forte presença da materialidade visual ou verbo-visual na coleção. Sobre esse dado, interessa-nos compreender que tipo de relações são constituídas a partir do seu uso e de que forma a sua inclusão participa dos efeitos de sentidos produzidos, podendo (ou não) contribuir para a formação leitora dos jovens estudantes. Pretendemos, na fase de análise qualitativa, confrontar esse dado, a fim de compreender como a inserção das imagens, na constituição dessa coleção, pode culminar nos objetivos definidos pelos seus autores, no manual do professor.
Ainda na Imagem 3, visualiza-se uma seção intitulada “Fique ligado! Pesquise!”. Nela são propostas atividades que incluem leitura de livros, músicas, filmes, sites da internet. Os autores sugerem, no manual do professor, que essas atividades podem ser desenvolvidas dentro ou fora da sala de aula. Essa seção é finalizada por uma pequena caixa, intitulada “Intervalo”. Nessa, os autores buscam anunciar o projeto que fechará a unidade. No caso apresentado acima, trata-se do projeto “Histórias de hoje e sempre” que culminará com um produto final, podendo ser a confecção de livros infantis, revista, vídeos etc.
A seguir, apresentamos a organização dos capítulos e nos deteremos na descrição de cada seção. Para tanto, consultamos os livros e o Manual do Professor dessa coleção a fim de compreender a proposta pedagógica para cada uma das seções e subseções:
A) Estudo do texto[1]
Na seção “Estudo do texto”, os autores destacam o foco na diversidade textual, compreendendo texto como unidade significativa dos enunciados verbais ou não-verbais. Os textos selecionados são os de tipo: ficcional, poético, jornalístico, autobiográfico, publicitário, divulgação científica etc.
Os critérios de escolha obedecem às abordagens das unidades e privilegiam as diversidades e modalidades da linguagem, o gênero, a adequação à faixa etária, com vistas ao desenvolvimento das habilidades leitoras do aluno para o ano a que se destinam. Assim, nas palavras dos autores:
Os critérios de escolha dos textos levaram em conta não apenas as múltiplas abordagens do tema da unidade, mas também a diversidade quanto à linguagem, ao gênero ou ao tipo de texto, a adequação à faixa etária e o grau de dificuldade que o texto oferece, tendo em vista o processo de desenvolvimento de habilidades e competências de leitura do aluno. (Cereja e Magalhães, 2012: 6).
Os autores ainda enfatizam que o trabalho com a leitura está formalmente organizado nas atividades das seções de “Estudo do texto”, porém não se limita a elas, sendo “explorada em toda a obra” (Cereja e Magalhães, 2012: 6), tanto na construção de conceitos gramaticais, no estudo semântico-discursivo das categorias gramaticais dos textos da seção “A língua em foco”, quanto nas atividades da seção “Produção de texto”. Desse modo, a seção “Estudo do texto” está organizada em seis partes/momentos, sendo algumas delas facultativas, dependendo dos objetivos estabelecidos para a unidade da qual fazem parte. São elas: compreensão e interpretação, A linguagem do texto, Leitura expressiva do texto, cruzando linguagens, trocando ideias, e ler é prazer.
A. ) 1 Compreensão e interpretação
Essa subseção contém a atividade principal de leitura, e objetiva propiciar aos alunos atividades que possibilitem o desenvolvimento gradativo de habilidades leitoras, como antecipações a partir do seu conhecimento prévio, a apreensão do tema e da estrutura global do texto, levantamento de hipóteses, relações de causa e consequência, temporalidade, espacialidade, estabelecendo semelhanças e diferenças, generalização, relações entre forma e conteúdo etc.
Imagem 4: Estudo do Texto.
Fonte: Coleção Português: linguagens.Volume 6º ano. 2012: 14.
A. 2) A linguagem do texto
A seção “A linguagem do texto” busca promover o estudo do texto lido pela exploração de aspectos das especificidades do uso da língua ou da variedade linguística, de acordo com o gênero, o suporte, o perfil dos interlocutores envolvidos, os efeitos de sentido, pontuação, ambiguidades, figuras de linguagem etc. O nível de exploração de cada aspecto é definido de acordo com o ano a que cada seção se dedica.
Imagem 5: A linguagem do texto
Fonte: Coleção Português: linguagens. Volume 6º ano. 2012:15.
A. 3) Leitura Expressiva do texto
A seção “Leitura expressiva do texto” não aparece em todos os capítulos da obra. Quando ocorre, tem por objetivo finalizar o trabalho de leitura do texto e abertura do capítulo. As atividades propostas, nessa seção, estão mais voltadas às habilidades e competências do oral e exploram a entonação, pausas etc. por meio de sugestões de atividades ou estratégias como dramatização, declamação, jogral etc.
Imagem 6: Linguagem Expressiva do texto
Fonte: Coleção Português: linguagens. Volume 6º ano. 2012: 57.
A. 4) Cruzando linguagens
Assim como a anterior, a seção “Cruzando linguagens” também não tem incidência regular, sendo encontrada (pelo menos uma vez por unidade) quando objetiva a comparação entre textos com diferentes linguagens (verbal e visual ou verbo-visual). Os autores explicam:
O cruzamento de linguagens pode se dar tanto no âmbito da linguagem verbal – por exemplo, um poema com uma crônica ou um artigo de jornal – quanto no âmbito das linguagens verbal e não verbal – por exemplo, um texto literário com uma foto – e ainda no âmbito da linguagem mista – por exemplo, uma narrativa literária com uma tira de quadrinhos, um cartum ou um filme. (Cereja e Magalhães, 2012: 8).
Imagem 7: Cruzando linguagens
Fonte: Coleção Português: linguagens. Volume 6º ano. 2012: 57.
A atividade apresentada para essa seção (Imagem 7) propõe que o aluno assista a um filme e as suas comandas parecem mobilizar o debate, em sala, sobre o tema abordado no filme assistido. Para os autores, é por meio da comparação que o aluno estabelecerá semelhanças e diferenças quanto ao tema e/ou aos aspectos composicionais e situacionais do texto. Ao utilizar-se de um roteiro, o aluno interpreta o filme, analisa-o, debate-o confronta-o com os textos verbais lidos. Assim, pretende-se desenvolver habilidades leitoras para as modalidades de textos não verbais. Esse é um dado que retomaremos na análise qualitativa, a fim de compreendermos a proposta dos autores.
A. 5) Trocando ideias
A subseção objetiva desenvolver habilidades de interação e argumentação oral do aluno. As atividades propostas trazem questões que pretendem levar o aluno a posicionar-se diante delas. Espera-se que os alunos desenvolvam operações e valores, tais como:
[…] capacidade de extrapolar; de generalizar e particularizar as ideias; de ouvir e respeitar as opiniões alheias; de negociar; de saber como se situar numa discussão pública e selecionar a variedade linguística mais adequada à situação; de desenvolver técnicas de contra-argumentação e persuasão. (Cereja e Magalhães, 2012: 9).
Imagem 8: Trocando ideias
Fonte: Coleção Português: linguagens. Volume 6º ano. 2012: 59.
A. 6) Ler é prazer
“Ler é prazer” é a subseção que finaliza o trabalho de leitura, e objetiva propiciar ao aluno o contato com o texto de forma a despertar o prazer da ler. Essa seção pode ser denominada, em outras unidades: “Ler é emoção”, “Ler é descoberta”, “Ler é diversão”, “Ler é reflexão”.
A.) Produção de texto
Essa seção organiza-se por meio de diferentes gêneros discursivos, como: anúncio publicitário, carta, e-mail, notícia etc., cuja escolha parece estar associada ao tema da unidade e aos textos discutidos ao longo do capítulo. Ela organiza-se em duas partes: na primeira, centra-se nos aspectos composicionais do gênero, observando situações de produção e de recepção do gênero (interlocutores, finalidades, esfera de circulação, suporte). A segunda parte, denominada “Agora é a sua vez”, está voltada à produção escrita do aluno, procurando associar a teoria à prática. É finalizada com um boxe denominado “Para escrever com adequação/coerência/coesão/expressividade” com orientações para a produção escrita, enfatizando os aspectos essenciais para a textualidade, como coerência, coesão, intencionalidade etc.
B) A língua em foco
Essa seção focaliza os componentes gramaticais que se pretende estudar no capítulo. Os autores assumem uma concepção de língua como um processo de interação:
A língua, nesta obra, não é tomada como um sistema fechado e imutável de unidades e leis combinatórias, mas como um processo dinâmico de interação, isto é, como um meio de realizar ações, de agir e atuar sobre o outro. (Cereja e Magalhães, 2012: 12).
O foco do trabalho linguístico proposto pelos autores não está no estudo da frase de maneria descontextualizada, e, sim, no domínio do texto, do discurso em uma situação concreta de enunciação, considerando suas condições de produção. As atividades de sua subseção “Construindo o conceito” são organizadas de maneira que o aluno possa ir aos poucos construindo um determinado conceito gramatical. Inicia-se com um pequeno texto e exercícios que auxiliam os alunos a refletirem acerca dos conceitos estudados. Na sequência, os conceitos vão sendo formalizados e ampliados, na subseção “Conceituando”, composta por exercícios práticos sobre os tópicos estudados.
3. Considerações finais
De um modo geral, os resultados apontam para uma proposta didático-pedagógica que inclui textos em gêneros visuais ou verbo-visuais. O manual do professor e o Guia do livro didático (2014) destacam não só o uso de textos verbo-visuais na organização da obra, como também um trabalho de efetiva análise do verbo-visual.
Observa-se ainda que os autores dedicaram uma seção específica para o estudo da verbo-visualidade, denominada “Cruzando linguagens”, incluindo exercícios de leitura para a especificidade dessa materialidade linguística. Um cuidado que parece revelar o lugar da verbo-visualidade na proposta didático-pedagógica da coleção e também a concepção dos autores sobre o que seja um trabalho pensado para a leitura de enunciados que mesclam em sua composição a materialidade verbo-visual. Ao nosso ver, esse é um ponto positivo da coleção Português: linguagens.
Nas fases seguintes, pretendemos compreender se o trabalho anunciado no “manual do professor” e destacado no PNLD (2014) de fato se efetiva nos livros, especialmente, nas seções destinadas e pensadas para a leitura do verbo-visual.
O próximo passo da pesquisa consiste no levantamento quantitativo dos textos visuais e verbo-visuais presentes nas duas coleções constituintes do corpus da pesquisa, destacando suas informações relevantes, a fim de realizarmos um mapeamento desses textos nos livros. Assim, pretendemos responder a primeira questão da investigação: “Quais gêneros discursivos que se constituem no/pelo plano verbo-visual estão presentes em duas coleções de LDP do 6º ao 9º anos do Ensino Fundamental?”
O levantamento quantitativo confrontados com os dados obtidos, a partir da descrição do corpus, nos auxiliarão a verificar as regularidades em ambas as coleções, e selecionarmos as amostras para a análise qualitativa. Desse modo, visamos responder a segunda e a terceira questões da investigação: “Como se dá o tratamento da materialidade verbo-visual nos LDP selecionados?”, “Como o tratamento da materialidade verbo-visual nos LDP selecionados altera as relações linguístico-enunciativo-discursivas constitutivas do processo de leitura?”.
Esperamos que os resultados da investigação provoque reflexões sobre o lugar da verbo-visualidade nos livros didáticos de Língua Portuguesa e na formação leitora de jovens estudantes das escolas públicas brasileiras. Além disso, incentive a produção de materiais que não apenas inclua o texto verbo-visual, em suas propostas, mas considere-o como um enunciado concreto sócio-historicamente situado, exigindo do leitor a análise do verbal e do visual, de maneira indissolúvel, sob pena de amputar uma de suas partes e alterar a forma de produção de sentido do enunciado.
Bibliografia
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Bakhtin, M. M; Volochinov, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Laud e Yara F. Vieira. 8.ª ed. São Paulo: HUCITEC, 2006. [1929].
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Brait, B. História e alcance teórico-metodológico. In Figaro, R. (org.). Comunicação e Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2012: 79-98.
Bunzen, C.; Rojo, R. Livro didático de língua portuguesa como gênero do discurso: autoria e estilo. In Costa Val, M. G.; Marchuschi, B. (orgs.). Livros didáticos de língua portuguesa: letramento, incluso e cidadania. Belo Horizonte: Ceale: Autêntica, 2005: 73-117.
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Penteado, A. E. A. [et al.]. Para viver juntos: português: ensino fundamental. São Paulo: Edições SM, 2012. Vol. 6º, 7º, 8º, 9º anos.
Rojo, R. H. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
Soares, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, MG: CEALE/ Autêntica, 2009.
[1] Ao apresentarmos as 6 (seis) partes da seção “Estudo do texto”, inserimos, quando pertinente, a imagem de parte da subseção. A imagem da página completa não pôde ser incluída, neste artigo, em função da delimitação de espaço.
Espaço geopolítico em tradução semiótica
Irene Machado
Universidade de São Paulo
(Brasil)
1. Introdução
O estudo que procura compreender as relações entre comunicação e espaço se organiza em torno de uma questão fundamental: como a comunicação se constitui em espaço e como o espaço é constituído pela comunicação? Pergunta que seria desnecessária se o foco da discussão considerasse apenas o campo das relações entre espaço e linguagem, visto que, nessa área, domina uma certa naturalização do debate. Sabemos que, na cultura ocidental, o conhecimento histórico do espaço encontra-se nitidamente vinculado ao território e, consequentemente, à expansão transcontinental das línguas, a ponto de, no ocidente, o chamado deslocamento para o «além-mar» ser considerado uma premissa tanto lingüística quanto geopolítica. Contudo, quando se desloca a focalização para o cenário dos meios de comunicação, seus códigos e suas linguagens, descobre-se a pertinência e urgência do debate. Ainda que nos meios como cinema e televisão se constitua como projeção de imagens audiovisuais e pelo movimento, o espaço não se limita nem ao lugar nem à visualidade, o que o distancia de uma vinculação com territórios. Paradoxalmente, os meios desempenharam papel decisivo na conquista do espaço aéreo externo à superfície terrestre, o que favoreceu a concentração em limites geopolíticos muito diferentes da dominação geopolítica das línguas. Entrar em contato com os termos dessa diferença marca o início dessa investigação.
Se no próprio termo geopolítica designam-se confrontos de relações de poder, no processo de dominação territorial não há como ignorar que o continuum da superfície e as fronteiras sempre foram os grandes desafios para a fixação dos limites. O mesmo se pode afirmar com relação às línguas e os meios de comunicação que marcaram a história moderna. Assim como “a geopolítica de uma língua não se limita a examinar no mapa o alcance de sua extensão e seus limites com outras línguas” (Lacoste, 2005: 7), mas procura considerar os atritos provocados pelos encontros culturais que colocam, dentro de um mesmo território, diferentes línguas sob confronto, assim também se pode dizer dos diferentes meios que diversificaram os processos de comunicação no interior das culturas, colocando em contato e em confronto diferentes possibilidades, a começar pela inserção tecnológica. Não obstante os conflitos generalizados, as relações entre linguagem, comunicação e espaço se consolidaram como emergência das decisões em domínios geopolíticos, a começar pela expansão lingüística quando todas as ações estiveram diretamente vinculadas a territórios. Na escalada dos meios tecnológicos de comunicação, o espaço já não se limita ao território geográfico, mas avança para o espaço exterior à superfície terrestre, o que dimensionou a falsa visão de autonomia.
Ainda que se reconheça nos meios de comunicação eletrônico-digitais uma capacidade refinada de tratamento do espaço, sobretudo pela qualidade de registros fotográficos, videográficos, sonográficos e dos processos de digitalização de lugares, movimentos, sons e ruídos, dificilmente se coloca na pauta do debate seu caráter geopolítico. A comunicação em rede acalenta o mito da atemporalidade e do não-lugar, da atualidade e da velocidade, da ubiquidade e da efemeridade. Com isso, os meios comunicação perdem os vínculos com as premissas fundamentais de sua constituição: a modelização de códigos e de linguagens no espaço do poder. Para reposicionar o debate, propõe-se compreender os processos de modelização do espaço pelos meios atualizando as premissas de tradução, de criação de linguagem e de expansão no quadro de confrontos geopolíticos. Para isso, é fundamental recuperar o alinhamento histórico da expansão lingüística no continente europeu, base da civilização ocidental. Segundo a hipótese de fundo, o espaço configurado pelas línguas e pelos meios tecnológicos revela sua natureza semiótica uma vez que emerge como tradução de diferentes linguagens. Do ponto de vista da cultura, o espaço contínuo da experiência é apreendido e traduzido por códigos discretos (tais como os códigos sonoros da língua ou os códigos gráficos da escrita) e recodificados em termos dos códigos das linguagens icônicas dos meios (tais como as imagens fotográficas ou videográficas). Se no passado acompanhou o deslocamento das línguas para o «além-mar», agora acompanha o deslocamento de dados para o «além-atmosfera», isto é, para os espaços modelizados pelas telecomunicações, satélites, redes e cabos que transformaram os meios em comunicações móveis. Logo, cumpre-nos retomar analiticamente as articulações de tais deslocamentos.
2. O espaço na materialidade da linguagem
Na apresentação à edição brasileira em fac símile do Tratado da esfera de Johannes Sacrobosco (1991: 7) o editor do texto no português moderno, Carlos Ziller Camenietzki, afirma que, lendo este livro quinhentista, os navegadores portugueses aprenderam a pilotar as naus e os princípios de navegação. Com isso, o livro de astronomia geocêntrica iniciado por volta do séc. XII, anterior, portanto, a Galileu Galilei, se tornou carta magna que subsidiou a aventura das grandes navegações. Se à época a língua da ciência era o latim, pergunta-se: em que língua liam os navegadores?
No fragmento introdutório ao livro de Sacrobosco, o aclamado matemático português Pedro Nunes (1502-1578), professor da Universidade de Lisboa e nomeado Cosmógrafo do Rei em 1529, discute uma concepção de Santo Agostinho segundo a qual “a ciência não tem linguagem própria” uma vez que, segundo ele, a “ciência não é outra coisa senão um conhecimento habituado no entendimento” e esse, por sua vez, resulta de uma aquisição por demonstração, ou seja, por meio de um “discurso que nos faz saber” (Sacrobosco, 1991: 27). Como não tem linguagem própria, a ciência serve-se da linguagem humana em língua materna dos homens, criada para tão diversificados fins, para atender suas demandas. Tal inferência serve a Nunes para justificar sua ousadia ao traduzir o texto latino para o português, tornando-o acessível para quem não dominava o latim. Com o texto em português chegava-se à linguagem do espaço materializado em figuras geométricas. Quando lemos o Tratado da Esfera, observamos que o espaço encontra-se materializado na noção de esfera que acaba sendo o ponto de partida para se distinguir todas as outras figuras geométricas de linhas, superfícies e sólidos (Hallyn, 1993: 177-183) e, assim, traduzir o espaço pela conjugação dos códigos figurativos geométricos com a linguagem dos elementos que nele se constituem.
Enquanto Pedro Nunes entendeu que, se a ciência não tem linguagem, não havia nenhuma razão para as descobertas de Sacrobosco ficarem restritas ao latim, podendo também ser traduzidas para o português, nós entendemos que não ter linguagem própria faz da ciência um campo de experimentação dos objetos de seu interesse e da linguagem que o constitui. O grande empreendimento de Pedro Nunes foi a prática da tradução uma vez que coloca-se em relevo não somente as línguas (latim e português) como também as linguagens (da geometria e do desenho). Tão importante quanto a experiência do espaço é a «situação semiótica» de sua constituição, que Sacrobosco traduziu em termos de esfera e que Nunes recodificou em termos de linguagem verbal lingüística. No âmbito de tal situação semiótica, ocorre “uma explosiva transição do estado de natureza para o estado de cultura” (Lotman, 1998: 17). Assim, a dimensão planetária e cosmológica é traduzida na materialidade da linguagem gráfica, sobretudo, no arranjo empreendido entre códigos da língua e diagramas geométricos. Quando as proposições do tratado da esfera acabam por se transformar em carta para navegação, o espaço já está culturalizado. Quando Pedro Nunes traduz para o português o livro de Sacrobosco não se consubstanciou aí apenas um gesto lingüístico, mas sim um processo de transformação em que na materialidade da linguagem verbal se realizou a situação semiótica que tanto levou à metalinguagem da noção de esfera quanto ao caminho da navegação traduzido pela carta.
A partir das questões suscitadas por Pedro Nunes a respeito da linguagem da ciência delineiam-se alguns problemas que nos obrigam a considerar com mais vagar as relações entre espaço e linguagem. Por um lado, está a tradução semiótica do espaço pela conjugação das linguagens da ciência; por outro, a ampliação dessas possibilidades com o crescimento dos meios de comunicação; no vértice de tal relação estão as interferências entre os encontros culturais que levam a noção de espaço para além do circuito das línguas, desvendando o jogo de forças geopolíticas na atualização do conceito de espaço materializado pela linguagem. Se, para os antigos, a tradução do espaço não se fez sem a descoberta de um código cultural, a variação e expansão dos códigos implicam movimento equivalente na conformação do espaço que se manifesta como construção semiótica da cultura.
3. Espaço semiótico de fronteira
Desde as línguas que vinculam pessoas a territórios até os meios em suas diferentes versões tecnológicas (alfabéticas, eletrônicas, digitais), o vínculo entre comunicação e espaço constrói relações de interesses e de poder. No desenvolvimento da vida sócio-política, tal conjugação sustenta a arena daquilo que se consagrou como luta pela informação, seja entre sistemas culturais, seja em espaços geopolíticos. Disputas por territórios desenvolveram sofisticados sistemas de tradução do espaço pela linguagem. Dos mapas e cartografias aos modernos diagramas e infográficos digitais gerados por imagens videográficas e processamento numérico, os limites geográficos foram traduzidos por diferentes códigos culturais de línguas nacionais e de linguagens artificiais da ciência e da tecnologia. Observa-se que, quanto mais diversificados se apresentam os sistemas de comunicação com o entorno, maior se torna a arena de luta pela informação e, por conseguinte, mais complexas se tornam as relações com o próprio espaço de informação e, por conseguinte, mais explícitas são as configurações do espaço semiótico.
Num primeiro momento, pode-se dizer que a tradução do espaço desenvolveu-se em função do espaço contínuo da superfície terrestre, do movimento da terra, para o mar e para o ar. Assim se consagraram os processos tradutórios de conhecimentos em campos de saber: a astronomia e a geografia. Graças, porém não somente, a esses conhecimentos o mundo foi traduzido num mapa. Além das coordenadas geográficas existem coordenadas geopolíticas em que o reconhecimento do espaço acontece por outras esferas semióticas, como as instâncias lingüísticas que dependem muito mais de jogos de forças instituídos do que dos fenômenos geográficos ou astronômicos. Um exemplo de evidência nesse sentido pode ser reconstituído da história do ocidente quando o tratado de Tordesilhas dividiu o mapa do mundo numa isoglossa entre portugueses e espanhóis. Amparado pelo depoimento de Ivo de Castro diríamos que esse foi o primeiro gesto semiótico de caráter geopolítico.
O que sempre mais me impressionou, na história do tratado de Tordesilhas, foi aquele gesto de uma mão apostólica, traçando de alto a baixo sobre um mapa do mundo a divisória de dois impérios e definindo por antecipação os espaços reservados às línguas suas companheiras. Impressiona-me a teatralidade do gesto, destinado a funcionar no plano litúrgico da ordenação do mundo, muito mais do que sua eficácia histórica, que é indiscutível, ou a sua infalibilidade, que o é menos (Castro, 1997: 27).
A isoglossa levou ao desenvolvimento daquilo que estudiosos propuseram como «língua-mar», um movimento transcontinental das navegações quinhentistas que levaram para o além-mar línguas de culturas européias, o espanhol e o português, que eram assim projetadas para o espaço do continente americano em sua porção sul que muito propriamente ganhou o nome de latino-americano. Nele se instituíram e se desenvolveram modos diferentes de falar e de viver no mundo.
Todavia, este não foi um fenômeno isolado em que a língua se encarrega de definir traços e domínios geopolíticos. Na aventura das navegações desenvolveram-se as línguas chamadas crioulos na costa ocidental da África. Num primeiro momento tratava-se de um plano emergencial do reino português, que treinou africanos para a tradução de diferentes línguas de etnias distintas (Pereira, 1997: 47). Porém, em seu desenvolvimento, o crioulo, que era uma língua simplificada com um reduzido número de palavras e previsto para funcionar em situações comunicativas bem determinadas, sofreu interferências de outras demandas. Ao ser adquirido culturalmente, o código simplificado impôs uma recodificação de modo a torná-lo mais complexo e operacional para os diferentes contextos de uso da linguagem (Pereira, 1997: 50). O crioulo e sua prática no deslocamento do português para o além-mar criou um espaço semiótico de comunicação culturalmente poliglota e atravessado por línguas de fronteira que definiu com acerto o caráter fronteiriço da própria cultura portuguesa. Trata-se de um mecanismo semiótico que situa a linguagem numa outra base de domínio geopolítico tanto do português com relação ao crioulo, quanto desse com relação às suas próprias possibilidades enunciativas no contato com outras línguas africanas. Cria-se um espaço de fronteira muito distante dos limites territoriais, colocando em questão noções como de país, de nação, de etnias no âmbito de um poder constituído pelo Estado.
Segundo a hipótese de Boaventura Sousa Santos, se o papel do Estado criado no século 19 foi distinguir a cultura do território nacional em relação ao exterior ao mesmo tempo em que promovia a homogeneidade cultural no interior do território nacional, em Portugal o Estado falhou em cumprir seu papel. A cultura portuguesa sempre revelou dificuldade não apenas em se distinguir de outras culturas como também em se manter homogênea (Santos, 1997: 149). Graças à sua heterogeneidade interna, movimentou-se em direção a outras culturas e firmou-se como cultura de fronteira.
A cultura portuguesa é uma cultura de fronteira, não porque para além de nós se conceba o vazio, uma terra de ninguém, mas porque de algum modo o vazio está do lado de cá, do nosso lado. E é por isso que no nosso trajecto histórico-cultural da modernidade fomos tanto europeu como o selvagem, tanto o colonizador como o emigrante. A zona fronteiriça é uma zona híbrida, babélica, onde os contactos se pulverizam e se ordenam segundo micro-hierarquias pouco susceptíveis de globalização (Santos, 1997: 151).
Do ponto de vista semiótico, o espaço de fronteira assim constituído reproduz a própria dinâmica da semiosfera, tal como formulado por Lotman (1990): um espaço semiótico em que as relações culturais se orientam pela heterogeneidade dinâmica de seus sistemas semióticos. Nesse espaço, fronteira é palabra-chave de um mecanismo semiótico fundamental: a tradução daquilo que é exterior ao sistema pelo que determina o seu interior, caso da isoglossa, dos crioulos e das interações do espaço de fronteira definido por Boaventura S. Santos.
Entendemos, pois, que o espaço de fronteira semioticamente configurado pelas linguagens da cultura materializam os espaços geopolíticos que só num nível elementar podem ser pensados apenas como divisões territoriais e geográficas. O exemplo do espaço de fronteira aqui citado ao traduzir as relações entre o continente europeu e o latino-americano define um conhecimento histórico que não pode ser ignorado quando se consideram os processos de comunicação a partir dos meios sejam eles gráfico-alfabéticos, eletrônicos, digitais. Em seu processo de expansão, as línguas modelizaram espaços culturais sobretudo graças à força de seus atributos geopolíticos, a começar pelo poder imperial. Modelizar é empregado aqui no sentido semiótico de traduzir a partir de códigos heterogêneos gerados culturalmente. No processo de modelização, o modelo que se tem na saída é uma linha estrutural que se transforma e gera um código ou linguagem distinta. O latim é a nossa referência imediata do processo de modelização na Europa ocidental. Entendido como «língua imperial» graças à sua exitosa performance política na construção do império romano, o latim foi o berço da modelização de “cinco grandes línguas européias que se difundiram amplamente pelo mundo todo”. Contudo, o latim “co-habitou no império com o grego, cujo lugar não conseguiu assumir” (Le Breton, 2005: 13) e tampouco conseguiu sobreviver nas línguas românicas a ponto de ser considerado língua morta.
O processo de modelização alcança realizações em esferas não-imediatas. Considerando o caso do latim, ainda que tenha exercido o papel de língua imperial, não coube a ela propagar o imperialismo lingüístico. Esta tarefa caberia ao inglês, quando do nascimento do Estado moderno que rompeu com Roma. Fixada pelos grandes escritores elisabetanos ainda no século XVI, a língua inglesa revelou uma grande propensão a atitudes políticas como o livre-arbítrio e o não-conformismo, bem como as modelizações que a tornaram língua de comunicação às avessas, isto é, sem necessariamente servir-se de crioulos, ainda que eles existam. Tornou-se marca do imperialismo que marcou sua expansão geopolítica a partir do século XVIII, invertendo o ciclo da expansão européia (Le Breton, 2005: 14), sobretudo no que diz respeito ao espaço de fronteira. Em sua difusão planetária, o espaço geopolítico do inglês amplia-se grande parte das vezes porque encontra do outro lado “um espaço vazio, uma terra de ninguém”, para repetir B.S. Santos. Até o século XIX, o vazio certamente dizia respeito tanto à debilidade de imposição das línguas nacionais em países como a Índia ou a África, quanto à aderência à língua inglesa, como foi o caso da China, do Egito, dos Emirados árabes (Le Breton, 2005: 16). Porém, a partir do século XX, sobretudo do pós-guerra, o vazio denuncia a ausência de potencialidades em diferentes esferas da vida. Ou, como sintetiza Jean-Marie Le Breton,
O inglês teve uma geopolítica relativamente simples, para todos os efeitos, comparável à do francês. De língua nacional, ele se tornou imperial. E tende a tornar-se universal, e não apenas por uma questão de geografia. Ele aspira manifestamente a se tornar a língua do progresso, da ciência, da pesquisa; a língua da inovação, da conquista material; a língua da riqueza; a língua dos homens que são seguros de si e que podem ser tomados como modelo, sem deixar de ser a língua do não-conformismo e da liberdade de espírito (Le Breton, 2005: 21).
Nesse novo espaço de fronteiras criado pela língua inglesa e consolidado no pós-guerra, os meios de comunicação são modelizados cultural e geopoliticamente. Os meios, por sua vez, modelizam a língua que se torna amplamente difundida pela indústria cultural estadunidense: cinema, rádio, televisão, jornais e mídia exterior. Diríamos que ao ser modelizada, a língua inglesa conhece diferentes formas de crioulização, não somente quando entra em contato com outras culturas como também com os produtos da indústria cultural: música, filmes, histórias em quadrinhos, notícias e anúncios. A modelização observada num espaço de fronteira constituído por tão distintos meios, cada um traduzindo a linguagem de modo próprio e em função da qualidade semiótica do meio (gráfico, sonoro, visual, audiovisual, cinético), acaba facilitando a expansão do campo das linguagens icônicas. Para além dos diagramas da ciência, as linguagens icônicas dos meios audiovisuais, sonoros e cinéticos levam às últimas conseqüências a configuração do espaço semiótico da cultura que, observado em seus constituintes, parece totalmente desvinculado de qualquer vínculo geopolítico.
4. Linguagens icônicas na tradução semiótica do espaço e na modelização geopolítica
É sempre bom lembrar que modelização é um conceito semiótico formulado no contexto da informática para designar a transformação de processos de formação de linguagem em sistemas de cultura graças ao trabalho de sistemas sígnicos que se expandiram para além do sistema verbal (Lotman, 1978). Ainda que as artes sejam o campo por excelência de experimentação de linguagem, graças ao seu incansável processo de criação de códigos, os semioticistas da cultura entenderam os meios de comunicação como um campo igualmente desafiador de criação de linguagens culturais, onde estão incluídas as linguagens artificiais da ciência. Tomando a língua como modelo, estabeleceram, comparativamente, o desenvolvimento das linguagens modelizadas. Assim como os códigos alfabéticos se encarregaram de produzir as linguagens gráficas e as linguagens visuais, os códigos mecânicos (como os da fotografia), os códigos elétricos (como os do rádio, do cinema ou da televisão) e os códigos informáticos (dos meios digitais) se tornaram potencialmente criadores das «linguagens icônicas». A modelização do espaço pelos meios tecnológicos acolhe todos esses códigos.
Como já foi possível observar aqui, do ponto de vista da escrita e dos meios impressos subseqüentes, o entendimento de que o espaço é sempre codificado ocorreu historicamente em diferentes esferas da língua, da geografia ou da política. O que marcou o surgimento dos Estados nacionais senão a codificação do espaço segundo o domínio territorial político? Tanto o código gráfico quanto as línguas nacionais tornam-se expressão do espaço geo-político e ambos se confundem, como entende Demétrio Magnoli. Segundo ele, a cartografia desenhada em superfícies por códigos gráficos da escrita levaram muitos estadistas e governantes a crer que a geopolítica deveria ser a consciência geo-gráfica do Estado (Magnoli, 1990: 84). Nesse sentido, os mapas garantiam a tradução das superfícies em termos gráficos assegurando os próprios limites das propriedades do Estado e, por conseguinte, de seu poder político e da própria geopolítica. As guerras praticadas em nome da defesa e da expansão do espaço como síntese de poder tornaram-se, assim, a “pedra de toque original de todo pensamento geopolítico” (Magnoli, 1990: 85).
Contudo, não se trata de espaço geopolítico enquanto organização física, mas sim de espaço semiótico codificado, isto é, imerso na semiosfera, uma vez que as informações dos limites territoriais são transformadas em intervenções linguísticas e ações escritas em códigos gráficos. Resulta daí a modelização cartográfica primordial do espaço sob forma de esfera que, como vimos, codifica o mundo e o torna moeda de troca como entidade discreta e, portanto, peça de conquistas. Por um lado, assenta-se a noção de que o estudo de superfícies encontra-se vinculado ao espaço contínuo terrestre, com limites como mares e oceanos a restringir grandes domínios geopolíticos. Por outro, cresce a consciência de que a restrição das superfícies à “grafia” das informações disponíveis a partir de códigos especialmente criados superpõe ao espaço geográfico um espaço cultural e socialmente construído. Quer dizer, aquilo que conhecemos como espaço geográfico é, em grande medida, um campo em que o espaço combina sua dimensão contínua à sua representação cultural discreta[1]. Por conseguinte, nenhum conhecimento do espaço terrestre contínuo pode prescindir das invenções culturais consagradas pelas “grafias” da Terra (Kemp, 2010: 35), sejam os relevos das superfícies, sejam os gráficos impressos no interior das rochas. Em todos esses casos, o espaço se evidencia por meio de diferentes linguagens icônicas.
Numa definição preliminar, o processo icônico diz respeito à relação de similaridade dos objetos de representação que podem ser, assim, construídos por meio de imagens visuais. Numa interpretação semiótica, icônico é o processo por excelência dos vínculos relacionais, das associações não necessariamente imediatas dos objetos. Daí que as linguagens icônicas operarem com imagens diagramáticas em que atuam interativamente signos contínuos e signos discretos, sem formar oposição. Tal distinção é fundamental para se compreender as linguagens icônicas geradas a partir dos códigos elétricos. Nelas os sistemas espaciais de referências tais como desenhos, números, letras, cores, formas geométricas e escalas interagem conjuntamente para a elaboração das linguagens icônicas acarretando um refinamento cognitivo do próprio espaço. Para além da superfície visual, projetam-se os movimentos invisíveis que reverberam em fluxos. Para o semioticista Iúri Lótman, os códigos culturais envolvidos em processos dessa natureza
...não se apresentam aqui como sistemas rígidos, senão como hierarquias complexas, com a particularidade de que em determinados níveis devem ser comuns e formar conjuntos que se interseccionam, mas em outros níveis aumentam a gama de intraduzibilidade de diversas convenções com distintos graus de convencionalidade (Lotman, 1998: 14).
As linguagens icônicas não são privilégios dos meios tecnológicos como a linguagem visual da fotografia. Contudo, com a escalada do desenvolvimento dos meios de comunicação ancorados no cinema, rádio e televisão, o processo icônico assume estatuto de linguagem dos códigos icônicos da eletricidade distante, pois, das formas gráfico-visuais e muito mais próximos dos processos audiovisuais em que a luz, o som e o movimento se tornam os códigos fundamentais.
Marshall McLuhan um dos principais articuladores do conceito no contexto dos meios de comunicação observou que as linguagens icônicas funcionam a partir de padrões composicionais que os meios elétricos oferecem: mosaicos gráficos, montagem de planos de luz em películas, telas, movimentos multidirecionais e espaços ressonantes. Na noção de mosaico, McLuhan sintetiza a sintaxe relacional que sustenta um conhecimento do mundo baseado em padrões e não em unidades. Enfatiza a combinação de estruturas de significação e também de intercambialidade de funções, tais como aquelas que foram alvo da análise da página de jornal que abre o seu livro The Mechanical Bride (1951). Nela o mosaico resulta da combinação entre a dimensão gráfico-visual da palavra com os diagramas da composição multidirecional de um espaço que convida, não para a leitura da página «deitada», mas da página «erguida» num espaço público ou banca de jornal. Se, por um lado, o grafismo, visualidade, espacialidade surgem como padrões estruturais da página impressa, por outro, os efeitos produzidos na interação em ambientes valorizam os processos relacionais que se tornaram a base do processo audiovisual. Com isso, a noção de mosaico articula-se no arranjo dos elementos de sua constituição interna com os efeitos externos ambientais.
Em análises das histórias em quadrinhos, da fotografia, do cinema e da televisão, dos anúncios em espaços públicos, McLuhan examina alguns padrões de composição das linguagens icônicas geradas pelos códigos da luz. Traços, ângulos, planos, pontos, tomadas, recortes, sequências, composição figura / fundo, montagem, edição – eis alguns dos padrões que definem a composição daquilo que emerge nas superfícies de telas, cujas proporções e dimensionalidades distinguem as significações. As linguagens icônicas evocam, pois, representações que jogam com relações de dentro e fora; figura e fundo; luz e sombra; encontrando nas telas o local privilegiado de sua constituição semiótica.
Nesse sentido, tudo o que McLuhan observara a respeito das linguagens icônicas projetadas pela luz nas telas de televisão apenas completou as explorações iniciadas nas análises dos mosaicos de luz, nos diagramas nas páginas de jornal, nas inscrições de superfícies rupestres e, até mesmo, nas iluminuras. Em todas essas produções culturais, as linguagens icônicas compõem, mais do que imagens visuais, ambientes de luz que oscilam entre as relações de similaridade (de figuras) e as de contigüidade (de fundo). O treino de percepção aqui demanda muito mais a capacidade de despertar analogias do que de seguir o modo analítico, tão comum nas operações da linguagem verbal.
Do ponto de vista dos padrões de composição, o processo de comunicação acontece em esferas que não são limitadas à compreensão lingüística, mas envolvem arranjos sensoriais de outra natureza. Histórias em quadrinhos, anúncios, filmes, música e programas de televisão empreenderam sua marcha para além dos limites dos países de origem, seja Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, independentemente do domínio da língua inglesa. Pelo contrário, é pelo viés dos produtos culturais que a própria língua inglesa passa a ser modelizada. Prova disso é o fenômeno de alfabetização nessa língua passa a ocorrer a partir de músicas, filmes e pelos programas computacionais.
O campo das linguagens icônicas desenvolvido pelos meios configura um espaço geopolítico modelizado pela língua inglesa, introduzindo um outro processo de dominação até mesmo em países que fizeram frente ao domínio americano desde o pós-guerra. Isso porque sua ação deslocou-se da língua para os productos dos meios de comunicação. Considerando a dominância dos meios, e particularmente o papel das linguagens icônicas em todo esse processo, a concepção do espaço desloca-se do espaço terrestre para o espaço geopolítico modelizado pelos códigos elétrico-digitais que se encarregaram não apenas de uma nova concepção de espaço como também de configurar uma nova sensorialidade.
5. Culturalização do espaço ressonante
Pelo viés da qualidade sensorial dos meios, os circuitos eletrônicos audiovisuais estão a promover modelos de espaços em que o movimento das interações desvincula-se da transmissão e deixa de ser uma linha que liga dois pontos para se tornar um circuito vibrante de ressonância. Quanto mais explícitas forem as reverberações dos meios em processos de comunicação, mais explícitos serão os processos transformadores do espaço em informação, ou seja, em dados ou códigos icônicos. Nesse sentido, a própria noção de circulação fica comprometida uma vez que esta pressupõe lugar e posicionamento – limites que certamente não são suficientes para denominar a diversidade de transformações do espaço de informação concebido como meio.
As telecomunicações (de redes, de satélites, de fibras ópticas) trouxeram à luz meios cuja base digital tem como alvo o próprio espaço. Câmeras, antenas, satélites e redes de teledetecção ou de geolocalização se encarregaram de miniaturizar o espaço processando informações de modo a torná-lo objeto de intervenção. As chamadas mídias sociais que operam em espaços virtuais, as locativas e de geo-localização não deixam de funcionar como satélites miniaturizados em meios específicos como os GPS e smartphones. Quando o próprio espaço se torna meio é chegada a hora de enfrentar as configurações que se reportam às coordenadas geográficas não somente de posicionamentos mas, sobretudo, de fluxo de informação. Tudo aquilo que culturalmente se desenvolveu como cinese e como cinema torna-se repertório fundamental para se avançar na compreensão do regime de espacialidade do qual nos aproximamos. Nesse sentido, é o cinema com seus códigos audiovisuais que passa a operar a modelização do espaço geopolítico informático e não mais as línguas nacionais.
A partir de um deslocamento no modo de compreensão do papel dos meios de comunicação na criação de espaços surgem especulações e inferências que nos levam a rever a produção cultural do espaço. Ainda que circunscritos ao espaço terrestre, os meios eletrônico-digitais dimensionam um espaço que se apresenta extra-terrestre (outer space). Na disputa por tal espaço, se colocam questões como a definição geopolítica não relacionada com a superfície mas com o outer space e a consequente culturalização desse espaço (na verdade, um outro nível de tradução cultural). Tal culturalização do espaço, todavia, não se limita a considerar o espaço externo em relação à superfície terrestre. A grande lição de McLuhan foi mostrar que as telecomunicações e satélites criam um espaço intervalar replicante: não é apenas o satélite que está no espaço é o espaço que é internalizado criando uma exotopia em função da simultaneidade do continuum espacial. Os meios transformam-se em espaço que é assim culturalizado. O sensoriamento do espaço ressonante constrói um espaço semiótico em que a exotopia é parte do movimento que permite o intercâmbio e, consequentemente, o controle entre o espaço contínuo e o discreto como parte do processo intervalar da miniturialização.
Em estudo anterior (Machado, 2012) examinamos o documentário de Denis Delestrac sobre a militarização do espaço[2], de modo a compreender como o poder militar, desenvolvido a partir da guerra fria, elevara o domínio geopolítico para fronteiras do espaço exterior com pleno poder de dominação sobre o espaço terreno cotidiano, até mesmo em suas ações mais triviais como, por exemplo, consultar um caixa eletrônico de banco, atravessar uma rua respeitando o sinal luminoso ou utilizar um aparelho celular.
Na ocasião de nosso trabalho, inferíamos que, se os depoimentos que constituem o argumento de fundo do documentário Pax Americana estivessem corretos, o espaço exterior (outer space) seria uma terra incógnita refratária a qualquer forma de culturalização, tese defendida pelos militares da NASA. Contudo, nesse espaço são lançados os satélites meteorológicos, de posicionamento, de telecomunicação, de teledetecção para fins de controle. Espaço e satélites tornam-se sinônimos, cabendo ao segundo definir a expressão do primeiro enquanto extensão tecnológica, o que lhe conferiria visibilidade. Somente no discurso militar-tecnológico da NASA o espaço externo pode ser um espaço não culturalizado, alheio a quaisquer restrições, até mesmo aquelas de caráter geopolítico. Evidências de tal concepção sustentam os programas espaciais estadunidenses que, implementados no pós-guerra, atingiram maturidade no vigor da guerra fria, sobretudo depois que a então URSS lança o seu satélite Sputinik (1958). Aquilo que passou a ser chamado de corrida armamentista mostra o quanto o espaço exterior com seus satélites geoestacionários emerge como um novo território a ser conquistado, controlado e defendido do livre acesso entre potências que, cada uma a seu modo, se entende no direito de propriedade desse que, protocolarmente, é um espaço exterior ao mapa geopolítico do planeta. Pax Americana explorou o espaço geopolítico dos satélites pelo viés do discurso militar estadunidense que passa longe do processo de culturalização. Muito provavelmente os soviéticos que ocuparam o outro pólo de constituição da guerra fria agissem da mesma maneira.
6. Considerações finais
Diríamos, pois, que o espaço gerado pelos aparelhos de sensoriamento remoto imprime no espaço geopolítico modelizações ressonantes consagradas pela cibernética. Freqüências e movimentos que transformam as informações em espaços de relações em que diferentes escalas e padrões se confrontam tornando presente a própria reverberação.
Não é preciso grandes esforços para se apreender que o espaço mediado pelos instrumentos audiovisuais informáticos são processados por códigos e modelizados por línguas e linguagens, o que é suficiente para garantir que se trata de um espaço culturalizado e imerso na semiosfera da comunicação tecnológica. Do ponto de vista das distintas semioses, o espaço geopolítico não apenas modeliza o espaço de informação geográfica como também é modelizado por ele.
As linguagens icônicas codificadas pelos processos digitais operam com padrões que parecem assim propriedade das máquinas semióticas e não dos jogos de força e de poder como aqueles observados quando da expansão lingüísticas transcontinental. Na verdade, a invisibilidade dos procedimentos fizeram crer na inexistência dos confrontos geopolíticos e, no entanto, eles dominam todas as nossas ações no mundo globalizado e transformado pelas tecnologias de comunicação. Os gestos geopolíticos se tornaram muito mais incisivos e ubíquos, ainda que não tenhamos a menor consciência de seu potencial de intervenção.
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[1] Em semiótica, signo discreto é aquele cujos constituintes podem ser decomponíveis em unidades menores como sons ou palavras; já o signo contínuo só pode ser considerado em sua totalidade, caso de imagens visuais como fotografia, pintura. Em geografia, a superfície terrestre é sempre contínua, assim como os mapas e os diagramas. Na física, as entidades contínuas constituem campos (Kemp, 2010: 35). Contudo, os campos desenhados em mapas e diagramas são representados graças aos signos discretos.
[2] Pax Americana and the Weaponization of Space (EUA, 2010).
A importância do valor semântico na seleção de artigo em sintagmas preposicionais: contributo para o ensino e aprendizagem de PLE/ L2
Joaquim Ramos
Instituto de Estudos Românicos, Faculdade Letras da Universidade Carolina
(Portugal)
1. Introdução, identificação de problemas e apresentação de corpora
A questão da utilização do artigo enquanto integrante da classe dos determinantes levanta uma série de questões e problemas que se agravam quando esta tipologia é convocada por falantes não nativos, mormente se nas suas línguas de origem o determinante/ artigo não é uma figura autónoma ou, no caso das línguas do grupo eslavo ocidental, sequer existente.
Numa abordagem meramente conceptual, o Dicionário Terminológico (DT) da língua portuguesa[1] define o artigo como sendo um «Determinante que é utilizado para indicar o grau de definitude ou especificidade do nome que precede», antecipando a construção do valor referencial do nome com que se relaciona. Da mesma forma, este instrumento distingue artigos definidos de indefinidos, associando os primeiros a «contextos em que se assume que o referente do nome que precede corresponde a informação partilhada pelos participantes do discurso» (Neves, 2000: 396); os segundos aparecem sempre que «o referente do nome que precede não corresponde a informação dada ou previamente identificada» (Duarte e Oliveira, 2003: 223). Cunha e Cintra, por sua vez, notam que os artigos precedem os substantivos, indiciando que estes representam entidades já conhecidas «do leitor ou ouvinte, seja por ter sido mencionado antes, seja por ser objeto de um conhecimento de experiência (…)» ou «que se trata de um simples representante de uma dada espécie ao qual não se fez menção anterior» (cf. 1999: 207)
O determinante/ artigo é, numa primeira observação, tido como um elemento de base funcional simples, com operacionalização conhecida no contexto das línguas românicas que o empregam, mormente no da língua portuguesa. Sucede, todavia, que o desempenho estrutural e consequente valor interpretativo da presença desta classe de palavras na frase levanta algumas questões complexas que se relacionam com a perceção semântica, pragmática e estilística subjacentes ao tratamento da informação pelo recetor. Considerando tais dificuldades, alguns autores (cf. Lapa 1984: 114) chamam a atenção para valores expressivos indissociáveis do artigo que, por força das suas variantes, conduzem a interpretações muito diversificadas do nome a que se liga ou da própria expressão na sua globalidade. Poderemos ainda sustentar, com base em exemplos concretos, que tal fenómeno orbita em torno de categorias tais como a familiaridade (1 a), a partição (1 b), a generalização (1 c), a banalização (1 f) e até a qualificação (1 e). Em (1 f, 1 g e 1 h) é possível aferir com mais detalhe o comportamento do artigo em contexto descritivo: (1 f) e (1 g) admitem a possibilidade de substituição um pelo outro porque estamos perante expressões referenciais e, portanto, não predicativas. Uma nota apenas para referir que estas duas construções são também bons exemplos de frases equativas, pelo que acabam por levantar outras questões linguísticas mais complexas, a que não nos referiremos aqui por não ser o objeto do trabalho. Já nos exemplos (1 i) e (1 j) estamos perante uma variação interpretativa em que a opção diferencial pela contração (Prep + Art) ou [Prep + (Art) Ø] confere à expressão um valor semântico de limitação territorial ou um valor funcional alargado, respetivamente.
b. A Maria tirou futa da mesa./ A Maria tirou a fruta da mesa.
c. O homem é mortal.[2]
d. O Camões era um grande poeta.
e. Eis o homem!
f. Cavaco Silva é Presidente da República.
g. Cavaco Silva é o Presidente da República.
h. O Presidente da República é Cavaco Silva.
i. O presidente da câmara municipal e o presidente da junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos.
j. “O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos“[3]
Ainda considerando o aspeto nocional e abstrato desta classe de palavras, há autores que relevam a importância do artigo na medida em que este traduz uma intencionalidade do locutor e o modo «como ele quer comunicar uma determinada experiência» (Neves, 2000: 391). Esta visão destaca a natureza delimitadora do artigo, permitindo, v.g., transformar um sintagma nominal classificador num identificador (idem: 394):
b. Presidente de Ø Câmara Municipal / Presidente da Câmara Municipal
A mesma autora chama ainda a atenção para outras funções desempenhadas pelo artigo, designadamente na delimitação de sintagmas partitivos (3) ou na utilização daquele como «adjunto de substantivo marcado por relação de posse inalienável com o nome sujeito» (Neves, 2000: 399) (4). Apesar de tudo, a autora nota que este último tipo de construções também pode ocorrer sem artigo (5) e (6).
Em estudos aplicados, outros autores identificam variáveis que podem influir na seleção ou abandono do artigo definido em função da respetiva tipologia textual. Svobodová (2006: 76), por exemplo, nota que o recurso ao artigo zero (Ø) é mais frequente no âmbito da produção de títulos de textos jornalísticos noticiosos, bem como em comunicados, mormente em comunicados de síntese. Nestas produções há, inclusivamente, uma alteração da participação normal do artigo nas operações de «determinação de individuação ou de especificação», dado que esta classe costuma ocorrer quando os substantivos a que se liga representam «indivíduos ou objetos concretos» (idem, 2006: 71). Observem-se os seguintes casos:
É certo também que estes estudos aplicados tendem a ser bastante balizados por uma conceção funcional (ou funcional-estruturalista) fortemente influenciada pelas teorias dos linguistas checos e eslovacos, alguns defendendo uma abordagem de primado estilístico (eventualmente, estilístico-semântico) com separação conceptual entre estilema, informema e pragmema. Estas escolas promovem uma tendencial fragmentação conceptual (diríamos até uma ‘hiper-fragmentação’ conceptual), aliás comum também às escolas germânicas que procuram uma tipificação atomizada das experiências identificadas. Neste contexto pedagógico, é natural que uma abordagem ao ensino do artigo se faça explorando o que poderíamos chamar micro-variações na realidade aplicada ao ensino-aprendizagem do Português língua estrangeira/ L2. Todavia, o incremento de programas de intercâmbio de estudantes e docentes levou muitos professores a optar por uma abordagem mais híbrida que permitisse um diálogo entre estas conceções e as ideias seguidas por autores portugueses e brasileiros. Svobodová, que citámos anteriormente, acaba por propor uma solução de charneira que aproveita a flexibilidade funcional e a variabilidade desta classe de palavras, desdobrando o que Bechara designara por valor estilístico contextual (Bechara, 2001: 153) em três valores fundamentais associados ao artigo enquanto elemento funcional, distinguindo o que chama valor ‘constante’ – extraído num momento primário de interpretação valorativa – dos valores ‘aderente’ e ‘inerente’ – situações em que se encontram, respetivamente, o valor comummente associado ao sistema nominal, a «adesão de um significado estilístico secundário ao próprio significado lexical» (Svobodová, 2011: 158) e uma limitação de significado associada a uma «determinada esfera de comunicação: termos técnicos e palavras especializadas que fazem parte de uma linguagem» (idem), esta última pressupondo também a existência de um «pleno significado nocional, mas suprimida a componente pragmática da comunicação» (cf. Krčmová et al. 1997: 128, apud Svobodová 2011: 158).
Na prática, teremos, então:
Os exemplos apresentados mostram claramente uma diferença entre o valor constante associado a uma situação com predicativo do sujeito em discurso corrente (10), verificando-se o mesmo valor constante no exemplo (11), embora com alterações estruturais de produção textual impostas pelo registo jornalístico: [Ø médico segura Ø coração de Ø bebé]. Em (12) o artigo introduz um peso marcadamente enfático; um valor aderente, o mesmo acontecendo em (13), exemplo já apresentado anteriormente. Neste plano de relevo estilístico do artigo, a presença de um valor constante associado ao sentido nocional, neutro e não-marcado, determinaria a existência de um informema, enquanto a associação de um valor aderente notaria a presença de um pragmema (Findra, 2002: 96), dada a correlação com sentidos emocionais, expressivos e as formas marcadas que, através da contextualização do elemento, lhe atribuem significados e valores semânticos diferentes. Note-se, em tempo, que esta relevância da presença do artigo, mas também a relevância interpretativa do “não-artigo” nestas estruturas, nos levou a preferir a designação de artigo zero (Ø) rejeitando o descritivo, a nosso ver simplista e insuficiente, de “inexistência” ou “ausência” de artigo.
Perante realidades tão díspares e abordagens conceptuais tão diversas, considerando ainda o facto de estarmos a trabalhar com estruturas sintáticas específicas, mas tendo como objetivo último a análise semântica do relevo do artigo no âmbito do grupo preposicional, em vários contextos, num ambiente próprio do Português como língua não-materna, entendemos por bem desenvolver este estudo com recurso a dois corpora farol: um mais sistemático-textual, o CETEMPublico 1.7 v. 4.0 (Rocha & Santos, 2000)[13], e um outro, mais tópico, que consiste numa simples «lista de unidades lexicais multipalavra nominais em português europeu» baseado em trabalhos do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL). Com a análise do primeiro, pretende-se fazer um estudo contextualizado que permita avançar com uma interpretação e subsequente extração de valores semânticos integrados em textos com estrutura pouco pesada, apurando as variações semânticas provocadas pelo artigo (ou pelo não-artigo) num ambiente mais pragmático. Com a análise do segundo, procuraremos explicitar bases teóricas e encontrar linhas de coerência funcional que antecipem alguma segurança quando se trate de criar estratégias de utilização do artigo na formação de estruturas integradas de tipo N1 + Prep (+ Art Ø) + N2 ou, em alternativa, N1 + (Prep + Art) + N2, em que ‘N1’ e ‘N2’ são nomes sequenciais no sintagma preposicional e em que ‘Prep’ e ‘Art’ representam preposições e artigos constituintes do núcleo preposicional. Pretende-se ainda, através da análise de elementos destes corpora, compreender a aquisição de alguns dos valores semânticos que, em abstrato, lhes estão associados.
Reunimos ainda uma coleção de textos autênticos constando de vinte trabalhos redigidos pelos alunos de quatro turmas diferentes, com competências identificadas entre os níveis B1 e C1 do QuaREPE[14], inscritos no curso regular de licenciatura da Faculdade de Letras da Universidade Carolina em Praga, tendo o checo e o eslovaco como línguas maternas.
Com base na análise da produção textual dos alunos, incluída no corpus acima descrito, procedemos à identificação das questões mais problemáticas e das interpretações que estiveram na base da maior parte das aplicações anormais do sistema preposição + artigo (Prep + Art), ou mesmo da ausência total de artigo quando a utilização do mesmo era obrigatória. Dado que tais fenómenos de inadequação linguística na produção textual dos alunos podem comprometer a interpretação associada a determinada estrutura e conduzir a problemas de ambiguidade semântica (Duarte, 2000: 297), entendemos por bem promover acareação entre este corpus material autêntico de produção dos alunos com os corpora anteriormente citados. Desta operação, concluímos o seguinte:
Eis os resultados indicativos:
aa) ausência total de preposição: 14 casos;
ab) uso indevido de artigo em contração com preposição: 15 casos
ac) regime preposicional errado: 18 casos
ad) inobservância de contração quando normativamente exigida: 8 casos
ae) falta de artigo quando exigido: 3 casos
A título de exemplo, apresentamos algumas situações ilustrativas das irregularidades encontradas, em comparação com a proposta de estrutura dita normativa (||):
|| O mundo das crianças é um mundo cheio de aventuras
|| Edifício situado em Benfica
|| Não é possível todos os estudantes de história encontrarem trabalho
|| A ordem de trabalho[s] [da reunião] era a seguinte:
|| A reunião contou com a presença de vinte e dois associados, oito não estiveram presentes.
|| Pude parar e comprar uma lata de gasolina.
Eis alguns exemplos de sub-utilização de artigo, em contraste com a estrutura tida por normativa (||):
|| Além disso, [Moçambique] é atractivo por ter cidades antigas da época da colonização.
|| Moçambique é, na realidade, um país feito para mim.
|| A arquiteta Felícia discordou das sugestões do Dr. Jorge Pinheiro.
|| O condutor do automóvel perdeu o controlo e bateu diretamente na frente do elétrico.
Verificaram-se 8 situações de utilização não-normativa de artigo em construções, tais como:
Estes exemplos traduzem as dificuldades que, pensamos, decorrem da impreparação para a utilização de um processo mental de seleção de uso ou dispensa da figura do artigo, cujo conceito aplicado não faz parte do esquema comum de utilização da língua, nem em contexto meramente comunicativo.
2. A problemática da seleção e operacionalização do determinante/ artigo definido
A análise concreta da experiência de sala de aula mostra que há uma dificuldade manifesta, por parte dos alunos cuja língua nativa não possui o conceito de ‘artigo’ em utilizar esta figura no âmbito do sintagma preposicional, articulando com sucesso um elemento invariável operador de “relação sintática e semântica entre duas expressões x e y” (Raposo e Xavier, 2013: 1497). Considerando y complemento da preposição em presença de artigo (definido, indefinido ou Ø), procurámos encontrar um processo de orientação maiêutica que permitisse aos discentes selecionar, dentro desta classe de palavras, o determinante adequado à respetiva produção textual, em articulação conjunta com a preposição, contextualizando a sua ocorrência estrutural, comportamento semântico e funcionalidade tal como desejado pelo enunciante e sem ruído potencial para o enunciatário.
Dadas as particularidades das línguas eslavas do subgrupo ocidental com cujos falantes nativos trabalhámos, a solução que nos pareceu mais viável foi a associação de um valor semântico, tradutor de uma determinada intenção informativa do enunciador, ao uso do artigo num sintagma preposicional. Assim, selecionámos três valores semânticos de referência para testar a ideia: o valor semântico de matéria, já trabalhado por vários autores (cf., por exemplo, Duarte e Oliveira, 2003: 219, 220) e usado como padrão científico de referência, o valor semântico que designámos de definição/ conceito e o valor semântico de posse.
Partindo desta hipótese, procedemos ao trabalho de análise aplicada dos sintagmas preposicionais, com a seguinte metodologia e conclusões:
2.1. Sintagma preposicional com valor de matéria
A operacionalização de elemento determinante Ø na formação do núcleo do sintagma preposicional, sempre que esteja em causa a expressão de um valor semântico de matéria associado a N1, foi já atestada por vários autores (cf., por exemplo, Duarte e Oliveira, 2003: 219, 220); vejam-se os exemplos (27) a (29). O corpus de lexemas multipalavra apresenta 106 ocorrências em que N2 surge associado a uma preposição, determinando um grupo nominal sem inclusão de artigo.
Para afinar o paradigma, realizámos um estudo da frequência deste tipo de SP no corpus CETEMPublico. Como esperado, não se detetou qualquer ocorrência de artigo a determinar nomes com referentes de matéria em contexto de SP no âmbito de grupos nominais. Exemplos das estruturas encontradas podem ler-se em (30) e (31).
Em concreto, procurando-se uma integração textual que permitisse uma melhor avaliação semântica do comportamento dos constituintes, sempre que integrados numa função associada a (N<), a conclusão alcançada era consistentemente a mesma: para o SP de madeira, assinalámos 3251 ocorrências; para o SP de aço, 864; para o SP de ouro, 6438 ocorrências. Por outro lado, casos de crase surgiram apenas em composições específicas em que o valor semântico de matéria não era conteúdo intencional. É o caso do exemplo (32) (em que há uma linguagem figurativa: o termo ouro não surge com o valor semântico de matéria descritivo de N1; compare-se com “fio de ouro”, por exemplo, em que este valor já se verifica, surgindo “ouro” como elemento químico de composição); ou o caso do exemplo (33), em que o SP da madeira aparece num contexto aspetual de processo, com valor determinativo, sucedendo a nome deverbal e associado a N1 abstrato.
Atente-se ainda à unidade lexical (29) cujo SP integrante pode ser utilizado em contextos de interpretação holística da composição, apresentando, neste caso, variações semânticas assinaláveis. Na verdade, o termo bota de ouro pode significar o material de que certa bota é feita ou, em contexto futebolístico, a designação comum do melhor jogador num determinado ano. O mesmo pode suceder com expressões como coração de ouro, punhos de aço ou cara de pau. Todavia, apesar de termos presentes estas variações de interpretação como possibilidade objetiva, elas configuram abordagens idiomáticas que não afetam as conclusões direcionadas deste estudo.
2.2 Sintagma preposicional com valor de definição/ conceito
Nos casos em que o valor semântico pretendido pelo enunciante se relaciona com uma situação dinâmica ou com uma perceção de atribuição funcional do SP em relação ao N1 que o seleciona, parece ser também necessária a dispensa de artigo definido expresso na formação do SP. Para identificarmos estas ocorrências, avançámos com um teste em que N1 fosse associável ao predicado [«serve para» + infinitivo], tendo esta estrutura capacidade para realizar substituição integral do SP original (34 a 36), ou em que N1, enquanto nome deverbal, introduzisse uma perceção semântica de ação/função. Assim, um estudo da referida lista de unidades lexicais multipalavra nominais em português europeu permitiu identificar e analisar 293 ocorrências, das quais extraímos alguns exemplos-modelo para sustentação das afirmações feitas:
Notámos ainda a presença de dois fenómenos interessantes nos exemplos estudados: por um lado, o recurso a nomes deverbais não contáveis é predominante como elemento nominal do SP por outro, verifica-se que estão normalmente em questão modificadores restritivos. Ora, esta situação antecipa também a presença de um SP com a função de modificador[15] (adjunto adnominal na terminologia de Cunha & Cintra) e pode explicar a ausência do artigo, por inutilidade, nestas estruturas. Parece ainda suceder nestes casos o que Cunha & Cintra (1999: 221) identificaram para os casos de artigo Ø com as estações do ano, sempre que estas se integrem em SP complemento ou adjunto (Ex: “Noite de inverno”). Em suma, quando surge como adjunto adnominal, o SP parece adotar um comportamento mais classificador ou adjetival e menos (ou nada) identificador, fenómeno que pode estar na base do afastamento do uso de artigo nestes casos. A mesma situação parece ocorrer, no caso de SP em função de complemento nominal, com a existência de nomes deverbais, mas encontrando-se estes em posição de N1:
A matriz semântica destes nomes (N1), fortemente associados a uma ação específica traduzida por um verbo que lhes está na origem, parece atrair um maior peso discursivo que contribui para o enfraquecimento e para a generalização do nome a que, por força da preposição, se ligam (N2).
Há ainda outra situação em que esta perceção semântica de função, delimitada por modificador restritivo, parece dispensar a integração de um artigo em contração com preposição na constituição do SP:
A restrição de significado associado a N1 é caraterística recorrente nestes exemplos. Na verdade, estas construções representam uma individualização de tipologia associada à função mas não uma individualização do objeto em concreto. No enunciado (39), por exemplo, distingue-se o albergue de juventude de entre todos os outros tipos de albergues possíveis, mas a estrutura não permite a individualização de um albergue especial enquanto realidade física concreta e localizável geograficamente. O resultado é uma unidade lexical de caráter generalizante que pode criar problemas aos aprendentes de PLE. No CETEMPublico isolámos 850 combinações que confirmam esta perceção através do recurso consistente a estruturas de tipo generalizante, que dispensam artigo contraído com o núcleo do SP. Exemplos:
Curiosamente, a presença de artigo neste tipo de composições abre portas à perceção de um valor semântico diferente, que se afasta da classificação generalizante retirável destes exemplos: trata-se da perceção de posse ou, pelo menos, de uma relação de propriedade intrínseca.
2.3 Sintagma preposicional com valor semântico de posse
O estudo de SP constantes na lista dos lexemas multipalavra do CLUL permitiu-nos isolar 98 ocorrências em que a presença do artigo era visível em estruturas do tipo N1 + (Prep + Art) + N2, semelhantes aos seguintes casos-modelo:
A análise destas construções aponta para variantes associativas entre os termos, com resultados também diferentes. Tomemos como exemplo o caso (46), que pode ser interpretado segundo um valor semântico de posse, diretamente considerada nos termos em que a conhecemos intuitivamente. Na verdade, considerando posse como significante de «1.(…) propriedade; 2. Domínio de facto exercido sobre uma coisa (…)»[16] podemos afirmar sem reservas que há uma relação de posse entre título e tesouro , no sentido em que estamos a falar de um título financeiro que pertence ao Tesouro (instituição). Por outro lado, considerando este conceito de forma mais ampla, enquanto «(…) em poder de, pertencente a, no domínio de (…)» facilmente detetamos o mesmo valor nos exemplos (44), (45) e mesmo em (49). Nestes casos, há uma relação de associação direta entre os dois elementos que nos permite perceber este valor de pertença, ou seja, uma supra/infra ordenação de posse entre um elemento e outro. Um simples teste, consistindo na aposição da partícula “que pertence a” entre termos, permitirá confirmar esta intuição:
Quer dizer, a substituição das estruturas iniciais por um conetor pré-selecionado, definidor do valor de posse – no caso, pertence a – comprova esta perceção; por outro lado, o facto de tal paráfrase exigir a presença do artigo definido como elemento indispensável para realizar este objetivo, sustenta a afirmação de que é o artigo que se afigura como elemento essencial do núcleo preposicional para a realização desde valor semântico. Apesar desta argumentação não ser desprovida de sentido, a verdade é que a colocação de tais estruturas em contexto (e/ou cotexto) pode criar problemas de interpretação diferentes de onde decorreriam, necessariamente, eventuais diferenças de valor semântico associados a cada uma das expressões. Por esta razão, pareceu-nos avisado analisar estas composições integradas em estruturas frásicas retiradas do corpus. Na sequência desta análise, constatámos a existência de 8952 situações em que os termos da e PSP co-ocorrem num contexto igual ao anteriormente descrito. Aliás, uma avaliação aleatória de algumas destas estruturas demonstra não só o valor de posse como antes o descrevemos, mas também valores reforçados de posse, automaticamente intuídos, sem necessidade de testes complementares. Ao invés, a ocorrência desta estrutura sem artigo (definido ou indefinido) surge apenas em 10 casos. Desses 10 casos, apenas 5 se aproximam de uma perceção intuída de posse, mas a sua baixa frequência – especialmente a sua frequência relativa[17] – leva-nos a crer que se trata de utilizações irregulares. Os restantes casos ou não possuem sequer significado semelhante, caso de “PSP” que, no exemplo (58), se refere a um tipo específico de biotoxina, ou não permitem extração de valor de posse, como acontece em (59), em que há um valor durativo claramente dominante.
3. Conclusões
Procurámos, com este estudo, analisar a ocorrência do artigo na construção de SP, encarando-o como um elemento essencial para a extração da interpretação global de valores semânticos associados à composição dos elementos que formam os, assim chamados, lexemas multipalavra. Procurámos também demonstrar a estabilidade da ausência do artigo definido na formação de determinadas estruturas, designadamente quando a intenção do locutor se encontra associada ao valor de matéria (já anteriormente estudado e convocado neste trabalho como modelo de análise) e ao valor de definição/ conceito, bem como, ao invés, a necessidade da sua presença quando se pretenda imprimir à estrutura construída um valor de posse.
Daqui poderemos concluir que o recurso aos valores semânticos previstos ou intencionados pelo locutor podem ser usados como padrão para a seleção (ou não) do artigo definido como elemento integrante de um núcleo preposicional, facilitando o processo mental de decisão de aplicação desta classe de palavras para aprendentes cuja língua nativa não possui tal figura, ou em que esta não assume o mesmo comportamento funcional, tal como acontece com os nativos falantes do subgrupo ocidental das línguas eslavas, no qual se inserem o Checo e o Eslovaco.
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[1] Cf. http://dt.dgidc.min-edu.pt/, recuperado a 2 de fevereiro de 2014
[2] Cf. Lapa 1984: 114
[3] Cf. Lei nº 46 /2005 de 29 de Agosto, art.º 1.º, n.º 1
[4] Neves, 2000: 399
[5] Neves, 2000: 400
[6] Neves, 2000: 400
[7] Neves, 2000: 400
[8] Correio da Manhã, 14/8/2005 (cf. Svobodová, 2006: 71).
[9] Público, 30/7/2005, (Cf. Svobodová, 2006: 71). É verdade que estes casos se encontram contextualmente delimitados, aparecendo essencialmente em títulos no âmbito da linguagem jornalística
[10] Cf. Svobodová, 2011: 158
[11] idem
[12] ibidem
[13] CETEMPublico: http://www.linguateca.pt/CETEMPublico/.
[14] Aprovado nos termos da Portaria 914/2009 de 17 de agosto, com sustentação legislativa no Decreto-Lei 165/2006 de 11 de agosto na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 165-C/2009 de 28 de julho.
[15] Repare-se que nenhum dos exemplos responde positivamente aos testes de constituência para identificação de complemento nominal (Brito 2003: 340 e ss.; vide ainda ponto II.2, supra)
[16] Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Temas e Debates, Lisboa 2003
[17] Por frequência relativa entendemos a relação entre o número de ocorrências e o conteúdo geral do corpus em situações afins.
Dobras da e na Língua: de Pessoa a Pessoa
Lucília Maria Abrahão e Sousa
Universidade de São Paulo
Vanise Medeiros
Universidade Federal Fluminense
(Brasil)
Imagem 1: Fotografia da exposição “Fernando Pessoa – plural como o universo”
Introdução
Em breves palavras, este trabalho advém do encontro de pesquisas consolidadas no campo das ciências da linguagem, desenvolvidas no âmbito do EL@DIS(Laboratório Discursivo - sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimento – USP-Ribeirão Preto) e do LAS(Laboratório Arquivos do Sujeito – UFF) por Sousa e Medeiros respectivamente. Com a primeira linha de pesquisa, intenta-se estudar a inscrição do literário em exposições dadas a ver no Museu da Língua Portuguesa (São Paulo/Brasil) em que o digital comparece como constitutivo do arquivo e coloca à mostra, nas exposições temporárias do Museu (doravante MLP), o nome de um autor da literatura brasileira ou portuguesa que é homenageado. Com a segunda linha de pesquisa, propõe-se uma reflexão sobre o imaginário de língua na relação com o sujeito, tendo como alvo o discurso literário sobre a língua, seja da posição discursiva do literato ou não.
Ambas têm, como sustentação teórica, a Análise de Discurso de Michel Pêcheux, na articulação com a História das Ideias Linguísticas de Sylvain Auroux, e ambas se interessam pelas discursividades sobre a língua e sobre o literário. É justamente em dois pontos fundamentais – na sustentação teórica de base discursiva e no intricamento da língua com a literatura – que os dois percursos das pesquisadoras e o interesse de ambas se tocam e se aproximam de um lugar comum, qual seja, analisar, interpretar e tatear o literário no âmbito dos estudos linguísticos. Neste trabalho, um terceiro ponto, o nome de um escritor, tece a reflexão sobre língua e sujeito, em que analisamos o modo de dizer da/sobre a língua materna, essa primeira fronteira que é nascedouro do sujeito e onde ele se deposita para fazer versos e prosas.
Para esta apresentação, analisaremos o discurso de e sobre Fernando Pessoa. Nosso corpus considera os modos de inscrição do discurso sobre a língua em ensaios do poeta português bem como modos de inscrição do nome próprio deste autor na exposição Fernando Pessoa – plural como o universo, que ficou meses aberta à visitação e colocou a obra do poeta português em discurso. Ambos compõem um mosaico de referências advindas do discurso acadêmico, literário e biográfico; ambos tocam e afetam a língua...
Importa ainda registrar que este trabalho se divide em duas partes: na primeira damos a saber o lugar teórico que sustenta nossas investigações e nos debruçamos sobre um ensaio manuscrito de Pessoa ; na segunda parte, mergulhamos na exposição que tematiza os dizeres e a voz do poeta português sobre a ortografia. Muito já se tem dito e escrito sobre Pessoa; nosso trabalho traz duas singularidades: em primeiro lugar, trata-se de uma abordagem discursiva (cujos nomes que dão diretriz à reflexão são Pêcheux e Orlandi) no encontro com o campo da História das Ideias Linguísticas (cujo nome basilar é Auroux); em segundo lugar, traz duas materialidades distintas - um manuscrito sobre a língua e uma exposição sobre um autor. Isto significa que não iremos trazer, resenhar e discutir uma bibliografia sobre o manuscrito de Pessoa, embora ela tenha sido percorrida, tampouco iremos recuperar as inúmeras exposições já feitas sobre o autor; ao contrário, ficaremos circunscritas a um texto do autor e uma exposição sobre ele.
Lucília Maria Abrahão e Sousa /
Língua em Pessoa
A gramática é mais perfeita que a vida.
A ortografia é mais importante que a política.
A pontuação dispensa a humanidade.
Fernando Pessoa
Fazer literatura é um gesto sobre a língua, na língua e com a língua. Esse gesto, da posição do literato, não vem sendo, no entanto, ao menos no século XX, considerado como objeto de reflexão sobre a língua pelos linguistas. Trata-se talvez de uma separação entre estudos literários e estudos linguísticos que se acirra com o impacto das dicotomias saussuranas? Uma hipótese que investigamos (Medeiros, 2013)[1]. E, contudo, o literato pensa a língua e produz também pensamentos sobre ela que afetam o dizer e o imaginário de língua: seja no seu fazer, criando novas palavras, como, por exemplo: “O pensamento tem um vício. Cria um neologismo para o descrever – coisar.” (Pessoa, 2006); seja naquilo que diz da língua ao fazer prosa ou poesia, como por exemplo,
Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade
(Não, Álvaro de Campos);
seja produzindo saberes sobre a linguagem ao escrever colunas, glossários ou ensaios, como é o caso do manuscrito de Pessoa sobre ortografia que tomamos como material para nossa reflexão. Três gestos sobre a língua que não a deixam sem movimento, que não deixam de afetá-la. Além disso, não se pode deixar de lembrar que o discurso literário, durante muitos séculos e ainda hoje, cauciona a língua em dicionários e gramáticas. Posto de outra maneira, a língua imaginária[2] que configura o discurso gramatical não se fez nem se faz sem a caução da literatura. Literatura e “bem dizer” – sintagma que funda a gramática e que lhe dá força de correção e de adequação – fazem parte da nossa memória sobre a língua, ou ainda, dão contornos ao nosso imaginário de língua. E, todavia, o linguista parece não se deter nesta captura da língua pelo literato ao ignorar o discurso literário, mesmo aquele que se apresenta em instrumentos linguísticos como gramáticas e dicionários (nos exemplos e contraexemplos, para citar um caso).
Do lugar em que teoricamente nos situamos, consideramos, saberes sobre a língua como nosso objeto, e acrescentamos, com Orlandi (1990), que tais saberes constituem sujeito e língua nacional, pensada como produção de sentidos sobre e para o brasileiro. No caso deste artigo não estamos tomando gramáticas e dicionários como instrumentos linguísticos para refletir sobre esta relação, e sim saberes do literato sobre a língua sob a forma de ensaio e dizeres do literato postos em circulação em uma exposição no Museu de Língua Portuguesa. Dobras outras sobre as quais queremos dirigir nossa atenção. Primeiramente, nos deteremos em dois ensaios manuscritos por Pessoa e publicados recentemente 1999[3]. Ambos tratam da questão da ortografia. O primeiro é extenso (62 páginas) e sem título pelo autor; o segundo, curto (5 páginas), composto por fragmentos em itens sobre ortografia da língua portuguesa, é encimado pela indicação do autor como “Teoria da Ortografia”. O primeiro, em função de referências no texto, situa-se após a assinatura do acordo ortográfico em abril de 1930:
Antonio José tinha, ao menos, a desculpa de que, embora a reforma fosse desnecessária, tinha todavia em seu favor uma certa corrente de opinião em Portugal. O presidente Getúlio Vargas, em cujo país as circunstâncias são opostas, não sei que desculpa tem. (Pessoa, 1999: 52).
O segundo funciona como um extrato do primeiro[4]. Ambos indicam que a ortografia toca a questão do sujeito, da classe social e do estado.
Pessoa promove uma reflexão sutil, engenhosa e, diríamos, em espiral para tratar da ortografia: traz várias noções que dizem respeito à questão da ortografia, define-as e a elas retorna mais de uma vez mostrando seus outros desdobramentos, o que vai dando ao leitor a dimensão da complexidade do que vem ser a ortografia e sua instituição. Do percurso de sua reflexão, retomamos algumas das dicotomias que ele tece a fim de iluminar o problema da ortografia, a saber, palavra falada versus palavra escrita; dever social versus dever cultural; homem de escol versus homem do povo. Isto nos permite mostrar algo que neste ensaio nos interessa, ou ainda, algo que Pessoa defende: a liberdade do povo, no que se refere à língua falada; e a do escritor, no que tange à ortografia (neste caso, se insurgindo contra uma memória que desautoriza o escritor no tocante à ortografia). Isto nos permite iluminar o jogo tenso, polêmico e contraditório na língua que também se faz ver na exposição. Pontos que fizeram e fazem encontrar ensaio e exposição e que nos permitem refletir sobre a relação língua e literatura aqui ampliada para exposição de um poeta em museu de língua. Outras dobras postas, comumente, em separado que aqui se encontram. Esta é a ousadia deste trabalho.
Os dois ensaios se abrem indicando diferenças entre fala e escrita. A palavra falada e palavra escrita são “mundos mentais essencialmente diferentes” (Pessoa, 1999: 19; sem título[5]) que “obedecem forçosamente a leis e regras essencialmente diferentes” (idem). Deve-se falar, conforme o autor, como a maioria fala: “A palavra falada é um caso, por assim dizer, democrático. Ao falar, temos que obedecer à lei do maior número, sob pena de ou não sermos compreendido ou sermos inutilmente ridículos.” (ib.: 19). E acrescenta:
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“Se a maioria pronuncia mal uma palavra, temos que a pronunciar mal, diremos anedota, embora saibamos que se deve dizer anécdota. Se a maioria usa uma construção gramatical errada, da mesma construção teremos que usar: diremos ‘hás-de tu compreender’, embora saibamos que ‘ hás tu de compreender’ é a fórmula verdadeira.” (ib.: 19)
Tais formulações nos levaram, num primeiro momento, a entrever uma posição conservadora sobre a língua, qual seja, aquela que coloca o erro na língua falada pelo povo em oposição a uma língua escrita, normatizada pelas consideradas boas maneiras de dizer (no caso, aqui, postas no escrever) e tida pelo poeta como correta. Indo adiante, uma posição que se inscreve numa formação discursiva dominante que faz significar a língua como bem dizer. Entretanto, nada é simples em Pessoa, nada, diríamos lendo e vendo-o em exposição, é em linha reta, nada sem outra posição[6], sem contradição... Se a linguagem falada é lugar do erro, este deve ser seguido, sob pena de tornar ridículo aquele que não a segue. O critério que rege a palavra falada é o da coletividade; aí reside a força que a sustenta, que a impõe e que a faz valer a despeito da diferença da escrita. Portanto, não segui-la é também um erro para aquele que fala.
A fala é, conforme Pessoa, “diametralmente oposta” à escrita:
A linguagem falada é natural, a escrita civilizacional.
A linguagem falada é momentânea, a escrita duradoura.
A linguagem falada é democrática (e constante), a escrita aristocrática (e episódica).
(Pessoa, 1999: 56; Teoria da Ortografia, grifos do autor)
Distinções que dizem da classe social (linguagem escrita é aristocrática), do tempo (momentânea/duradoura), da força da coletividade (nacional) e da força do um (civilizacional). Em sua reflexão sobre a língua escrita, vai explicar que a palavra escrita “é um produto da cultura” e, portanto, um trabalho daquele que escreve. Um trabalho do indivíduo (daí cultural ou civilizacional, termos que se alternam se equivalendo), ao passo que a palavra falada é trabalho da coletividade (daí natural entendido como “soma dos hábitos que ligam à terra”, Pessoa, 1999: 34). Se, no tocante à palavra escrita, o homem de escol é senhor; no que se refere à palavra falada, o homem do povo é soberano. E isto nos impede de inscrever o poeta em uma formação discursiva que desconsidera a fala do povo por considerá-la espaço do erro. Ao homem do povo a palavra falada, que deve ser seguida; àquele que escreve a palavra escrita sobre a qual quem escreve tem em liberdade. Não há como reduzir um ao outro; não há como apagar tal diferença na língua. Ou ainda, tal diferença faz parte da língua, indica o quão complexa, contraditória e tensa (na medida em que não se pode equivaler fala e escrita sob pena de reduzi-la em sua dimensão) ela é. Continuando, acentua Pessoa, a ortografia diz respeito à escrita: “o problema da ortografia é o da palavra escrita, nada tendo essencialmente que ver com a palavra falada, visto que esta nada tem com aquela (Pessoa, 1999: 29).
Como diz respeito à escrita, diz respeito ao escritor que, por sua vez, tem um dever cultural (de pensar por si) que é distinto do dever social:
Distingamos cuidadosamente entre o dever cultural e o dever social. O meu dever cultural é pensar por mim, sem obediência a outrem (...) o meu dever cultural é registrar a palavra escrita, grafando como entendo que devo, o que pensei. Assim se cria a cultura e portanto a civilização. Cessa aqui, porém, o que é puramente o meu dever cultural. Com a publicação do meu escrito estou já, em duas esferas – a cultural e a social: na cultural pelo conteúdo do meu escrito; na social pela acção, actual ou possível, sobre o ambiente. O meu escrito contém elementos prejudiciais à sociedade ou Nação? Se legitimamente e por mim o pensei, continuo cumprindo meu dever cultural; meu dever social é que, consciente ou inconscientemente, não cumpri. São fenómenos distintos, dependentes, um, da minha contingência; outro, da minha consciência moral.(...) (idem: 23)
A diferença entre dever social e dever cultural é importante para a questão da ortografia. Esta é da ordem escrita, como vimos, e da ordem do cultural, não tendo nenhuma relação com o dever social, onde se inscreve a moral: “a ortografia é um fenómeno puramente cultural: não tem aspecto social algum, porque não tem aspecto social o que não contém um elemento moral (ou imoral).” (ib.: 24). Sendo um dever cultural e sendo este o dever de pensar por si, a ortografia não pode ser imposta ao escritor. Trata-se de uma opção do escritor, de um trabalho na e sobre a língua. Aí reside uma oposição entre a posição do literato e a dos gramáticos (e filólogos):
Ora, sendo a palavra escrita um produto da cultura (...). Quer isto dizer que – ao contrário do que quer o Dr. Agostinho de Campos – cada um tem direito a escrever a ortografia que quiser; que, tecnicamente, pode haver tantas ortografias quantos há escritores” (ib.: 23)
Uma oposição que se inscreve na memória sobre ortografia e que traz a contradição como constitutiva. É preciso explicar: embora a questão da forma como se escreve, e, portanto, da ortografia, não esteja separada da escrita, Catach (1978) vai assinalar que a ortografia é uma noção relativamente recente, como algo a ser normativizado. Em Portugal, a preocupação com a ortografia se abre no século XVI com Duarte Nunes Leão (1576). Nesta obra, em que se silencia quanto ao trabalho do literato com a língua[7], inicia-se uma polêmica sobre ortografia que desemboca, embrionariamente, em dois grandes critérios: foneticista e etimologista[8]. Mas será em Feijó, no século 17, que ao literato será negada a decisão sobre a forma como se deverá escrever a palavra. Como se pode ler em Feijó: “Se na Orthografia devemos imitar os Auctores Portugueses: Por Autores Portugueses, ou havemos de entender os Historiadores, e Oradores, que compuserão nossa língua; ou os Orthografos, que nos deram regras para escrever.” (Feijó, 1806: 8; 7.ª edição)[9].
A decisão sobre a ortografia cabe aos historiadores e ortógrafos, mas não ao escritor. Tal posição que reverbera ao longo dos séculos seguintes e comparece em Agostinho de Campos, no século XX, quando este diz, em seu ensaio sobre língua e ortografia, que literatos não são donos da língua – “Literatos e estetas são muito inclinados que a língua é só deles, e só para eles.” (1924: 188) – e que, portanto, a ortografia não é um problema deles.
O ensaio de Pessoa diz respeito à ortografia portuguesa e nele o poeta defende que o escritor é livre em relação a ela, o que resulta, como já visto, que pode haver tantas ortografias quantos escritores. Com isto, ele se insurge contra uma memória que faz significar a liberdade do escritor como caos e que os desautoriza em relação à ortografia. Em Pessoa, o escritor é dono de sua escrita; afinal, como defende, escrever é pensar sobre a forma da palavra também. Tal posição não vai contra, entretanto, a necessidade de uma normativização da ortografia, uma vez que a flutuação pode ser prejudicial:
O único efeito presumidamente prejudicial que estas divergências ortográficas podem ter é o de estabelecer confusão no público. (...) Onde essas divergências ortográficas produziriam já um efeito prejudicial (...) é se o Estado admitisse essa divergência em seus documentos e publicações e, derivadamente, a consentisse nas escolas (a seu cargo). (Pessoa, 1999: 24)
Em outras palavras, o Estado pode impor uma ortografia que, para Pessoa, ficaria atida tão somente a documentos oficiais e à escola
Como o indivíduo, o Estado – que, em certo modo é também um indivíduo – adopta a – e uma só – ortografia, boa ou má, que entende, e impõe-a onde superintende- a não ser que à laia das ditaduras totalitárias quando superintende em tudo, o que não é mais governo, mas tirania. (idem: 25)
Contudo, isto não significa uma única ortografia. O Estado não pode interferir no trabalho do literato tampouco na escrita de qualquer um. Como diz Pessoa: “O que de fato defendo, e pelas razões que expus, é que cada qual pode escrever com a grafia que entende ou achar melhor, salvo, naturalmente, em circunstâncias em que se entre na esfera da ingerência legítima do Estado.” (ib.: 25).
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Aí reside a força do ensaio: na liberdade da escrita. Uma posição libertária em relação à língua, portanto; uma posição que vai de encontro a qualquer imposição sobre a língua. Indo adiante, uma posição que faz valer a diferença, que faz significar na língua o jogo heteronímico que engendra na literatura. Ou ainda, uma posição libertária que dá relevo à ironia, como forma de desconstrução de certezas, verdades e de autoritarismos. Figura que comparece em sua poesia, em suas correspondências, em seus ensaios, e que, neste texto sobre ortografia, depois de o escritor denunciar que o acordo ortográfico se fez “promulgado ditatorialmente” por duas nações, se apresenta no triunfante parágrafo final: “Entre os vários caprichos dos Deuses figura também o da ironia.” (Pessoa, 1999: 52).
Entremos na exposição[10].
No literário em/de Pessoa
“Multipliquei-me para me sentir” –
Fernando Pessoa
Até aqui recortes de Pessoa foram estudados pela relação que constroem nos modos de estabelecer a contradição entre norma da língua e ordem fala, entre liberdade em relação à língua e imposição e rupturas. O poeta assume mais de uma posição e abre, nos seus modos de dizer sobre língua, mais de uma rede de filiações dos sentidos, ora assumindo a ortografia como desdobrável na mão de cada escritor, ora desvinculando-a da fala, ora tomando-a como questão apenas no escrito. Consideramos que aqui está posto um dos pontos da riqueza do poeta, qual seja, ocupar mais de uma posição em relação a objetos vários, assim também ocorre com tensão permanente entre os vários heterônimos que o constituem.
Para marcar tal efeito de contradição permanente, tomamos inicialmente o título da exposição “Fernando Pessoa – Plural como o universo”; a marca “plural” aponta para um funcionamento que implica tensão de multiplicidade e expansão tal como o universo todo. Podemos brincar com a língua aqui, uni-verso, todo o universo em Pessoa, um único poeta a desfiar tantos versos; e, ao mesmo tempo, um poeta universal no sentido de ter trabalhado tantos temas e tantos efeitos de sentido em seus muitos heterônimos.
Imagem 2: Capa do catálogo da exposição “Fernando Pessoa – plural como o universo”,
material de divulgação do Museu da Língua Portuguesa
Uni-verso e universal, Pessoa é uma rede de posições que se estabelece aos poucos na pluralidade e na dobradura de versos que se emendam nem sempre dizendo o mesmo ou do mesmo lugar. As várias assinaturas dos heterônimos entrecruzadas no nome Fernando Pessoa funcionam discursivamente de modo a criar o emaranhado de entremeios do dizer de um em outro, de várias pessoas inventadas poeticamente por Pessoa, o nome de um Pessoa uni-verso cheio de outras identidades poéticas, compondo um formato de estrela ou catavento. Vimos isso em relação ao modo de dizer sobre a língua e agora analisamos como o MLP[11] representa tal pluralidade do uni-verso pessoano, como apresenta o poeta desfiando seus vários heterônimos.
Imagem 3: Fotografia da exposição “Fernando Pessoa – plural como o universo”
Imagem 4: Fotografia da exposição “Fernando Pessoa – plural como o universo”
A fotografia do poeta aparece partida ao meio e os visitantes/leitores da exposição passam justamente nesse lugar em que a imagem comparece rasgada, abertura bastante condizente com o que apresentamos aqui. É ele o poeta que se desdobra, que permite recortes e que experimenta em si mesmo o múltiplo e o singular: ao fundo diversas imagens foram posicionadas na fresta do rosto com fenda. Tal iconografia de tensão implica tomar pessoa como o mosaico de si mesmo, ou seja, como poeta que se posiciona no campo tenso de vários heterônimos e de várias tessituras de escritores, todos em um. Ele mesmo.
Imagem 5- Fotografia da exposição “Fernando Pessoa – plural como o universo”
Lucília Maria Abrahão e Sousa /
Imagem 6- Fotografia da exposição “Fernando Pessoa – plural como o universo”
A exposição sinalizou um jogo cromático que enlaçava o preto e branco das fotografias, com projeções das imagens dos heterônimos em azul violeta e com os versos impressos em letras amareladas. O jogo de luz do espaço físico foi disposto nos textos e nas imagens de tal modo que o visitante/o leitor passeava em meio a um certo labirinto escuro onde só encontrava pegadas de imagens e de poemas, iluminados em si mesmos. A luz estava na imagem e na palavra de Pessoa, marcando uma iconografia da contradição também nesse caminho tortuoso em que era preciso (e é preciso a cada verso pessoano) o leitor andar: dos heterônimos, dos modos de dizer sobre a vida, o amor, a pátria e também língua.
Nas trilhas do MLP, Pessoa em imagem de tamanho natural (e maior do que muitos dos visitantes) é posto em movimento, em pé como a estar andando e se deslocando pelo mesmo espaço dos visitantes/leitores, criando um modo de dizer do estar entre pessoas, Pessoa com seu uni-verso. O efeito de contradição está posto nos sobressaltos que visitante/leitor pode levar ao olhar para trás e se deparar com um outro que não o poeta que está em sua frente, ou mesmo do lado de onde emerge uma imagem ainda mais outra, de heterônimo não conhecido. O fluxo de passagem é construído assim: no confronto de vários, na surpresa de mais um outro diferente, na trama de movimentos que se compõem na voz do escritor.
E aqui chamamos atenção para a condição que o próprio poeta estabeleceu ao dizer o que já trabalhamos anteriormente “pode haver tantas ortografias quantos há escritores”, e acrescentaríamos que, no contato com a exposição de Pessoa, pode haver também tantas sintaxes, semânticas quantos há escritores. Por isso, há tanto na exposição do MLP, porque o poeta é em palavra o impossível aprisionar em apenas um com todo o descontrole de sentidos que isso inscreve.
Outra cena que gostaríamos de analisar está posta pela imagem do poeta sentado à mesa com cadeira, xícara de café e revista sobre a mesa, presos no teto do museu.
Imagem 7: Fotografia da exposição “Fernando Pessoa – plural como o universo”
Imagem 8: Fotografia da exposição “Fernando Pessoa – plural como o universo”
A mesa de escrita conserva-se tombada, cadeira do avesso e posição pouco provável para escrever. Tal reviramento rompe com a ordem estabelecida usualmente para cadeira, mesa e adereços, apenas o poeta continua na posição de escritor, sentado como em uma imagem tradicionalmente conhecida. Ele apenas, porque suas palavras não sustentam esse lugar convencional. Onde ele esteve fez-se a desarrumação do que seria tradicionalmente um escritor, postas as várias heterogeneidades que construiu e os sentidos em fuga, em trânsito e em contradição que ele inventou.
Vale aqui registrar, apenas a título de passagem, que Caeiro está em oposição a Álvaro de Campos no modo de dizer e de inscrever sentidos sobre o mundo, ambos criados por Pessoa, ele mesmo que já é outro; e Álvaro de Campos se opõe a Fernando Pessoa em várias correspondências. Todos engendrados pela mão de um só escritor, múltiplo e singular, efeito da pluralidade e da contradição. Todos eles amarrados pela língua que também não é a mesma, mas se inscreve de um modo próprio em cada heterônimo, e esse não é o nosso objetivo de estudo aqui, mas vale registrar que a gramática de cada uma das pessoas de Pessoa faz versos com sua língua ritmada a seu modo. E todos inscrevem a língua do mar portuguez.
Imagem 9- Fotografia da exposição “Fernando Pessoa – plural como o universo”
Língua pátria, língua do mar português, língua do português de que somos efeito na América e na África, língua de Pessoa que dá ao escritor a liberdade de dizer a sua modo vário e desdobrado, língua de um autor cujo nome marca a contradição justamente porque tem também vários nomes. Vários nomes e sobrenomes inventados ao longo de uma obra na qual o poeta inscreveu sentidos de mar, de navegação, de vida e de morte, de fala e de língua. A dele, e também a nossa.
Bibliografia
Auroux, Sylvain. La question de l´origine des langues suivi de L´historicité des sciences. 1.ª ed. Paris: Quadrige ; PUF, 2007.
Campos, Agostinho de. “Língua e ortografia”. Revista de Filologia Portuguesa, nº. 6, 1924.
Catach, Nina. L´Ortografe. 9.ª ed. Paris: PUF, 1978.
Medeiros, Vanise. “Discurso literário: tensões na língua”. In X Congreso Internacional de la Asociación latino-americana de Estudios del Discurso, 2013.
Lucília Maria Abrahão e Sousa /
Orlandi, Eni. Terra à vista!: discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez ; Campinas, São Paulo: Unicamp, 1990.
Pessoa, Fernando. Páginas de doutrina estética. Seleção, prefácio e notas de Jorge de Sena. 2.ª ed. Lisboa: Editorial Inquérito Limitada, [1946].
Pessoa, Fernando. Língua portuguesa: organização de Luísa Medeiros, SP: Companhia das Letras, 1999.
Pessoa, Fernando. Aforismos e afins, Fernando Pessoa. Edição e prefácio de Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Pêcheux, M. Ler o arquivo hoje. In Orlandi, E. P. (org.). Gestos de leitura. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
Romão, L. M. S. Exposições literárias do Museu da Língua Portuguesa: acontecimento e arquivo em discurso. São Carlos: Pedro e João Editores, 2011.
[1] Na introdução do Curso de Linguística Geral, Saussure nos diz que a ciência que se constituiu em torno dos fatos da linguagem passou por três fases sucessivas que: a gramática, a filologia e a filologia comparada ou gramática comparada (estudos que começaram a comparar línguas). Ora, os dois primeiros, gramática e filologia, ancoram-se fortemente em textos escritos e consideram a literatura. Auroux (2007) afirma que o comparativismo não nasce de uma descoberta do sânscrito por W. Jones (2007: 39-40). De acordo com Auroux, “A prática da comparação das línguas e a pesquisa de suas aproximações faz parte da ‘ciência normal’ desde o Renascimento” (idem: 40) e, ele segue dizendo: “O comparativismo moderno é efeito não de uma pseudo-descoberta empírica e pontual do sânscrito, mas de uma revolução epistemológica devido a Rask, Grimm e Bopp. Trata-se de uma mudança de programa científico que dá lugar neste contexto a um ‘ciência normal’ já fortemente adensada. Quando esta revolução se estabilizar em meados do século XIX, a unidade de referência não será mais a palavra, mas o som, que muda em suas ocorrências em função de leis fonéticas específicas a uma época e para línguas dadas.” (ib.: 40). Portanto, uma mudança já estava em curso – da palavra ao som. A hipótese que se levanta aqui é a de que com esta passagem outra cisão vai desenhando: a que diz respeito à separação/dissociação dos estudos sobre a linguagem – ainda que aí esteja contraditoriamente inscrita a língua escrita – dos estudos literários. Tal percurso, no século XIX, tem o GCL, no início do século XX, como corte: a instituição da langue como objeto agora científico tem como efeito a cisão entre a língua a ser operada pelo linguista – a língua imaginária de que trata Orlandi – e a língua do literato em diferentes dimensões: deixa de ser sobre a língua literária o pensar científico sobre a língua, deixa de ter a caução do literato a língua que o linguista constrói – muitas vezes em laboratórios. Outra consequência é a de que passa a deixar de ser objeto de análise pelo linguista aquilo que o literato produz bem como seu discurso sobre a língua. (Medeiros, 2013).
[2] Estamos entendendo por língua imaginária, com Orlandi (1990), “aquela que os analistas [e aqui entram gramáticos, linguistas e filólogos] fixam com suas sistematizações” e que vai compondo um imaginário do bem dizer e, por exclusão, do mal dizer em oposição à língua fluida: “aquela que não se deixa imobilizar nas redes dos sistemas e das fórmulas” (idem).
[3] Em livro organizado por Luisa Medeiros (1999).
[4] Não há indicações se posterior ou anterior ao outro ensaio.
[5] Como são dois artigos, estamos fazendo referência a eles como “sem título” (já o autor não lhe pôs título) e como “Teoria da ortografia”, como o intitulou.
[6] Como, entre outros exemplos, nas famosas polêmicas entre Fernando Pessoa e seu heterônimo, Álvaro de Campos (cf. Pessoa: 1946).
[7] Esquece-se, por exemplo, de Camões...
[8] Não iremos tratar disto aqui. Mas não podemos deixar de observar que o critério foneticista toca a língua falada e o etimológico a língua escrita, enlaçando-as, mantendo uma tensão entre elas e a polêmica sobre a língua...
[9] 7ª. edição. A primeira edição é do século 17.
[10] Disponível no endereço http://www.visitefernandopessoa.org.br/index2.html Acesso em 03 de março de 2014.
[11] O Museu da Língua Portuguesa foi inaugurado, em São Paulo capital, no centro histórico onde existe a maior malha ferroviária em torno do qual a cidade tem um fluxo comercial muito intenso. Também nessa região, muitos (i)migrantes e andarilhos se reúnem na rua, fazendo valer uma rede de ilegalidades que passa pelo tráfico de drogas, prostituição e trabalho informal.
Perceção de variantes dialetais do Português europeu continental: um estudo exploratório
Luís Fernando Pinto Salema
Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes
(Portugal)
1. Introdução
A categorização percetual dos dialetos não tem originado muitos estudos aprofundados. No entanto, recentemente, o interesse sobre esta questão tem aumentado e alguns investigadores têm recorrido a várias metodologias para avaliar a forma como os indivíduos percecionam os dialetos da sua língua materna (Atkinson, 2011; Burbano-Elizondo, 2008; Clopper, 2004; Clopper e Pisoni, 2004, 2005; Kerswill e Williams, 2002; Nielsen e Hay, 2006). A multiplicidade de procedimentos conduziu a resultados díspares, mas os trabalhos realizados permitiram concluir que a variação linguística resultante das diferenças regionais é algo de que a generalidade dos utilizadores de uma língua se apercebe.
Apesar da homogeneidade das variantes dialetais do Português Europeu (PE) continental, ao nível fonético, existem características sentidas pelos falantes de uma dada proveniência como sendo típicas de outra. As perguntas que se colocam são as seguintes: que fatores contribuem para esse reconhecimento? O que permite a um falante do Sul distinguir um do Norte e vice-versa? Num momento em que múltiplos fatores contribuem para a crescente uniformização linguística interna, importa avaliar a consciência que os falantes têm da diversidade ainda existente, no PE, em termos de realização fonética.
Para se obterem dados mais precisos acerca dessa consciência dialetal (Mase, 1999, cit. por Clopper, 2004), este estudo exploratório descreve o processo de construção e de aplicação de dois testes percetuais, apresentando, também, uma discussão dos resultados obtidos e as principais conclusões decorrentes da implementação desses procedimentos.
2. Objetivos e hipóteses de investigação
O propósito fundamental deste estudo é avaliar a consciência dialetal, em falantes de PE, através da aplicação de testes percetuais. A partir deste objetivo geral, definiram-se dois objetivos mais específicos: i) verificar de que forma é possível distinguir diferentes variantes dialetais do PE continental; ii) determinar quais os fenómenos fonéticos que mais contribuem para a identificação dessas variantes. Partindo destes objetivos, formularam-se as seguintes hipóteses de investigação:
Hipótese 1: «Os ouvintes conseguem identificar e distinguir variantes do PE, através da perceção de estímulos verbais» ou Hipótese 1a: «Os ouvintes não conseguem identificar nem distinguir variantes do PE, através da perceção de estímulos verbais»;
Hipótese 2: «Os fenómenos fonéticos considerados revelam-se funcionais para a perceção/categorização dos dialetos, sendo possível identificar fenómenos mais importantes para cada uma das regiões» ou Hipótese 2a: «Não é possível identificar fenómenos fonéticos determinantes na avaliação percetual, apresentando-se, alguns, como pouco pertinentes para a perceção/categorização dos dialetos».
3. Desenvolvimento do estudo
Tendo em conta a generalidade dos estudos dialetológicos, é possível identificar seis fenómenos caracterizadores das três grandes áreas dialetais do continente português - Norte, Centro e Sul: i) ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Segura da Cruz, 1991; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971); ii) monotongação do ditongo [6j] (grafado <ei>) (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Segura da Cruz, 1991; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971); iii) existência de um sistema de quatro sibilantes [S], [Z]; [s] e [z] (Cintra, 1983; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971); iv) existência de um [i] paragógico (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Segura da Cruz, 1991; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971); v) abertura das vogais tónicas nasais ou das vogais tónicas seguidas de consoante nasal (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971); vi) abertura da vogal [e]/[o] (Boléo e Silva, 1961).
Partindo deste conjunto de características, conceberam-se dois testes percetuais, recorrendo ao corpus gravado no âmbito do projeto Fonética Aplicada ao Processamento de Fala: as Nasais do Português, desenvolvido na Universidade de Aveiro. A recolha desse corpus decorreu nas regiões do Minho, de Trás-os-Montes, da Beira Litoral, da Beira Interior, do Alentejo e do Algarve. Em cada região, foram gravadas produções de quatro informantes (dois de cada género), naturais e residentes da localidade escolhida, com habilitações literárias nunca superiores ao nono ano de escolaridade. Aos informantes foram solicitadas duas repetições do corpus. A gravação e a segmentação foram feitas com o programa SFSWin (Teixeira et al., 2003). As tarefas atrás descritas foram realizadas durante o desenvolvimento do projeto a que se aludiu. Embora o autor do estudo aqui apresentado tenha colaborado na recolha do corpus, este chegou às nossas mãos já segmentado e anotado.
3.1. Teste de identificação
Na escolha das palavras, consideraram-se itens passíveis de incluir realizações fonéticas que ilustrassem os fenómenos atrás inventariados. O corpus encontra-se especificado na Tabela 1, que dá conta, simultaneamente, dos fenómenos fonéticos em estudo:
Fenómenos |
Palavras |
Ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ |
tambor banco |
Monotongação do ditongo [6j] |
candeeiro candongueiro |
Existência de um sistema de quatro sibilantes [S], [Z]; [s] e [z] |
segunda província |
Existência de um [i] paragógico |
estendal limpar |
Abertura das vogais tónicas nasais ou das vogais tónicas seguidas de consoante nasal |
conta dente |
Abertura da vogal [e] / [o] |
pandeireta tambor |
Tabela 1: Corpus utilizado no teste de identificação.
Escolhidas as palavras e definido o leque de informantes, selecionaram-se os ficheiros, gravados em formato SFS, procedeu-se à sua conversão em formato wav e recorreu-se ao programa Tcl/Tk, para a construção do teste. Para a pergunta formulada (De que região é o falante?), disponibilizavam-se seis hipóteses de resposta, que correspondiam às regiões de recolha do corpus: Minho, Trás-os-Montes, Beira Litoral, Beira Interior, Alentejo e Algarve. Considerou-se uma sétima opção (Outra), para o caso de os ouvintes entenderem que as realizações não pertenciam a informantes das regiões propostas. A repetição dos estímulos obedeceu a uma ordem aleatória, ditada pelo programa informático que sustentou o teste. Cada fenómeno fonético selecionado foi testado 240 vezes, perfazendo um total de 1440 estímulos.
3.2. Teste de discriminação
Com o teste de discriminação, pretendeu-se que o ouvinte indicasse se os dois estímulos que constituíam cada par correspondiam, ou não, a realizações de informantes da mesma região. A Tabela 2 inclui a lista de palavras escolhidas, de acordo com os fenómenos fonéticos que emolduram este estudo exploratório:
Fenómenos |
Palavras |
Ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ |
vinte vindima banco |
Monotongação do ditongo [6j] |
pandeireta bandeira bombeiro |
Existência de um sistema de quatro sibilantes [S], [Z]; [s] e [z] |
segunda província cinzento |
Existência de um [i] paragógico |
pintor limpar pincel |
Abertura das vogais tónicas nasais ou das vogais tónicas seguidas de consoante nasal |
pente ponte campo |
Abertura da vogal [e] / [o] |
capacete mentiroso tambor |
Tabela 2: Corpus utilizado no teste de discriminação.
Os procedimentos adotados na construção do teste de discriminação foram idênticos aos já explicitados para o teste de identificação. Configurou-se uma interface, onde eram apresentadas duas hipóteses de resposta (sim/não) para a pergunta «São da mesma região?».
O ouvinte tinha a possibilidade de ouvir o estímulo as vezes que entendesse e só depois de responder à questão formulada é que o computador reproduzia o par de estímulos seguinte. Não se impôs qualquer limite de tempo para o cumprimento da tarefa. Obtiveram-se 1080 respostas (108 pares de estímulos X 2 repetições X 5 ouvintes).
3.3 Aplicação dos testes
Relativamente ao teste de identificação, e após uma aplicação experimental, em dois ouvintes com perfis diferentes, um deles com formação na área da Linguística, considerou-se pertinente a constituição de dois grupos, em que o elemento diferenciador fosse a formação académica nessa área. Dos cinco ouvintes recrutados para a realização do teste, todos com formação universitária, dois eram detentores de graus académicos, na área de Línguas, e os restantes nas áreas de Geografia, de Biologia ou de Física e Química. Os indivíduos tinham idades compreendidas entre os 29 e os 45 anos, sendo naturais da região Centro-litoral do país e residentes em Aveiro.
Para o teste de discriminação, recrutaram-se cinco alunos do curso de licenciatura em Terapia da Fala, da Escola Superior de Saúde da Universidade de Aveiro, com idades entre os 20 e os 22 anos, provenientes das regiões do Minho, de Trás-os-Montes, da Beira Litoral, dos Açores e da Madeira. A aplicação dos testes foi feita individualmente, com a utilização de auscultadores, no Laboratório de Fonética do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, contando com a supervisão de um linguista. As condições ambientais que envolveram a realização do teste caracterizavam-se por um nível de ruído baixo.
4. Resultados
No teste de identificação, os ouvintes evidenciaram muita dificuldade na categorização dos estímulos apresentados, registando-se 22,8% de respostas corretas e 77,2% de respostas erradas. A Tabela 3 inclui um sumário das respostas dadas pelos ouvintes, relacionando-se a região dialetal do falante com a resposta dada pelo ouvinte.
Resposta do ouvinte |
|||||||||
Outra |
Minho |
Trás-os-Montes |
Beira Litoral |
Beira Interior |
Alentejo |
Algarve |
|||
Região do falante |
MINHO |
N.º de respostas % de respostas |
3 1,3% |
37 15,4% |
19 7,9% |
45 18,8% |
33 13,8% |
57 23,8% |
46 19,2% |
TRÁS-OS-MONTES |
N.º de respostas % de respostas |
3 1,3% |
34 14,2% |
44 18,3% |
45 18,8% |
44 18,3% |
48 20,0% |
22 9,2% |
|
ALGARVE |
N.º de respostas % de respostas |
13 5,4% |
17 7,1% |
5 20,8% |
59 24,6% |
34 14,2% |
45 18,8% |
22 9,2% |
|
ALENTEJO |
N.º de respostas % de respostas |
10 4,2% |
31 12,9% |
22 9,2% |
47 19,6% |
39 16,3% |
42 17,5% |
49 20,4% |
|
BEIRA INTERIOR |
N.º de respostas % de respostas |
6 2,5% |
21 8,8% |
57 23,8% |
51 21,3% |
54 22,5% |
27 11,3% |
24 10,0% |
|
BEIRA LITORAL |
N.º de respostas % de respostas |
12 5,0% |
20 8,3% |
18 7,5% |
130 54,2% |
34 14,2% |
13 5,4% |
13 5,4% |
Tabela 3: Número e percentagem de respostas (região do falante vs. resposta do ouvinte)
O número de respostas corretas foi maior sempre que os intervenientes no teste ouviram o informante da Beira Litoral (54,2%). As restantes regiões apresentaram um número bastante inferior de acertos, destacando-se o Algarve, que os ouvintes percecionaram como a mais difícil de identificar (9,2% de identificações corretas). As regiões da Beira Interior (22,5%) e de Trás-os-Montes (18,3%) surgiram em segundo e terceiro lugares. O Alentejo, com 17,5% de respostas certas, e o Minho, com 15,4%, integram-se no grupo de dialetos mais difíceis de identificar pelos ouvintes que realizaram o teste. É de salientar que os ouvintes consideraram que a maior parte dos estímulos apresentados pertencia ao informante da Beira Litoral.
Apurou-se a percentagem total de respostas certas, tendo em conta os diferentes fenómenos selecionados. Apesar de as diferenças serem pouco significativas, a monotongação do ditongo [6j] foi o fenómeno que mais contribuiu para a identificação correta das seis regiões dialetais, como ilustra o Gráfico 1[1]:
Gráfico 1: Percentagem de respostas certas para cada um dos fenómenos fonéticos.
Realizaram-se, igualmente, análises estatísticas para apurar quais os fenómenos fonéticos, convocados pelo ouvinte, para cada uma das regiões, no momento da sua identificação. Nas regiões do Minho e do Algarve, a ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ foi o item que alcançou um maior número de respostas corretas (28% e 18%, respetivamente). Em relação ao dialeto de Trás-os-Montes, o fenómeno fonético que obteve mais respostas certas foi a abertura da vogal [e]/[o] (25%). A monotongação do ditongo [6j] e a existência de um [i] paragógico foram os fenómenos fonéticos que obtiveram uma maior percentagem de respostas corretas, na região do Alentejo (28%). A existência de um sistema de quatro sibilantes surge como o fenómeno fonético determinante para a identificação do dialeto da Beira Interior (50% das palavras foram identificadas corretamente). O dialeto da Beira Litoral é o que apresenta a maior percentagem de respostas certas, em cada um dos fenómenos, sendo a monotongação de [6j] (70%) e a existência de um [i] paragógico (65%), realizações atípicas deste dialeto, as que reuniram um maior número de identificações corretas.
Relativamente ao teste de discriminação, o processamento dos resultados iniciou-se com o apuramento da consistência das respostas, utilizando o programa Matlab. O ouvinte da Madeira foi o mais consistente (78,7%), sendo o de Trás-os-Montes aquele que apresentou valores mais baixos na consistência das suas respostas (66,67%). A Tabela 4 sintetiza os resultados dessa análise preliminar dos dados:
Região do ouvinte |
Valor obtido (%) |
Minho |
75,00 |
Beira Litoral |
74,07 |
Madeira |
78,70 |
Trás-os-Montes |
66,67 |
Açores |
70.37 |
Média |
72,96 (desvio padrão: 4,60) |
Tabela 4: Consistência das respostas dos participantes no teste de discriminação.
Das 1080 respostas, 644 (62,6%) foram corretas e 436 (37,4%) incorretas. O Gráfico 2 ilustra a distribuição das respostas certas e erradas, tendo em conta a natureza dos estímulos apresentados. A percentagem de respostas certas foi maior do que a de respostas erradas, quer quando os estímulos apresentados pertenciam a regiões diferentes, quer quando pertenciam a informantes do mesmo dialeto. Os ouvintes consideraram mais fácil a discriminação dos pares de estímulos que incluíam realizações fonéticas de informantes pertencentes a regiões diferentes (63,3% de respostas corretas).
Gráfico 2: Percentagens de respostas certas e erradas do teste de discriminação.
Apuraram-se, igualmente, as percentagens de respostas corretas, para cada um dos fenómenos fonéticos. As palavras em que pode acorrer a ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ foram as que registaram um maior número de respostas corretas (80,6%). Os vocábulos em que pode ocorrer a monotongação do ditongo [6j] obtiveram uma percentagem de respostas corretas de 68,3%. A maior abertura das vogais [e]/[o] foi o fenómeno fonético que obteve mais respostas erradas, apresentando, assim, um menor valor distintivo, para os ouvintes.
De seguida, determinou-se qual o fenómeno fonético que mais contribuiu para a distinção das diferentes regiões dialetais. O Gráfico 3 ilustra os resultados obtidos para os pares de estímulos que incluíam itens realizados por informantes do mesmo dialeto:
Gráfico 3: Percentagem de respostas corretas, tendo em conta cada um dos fenómenos fonéticos
selecionados, quando os dois estímulos do par pertenciam à mesma região.
Sempre que ambos os estímulos foram de informantes da mesma região, o fenómeno que mais contribuiu para a sua discriminação correta foi a maior abertura da vogal [e]/[o] (23%). A presença ou a ausência do ditongo [6j] assumiram, igualmente, um papel importante na perceção das produções realizadas por informantes da mesma região (20,3%). Os fenómenos relacionados com a produção dos sons vocálicos e dos ditongos foram, na globalidade, aqueles que mais contribuíram para a discriminação das palavras produzidas por informantes do mesmo dialeto. A ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ foi o fenómeno menos relevante para a correta distinção das regiões dialetais, quando os dois estímulos pertenciam a informantes da mesma região.
Quando a sequência de estímulos incluía realizações fonéticas de informantes de dialetos diferentes, os ouvintes consideraram que a ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ apresentou um maior valor distintivo (20,7% de discriminações corretas). As palavras que incluem o ditongo [6j], graficamente representado por <ei>, obtiveram 18,9% de respostas corretas, sendo a presença ou ausência deste ditongo importante para a distinção dos dialetos, quer quando os estímulos pertencem à mesma região, quer quando são produto de regiões diferentes. No Gráfico 4, surge a percentagem de respostas certas, para cada um dos fenómenos fonéticos, sempre que o par de estímulos era de regiões diferentes:
Gráfico 4: Percentagem de respostas corretas, para cada um dos fenómenos fonéticos,
sempre que o par de estímulos apresentado era de regiões diferentes.
Determinou-se, também, a percentagem de respostas corretas, tendo em conta as regiões dialetais que constituíam os pares de estímulos apresentados. No Gráfico 5, apresentam-se os valores percentuais de respostas corretas, para cada par de estímulos percecionado. Os pares de estímulos com realizações de informantes de Trás-os-Montes e do Algarve foram os que obtiveram um maior número de respostas corretas (7,5%). Seguiram-se-lhe os pares constituídos por estímulos das regiões do Minho-Algarve (7,3%), do Minho-Alentejo (7,1%) e do Minho-Beira Interior (7,1%). Quando os dois elementos constitutivos do par de estímulos eram da mesma região dialetal, os ouvintes discriminaram com maior correção as produções dos informantes da Beira Litoral (3,3%) e sentiram maior dificuldade na correta perceção do par Trás-os-Montes-Trás-os-Montes (1,1%):
Gráfico 5: Percentagem de respostas corretas, para cada um dos pares de estímulos apresentados,
tendo em conta as regiões que o constituíam.
Para que o estudo do valor distintivo dos fenómenos fonéticos ficasse mais completo, considerou-se a relevância de cada um deles para a discriminação correta de cada par de estímulos ouvido. A ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ revelou-se pertinente para a discriminação dos estímulos que constituíam os pares Minho-Algarve (16,5%) e Trás-os-Montes-Algarve (14,9%).
No que diz respeito ao ditongo [6j], a percentagem de respostas corretas dos ouvintes foi maior sempre que os estímulos surgiam incluídos nos pares Alentejo-Algarve (13,8%) e Minho-Algarve (13%). A manutenção do sistema de quatro sibilantes foi um fenómeno fonético importante para a discriminação correta das combinações Beira Interior-Algarve (12,6%) e Beira Interior-Alentejo (9,7%).
Foi possível verificar também que a existência de um [i] paragógico permitiu aos ouvintes discriminar com maior correção as produções dos informantes da Beira Litoral e do Alentejo (14,7%) e da Beira Interior e do Alentejo (10,5%). Sempre que as palavras ouvidas incluíam vogais nasais ou seguidas de consoante nasal, os intervenientes no teste discriminaram, com maior correção, as sequências de estímulos com realizações de Trás-os-Montes, associadas às da Beira Litoral (14,5%), e o par de estímulos das regiões Minho-Beira Litoral (10%). A abertura das vogais [e]/[o] obteve uma percentagem de respostas corretas mais elevada sempre que surgiram as combinações Beira Litoral-Beira Interior (17,4%) e Trás-os-Montes-Beira Litoral (16,3%).
5. Discussão
À semelhança do que aconteceu em estudos realizados com outros idiomas, os ouvintes conseguem distinguir um dialeto diferente do seu. Contudo, essa performance não apresenta percentagens de acerto significativas e varia consoante a língua, o perfil dos ouvintes e o tipo de teste utilizado na categorização percetual dos diferentes dialetos (Atkinson, 2011; Burbano-Elizondo, 2008; Clopper, 2004; Clopper e Pisoni, 2004, 2005; Kerswill e Williams, 2002).
Neste estudo, a percentagem de respostas certas no teste de identificação foi 22,8%, valor que não se afasta grandemente do obtido por Clopper e Pisoni (2004), para o Inglês Americano (31%) ou por Clopper (2004), que não foi além dos 26%. Apesar de ser um valor pobre, situa-se acima dos 16,7%, resultado crítico para um teste em que eram propostas seis regiões dialetais. Contudo, se olharmos para cada uma delas, as percentagens obtidas para o Algarve (9,2%) e para o Minho (15,4%) encontram-se abaixo desse valor. Os resultados apurados para as regiões do Alentejo e de Trás-os-Montes encontram-se no limiar desse valor (17,5% e 18,3%, respetivamente) e somente as Beiras Interior (22,5%) e Litoral (54,2%) obtiveram um número de respostas corretas claramente acima desse valor de referência.
Os resultados permitem concluir que o dialeto do Algarve apareceu como o mais difícil de identificar, sendo confundido, essencialmente, com as variantes dialetais de Trás-os-Montes (20,8%) e da Beira Litoral (24,6%). A oposição fonológica entre /b/e /v/ surge como um fenómeno fonético importante para a identificação do dialeto algarvio (32% de respostas), por nele se verificar a existência dessa oposição. A monotongação do ditongo [6j] e a existência de um [i] paragógico revelaram-se traços distintivos importantes para a identificação correta das realizações fonéticas desta região dialetal do Sul do país. A importância assumida por estes dois últimos traços confirma o facto de serem características próprias dos falantes meridionais (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Segura da Cruz, 1991; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971).
As realizações fonéticas relativas ao Minho obtiveram 15,4% de respostas certas. Os resultados realçam a importância assumida pela ausência da oposição fonológica entre /b/ e /v/, própria desta região, sistematicamente referida nos estudos dialetológicos (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Vasconcellos, 1987; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971). Para além desta característica, os ouvintes consideraram a realização do ditongo [6j] (que, no Minho, geralmente, não sofre redução) e a manutenção de um sistema complexo de quatro sibilantes, existente em algumas regiões minhotas (Cintra, 1983; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971), como traços relevantes para a identificação deste dialeto.
O dialeto do Alentejo obteve 17,5% de identificações corretas. A monotongação do ditongo [6j] e a existência de um [i] paragógico foram os fenómenos fonéticos que mais contribuíram para a identificação das produções do informante alentejano. A existência destas realizações, em toda a região meridional (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Segura da Cruz, 1991; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971) pode explicar a confusão existente, por vezes, entre o dialeto do Alentejo e o do Algarve.
Em relação ao dialeto de Trás-os-Montes, registaram-se 18,3% de respostas certas. Na identificação deste dialeto, o fenómeno fonético mais importante foi a abertura da vogal [e]/[o], cuja relevância já fora apontada por Boléo e Silva (1961). A ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/, característica do Norte, e a monotongação do ditongo [6j], que, geralmente, não se verifica nesta região, foram, também, fenómenos fonéticos considerados pelos ouvintes.
O dialeto da Beira Interior enquadra-se já no grupo dos mais facilmente identificados, com 22,5% de respostas certas. Ainda assim, surge confundido com o dialeto de Trás-os-Montes (com 23,8% de respostas certas), região geograficamente contígua, com algumas características fonéticas comuns, como a pronúncia das consoantes fricativas e a vulgarmente designada «troca do v pelo b» (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Segura da Cruz, 1991; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971).
A Beira Litoral obteve 54% de respostas certas, sendo a região que melhor se distinguiu das outras. De acordo com a sua história residencial, como apontam Clopper (2004), Kerswill e Williams (2002) e Nielsen e Hay (2006), os ouvintes identificam, com maior facilidade, os falantes da sua região dialetal. Explica-se, assim, a hegemonia da Beira Litoral, no que diz respeito ao número de identificações: todos os ouvintes recrutados para o teste nasceram e residiram, sempre, nessa região, e terão optado pela Beira Litoral sempre que se identificavam com a produção fonética do informante.
Alguns estudos de dialetologia aludem ao facto de a variante dialetal da Beira Litoral ser a que apresenta o menor leque de traços distintivos, face ao dialeto padrão (Cintra, 1983; Vázquez Cuesta, 1971). Ao referir-se ao «falar do Baixo Vouga e Mondego», Boléo e Silva (1961) salientam o carácter pouco marcado do mesmo, quando confrontado com o dialeto padrão do PE. Os resultados deste teste de perceção parecem evidenciar o facto de a região da Beira Litoral ser identificada «pela negativa», ou seja, pela ausência de traços fonéticos específicos, de elevado valor distintivo, aproximando-se, assim, do dialeto padrão ou tendendo já a integrá-lo.
Assim, os resultados obtidos parecem reforçar a pertinência da designação «variante central do PE», proposta por Peres e Móia (1995): «central» porque é o Português falado no litoral centro do país; «central», também, porque goza de um estatuto privilegiado relativamente às outras, que em torno de si gravitam, apresentando, em relação a ela, um maior ou menor grau de afastamento.
O fenómeno designado como monotongação do ditongo [6j] foi o que mais contribuiu para a identificação correta dos diferentes dialetos, pois a manutenção do ditongo, própria do Norte, ou a sua redução a [e], característica do Sul, assumiram um papel importante na consciência dialetal dos ouvintes. Estes identificaram, corretamente, 19,8% das realizações fonéticas que incluíam palavras que permitissem avaliar o valor distintivo deste traço.
Ao contrário do que aconteceu com o teste de identificação, no teste de discriminação a percentagem de respostas certas foi satisfatória (62,6%), quer quando os estímulos apresentados pertenciam à mesma região (58,9%), quer quando pertenciam a regiões distintas (63,3%).
A ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ e a monotongação do ditongo [6j] foram os fenómenos fonéticos que obtiveram o maior número de discriminações corretas, o que indicia o seu maior valor distintivo (80,6% e 68,3%, respetivamente), no âmbito do estudo realizado. Os valores obtidos corroboram as conclusões de vários linguistas (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Vasconcellos 1987; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971).
Uma análise mais detalhada dos resultados permite verificar que a ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/ se apresentou mais funcional para discriminar os pares de estímulos de regiões diferentes do que os da mesma região (20,7% contra 4,1%). Essa ausência revela-se produtiva, permitindo distinguir diferentes lexemas, ao contrário do que acontece com a maior ou menor abertura das vogais que, no geral, não contribui para a distinção de diferentes itens lexicais. Por estes motivos, o fenómeno fonético associado aos dois sons consonânticos é mais percetível, porque acarreta consequências ao nível da mobilização e do reconhecimento do léxico da língua portuguesa e, por isso, mais funcional para a discriminação das variantes dialetais.
A abertura das vogais [e]/[o] foi o fenómeno fonético que mais contribuiu para a correta discriminação dos pares de estímulos da mesma região (23%). A pronúncia dos sons vocálicos, contudo, está sujeita a uma maior variação do que a dos sons consonânticos, fruto, não só, dos fatores regionais, mas também do contexto em que ocorrem e da própria variação inerente a cada sujeito falante (Clopper e Pisoni, 2005). Essa propriedade dos sons vocálicos poderá justificar a elevada percentagem de respostas erradas, neste fenómeno, tendo em conta a totalidade do teste, apesar do seu contributo para a discriminação das realizações fonéticas pertencentes a informantes da mesma região dialetal.
Quando se observa o número total de respostas corretas obtidas, no teste de discriminação, percebe-se que foi o conjunto de palavras selecionado para estudar a monotongação do ditongo [6j] que, de novo, obteve a percentagem mais elevada de respostas corretas (19,1%).
A representatividade de cada fenómeno fonético variou em função dos diferentes pares de estímulos. Relativamente à ausência de oposição fonológica entre/b/ e /v/, é de realçar a sua importância para a distinção dos pares Minho-Algarve (16,5%) e Trás-os-Montes-Algarve, (14,9%), regiões geográfica e foneticamente mais distantes. Se, na maior parte do território do Minho e de Trás-os-Montes essa oposição desaparece, no dialeto do Algarve (e nos do Sul, em geral), mantém-se essa oposição. O resultado obtido parece comprovar que se trata de um dos fenómenos fonéticos que mais contribui para a distinção existente entre as regiões do Norte e do Sul (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Vasconcellos 1987; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971).
O ditongo [6j] revelou-se importante na distinção dos dialetos do Alentejo e do Algarve (13,8%), apesar de estas duas regiões surgirem descritas na literatura dialetológica como áreas de monotongação do referido ditongo (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Vasconcellos 1987; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971). O facto de, neste teste, se assumir como um fenómeno importante para distinguir o Minho do Algarve (13,0%) e o Minho do Alentejo (9,85%) ilustra, de novo, a oposição existente entre os dialetos do Norte e do Sul.
A manutenção do sistema de quatro sibilantes revelou-se importante para a discriminação do par de estímulos Beira Interior-Alentejo (9,7%) e Beira Interior-Algarve (12,6%). Este resultado contribui, também, para a clara oposição entre o Norte e o Sul linguísticos e comprova o elevado valor distintivo deste traço, reconhecido por Cintra (1983).
A existência da vogal paragógica [i] foi importante na distinção das associações de estímulos das regiões do Alentejo e da Beira Litoral (14,7%) e do Alentejo e da Beira Interior (14,7%). Este fenómeno fonético surge, na generalidade dos escritos sobre dialetologia, associado às regiões do Sul, em geral, e ao Alentejo, em particular (Boléo e Silva, 1961).
O resultado obtido para as vogais nasais ou seguidas da consoante nasal mostra-nos que elas foram importantes para distinguir os pares Trás-os-Montes-Beira Litoral (14,5%) e Minho-Beira Litoral. A pronúncia mais aberta destas vogais, que surgem num contexto específico, aparece associada ao Minho, facto que as respostas dos ouvintes parecem comprovar (Boléo e Silva, 1961; Cintra, 1983; Vázquez Cuesta e Mendes da Luz, 1971). A importância deste traço, estendido, aqui, à região de Trás-os-Montes pode filiar-se na contiguidade geográfica existente entre estas duas regiões. O facto de a produção das vogais nasais, ou com traços de nasalidade, decorrentes da assimilação à consoante nasal da sílaba seguinte, estar sujeita a um vasto conjunto de nuances, dificulta a perceção e a avaliação da mesma como traço distintivo na categorização dos dialetos. Esses diferentes matizes que as vogais nasais ou com marcas de nasalidade assumem decorrem da sua especificidade contextual, o que origina configurações articulatórias diversas e características acústicas peculiares (Teixeira, 2000).
A maior abertura das vogais [e]/[o], fenómeno sujeito a uma grande variabilidade geográfica, contextual e individual surgiu como traço importante na discriminação dos pares Beira Litoral-Beira Interior (17,4%) e Trás-os-Montes-Beira Litoral (16,3%). Essa abertura das vogais, para Boléo e Silva (1961), constitui um traço individualizador da variante dialetal de Trás-os-Montes. Dada a proximidade geográfica com a Beira Interior, não é de estranhar que, também nesta última região, esse fenómeno contribua para a perceção das diferenças existentes, relativamente ao dialeto da Beira Litoral.
Os pares de estímulos que incluíam realizações de Trás-os-Montes e do Algarve (7,5%), do Minho e do Algarve (7,3%) e do Minho e do Alentejo (7,1%) foram os que obtiveram as maiores percentagens de respostas corretas. Este resultado ilustra, mais uma vez, a consciência que os ouvintes parecem ter da existência de um Norte e de um Sul linguísticos, com uma zona de permeio que longe de se apresentar homogénea, comunga de algumas características das regiões extremas e tem na pronúncia das sibilantes um traço que permite destrinçar o interior do litoral. Assim, e embora se desenhem um «norte» e um «sul» linguísticos, não há unanimidade relativamente às suas fronteiras. Essa distinção será, seguramente, condicionada pelo traço distintivo que se elege. Por exemplo, quando a delimitação da fronteira entre os dialectos assenta na redução do ditongo [6j] a [e], a importância da região do Mondego e do Zêzere revela-se capital. Contudo, se nos centrarmos na ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/, essa linha divisória assume uma configuração diferente. Ela assemelha-se a um V, com o seu vértice a tocar as margens do Tejo e os extremos situados a norte de Aveiro, junto à costa, e nos concelhos de Macedo de Cavaleiros e Mogadouro, no interior transmontano (Boléo e Silva, 1961).
Na esteira de Boléo e Silva (1961), Pilar Vázquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz (1971) traçam um perfil do Português falado na Península Ibérica, distinguindo três zonas dialetais: o Norte, o Centro e o Sul, sem isolarem regiões menores, dentro delas. As autoras estabelecem um claro contraste entre o Norte e o Sul, mas não apontam um traço distintivo para a região Centro, alegando tratar-se de uma zona de transição, como já haviam observado Leite de Vasconcellos (1987) e os linguistas da escola de Coimbra (Boléo e Silva, 1974).
Dos testes ora realizados, fica, ainda, evidente a dificuldade dos ouvintes na perceção da diferença existente entre os estímulos da mesma variante dialetal, nomeadamente quando produzidos por informantes das regiões de Trás-os-Montes (apenas sete respostas corretas) e do Algarve (dez discriminações corretas). Estudos realizados, nos Estados Unidos também confirmaram a maior dificuldade dos ouvintes, em identificar as cidades-natais dos informantes, através da realização de testes percetuais, quando estas estão geograficamente mais próximas (Preston, 1993, cit. por Clopper, 2004), porque as diferenças intrarregionais são mais difíceis de percecionar.
6. Conclusões
O estudo exploratório permitiu comprovar que a variação linguística, a nível fonético, é uma realidade que permanece, no território de Portugal Continental. O facto de as diferenças existentes, entre regiões dialetais, serem pouco significativas, como atesta a literatura dialetológica existente, poderá justificar quão difícil foi para os ouvintes fazer a categorização correta das variantes dialetais, no teste de identificação.
As duas tipologias de teste conduziram a resultados bastante diferentes, no que diz respeito às percentagens de respostas corretas. No entanto, relativamente ao valor distintivo dos diferentes traços considerados, os resultados apresentaram algumas semelhanças, com a realização do ditongo [6j] a desempenhar um papel fulcral na correta categorização dos dialetos.
A aplicação dos testes percetuais permitiu considerar, igualmente, que a ausência de um determinado fenómeno pode contribuir para a identificação ou discriminação de um dado dialeto porque o ouvinte mobiliza os conhecimentos que possui acerca do seu sistema linguístico. Ao fazê-lo, toma como ponto de referência o seu próprio dialeto ou outros com que está mais familiarizado, ora excluindo as regiões em que um determinado fenómeno não acontece, ora assumindo-o como típico de uma região.
A aplicação dos testes foi feita num grupo restrito de ouvintes, o que constitui, sem dúvida, uma limitação deste estudo. Importa, por isso, realizar testes percetuais com um maior leque de ouvintes, com perfis diferentes porque a multiplicidade de perfis poderá originar resultados diversos, de acordo com as variáveis observadas. A constituição de corpora específicos para o estudo percetual da variação regional poderá permitir a obtenção de resultados mais sólidos e originar conclusões mais fundamentadas.
A realização de testes percetuais, tendo em vista a categorização dialetal, poderá, também, ter em conta todo o continuum de fala, pois este permite identificar melhor a região do falante. Numa frase, é possível considerar a existência de um maior número de fenómenos fonéticos e atentar nos constituintes prosódicos, não ao nível da palavra, mas da frase, que têm, também, um contributo importante a dar para o estudo da perceção da variação regional. Alguns estudos prosódicos estão já em curso e esperam-se, em breve, resultados mais esclarecedores neste domínio.
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[1] Por motivos de legibilidade, optou-se pela adoção de legendas simplificadas, nas representações gráficas. Assim, a legenda ausência de oposição /b/ - /v/ refere-se ao fenómeno da ausência de oposição fonológica entre /b/ e /v/; sempre que surgir a legenda ditongo [6j] (ou ditongo) o fenómeno que se pretende estudar é a monotongação do ditongo [6j]; a formulação [i] paragógico (ou paragoge) refere-se ao fenómeno fonético da existência de um [i] paragógico. A manutenção de um sistema complexo de quatro sibilantes surge, por vezes, legendado com a etiqueta fricativas (ou fricativa); a legenda vogal_nasal refere-se à maior abertura das vogais tónicas nasais ou das vogais tónicas seguidas de consoante nasal e, por último, a expressão vogais [e] e [o] (ou vogal média) é a legenda simplificada do fenómeno de abertura da vogal [e] / [o]. Nas transcrições fonéticas, utiliza-se a notação SAMPA.
Verbo-visualidade e argumentação em discursos jurídico-processuais
Maria Helena Cruz Pistori
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(Brasil)
Introdução
A utilização da imagem, associada ao texto verbal, é realidade presente na comunicação atual. Todas as facilidades de reprodução, impressão e divulgação que temos hoje permitem que ela constitua parte das mensagens que circulam em diferentes gêneros de discurso, com a mais ampla gama de finalidades, próprias de cada esfera de atividade humana. Mesmo discursos que, há pouco, usavam praticamente apenas a linguagem verbal - quer oral, quer escrita -, como é o caso do discurso jurídico, foco deste trabalho, vêm se aproveitando cada vez mais da possibilidade de “retratar” fatos, personagens, ações, espaços...
Na realidade, sabemos que todo discurso expressa visões de mundo e adesão a pontos de vista e valores. Logo, o mesmo ocorre com o discurso jurídico-processual, cujas partes num processo buscam convencer o julgador acerca da justeza e/ou razoabilidade de seus posicionamentos axiológicos e solicitações; e, posteriormente, a própria instância julgadora, ao dar a conhecer à sociedade a decisão acerca das diferentes demandas, deve justificá-la (ou motivá-la) de modo adequado para torná-la aceitável, provocando um efeito de sentido de que é justa e equitativa. Posto de outra forma: o discurso jurídico é essencialmente argumentativo. As imagens, caso ocorram no texto, estão a serviço dos posicionamentos e valores assumidos e das solicitações expressas; mais ainda, estão a serviço da persuasão do outro.
Considerando especialmente a realidade desse alto nível de persuasão e argumentatividade no discurso jurídico, não podemos, neste trabalho que busca a compreensão da verbo-visualidade e argumentação em discursos jurídico-processuais, nos esquecer dos estudos da antiga retórica, cuja finalidade, segundo Aristóteles, era “a descoberta do que, em cada caso, é capaz de gerar a persuasão” (Retórica, 1356a). No ensino da construção do discurso persuasivo desde o séc. V aC, a retórica buscava modos de levar o auditório à tomada de posição diante de situações de conflito. Aliás, a importância da antiga disciplina aqui se avulta ao lembrarmos que sempre esteve ligada ao Direito, já que seu ensino surge da necessidade de defesa da propriedade na antiga Sicília (cf. Barthes, 1975: 151). Retomada na atualidade, antes de tudo por Chaïm Perelman, que publicou seu Tratado da argumentação. A nova retórica, em colaboração com Lucie Olbrechts-Tyteca, em 1958, novamente percebemos que o primeiro olhar que o jusfilósofo belga a ela dirige parte também de suas preocupações com o direito.[1] Hoje, porém, parece consensual afirmar que a retórica e a argumentação constituem partes integrantes e essenciais das disciplinas da linguagem como um todo.
Nesses estudos, um dos importantes aspectos já levantados pela retórica antiga é a questão do auditório (ouvinte, destinatário). Aristóteles dedica todo o segundo livro de sua Arte retórica ao ouvinte, aos modos de persuadi-lo expressamente por meio das paixões. Também Perelman e Olbrechts-Tyteca reafirmam essa importância: “É em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve” (1996: 6). Com uma preocupação discursiva diferente, que esclarecemos adiante, e sem tratar propriamente da retórica, as palavras de Mikhail Bakhtin ampliam essa questão quanto tratam da compreensão responsivo-ativa do outro:
A consideração do destinatário e a antecipação da sua atitude responsiva são frequentemente amplas, e inserem uma original dramaticidade interior no enunciado (em algumas modalidades de diálogo cotidiano, em cartas, em gêneros autobiográficos e confessionais). Esses fenômenos são de uma índole aguda, porém mais exterior nos gêneros retóricos (Bakhtin, 2006: 302; sem itálicos no original).
Assim, a obra de Bakhtin e o Círculo complementam a abordagem teórica deste trabalho; isto é, a aliança da retórica com noções do que tem se denominado análise dialógica do discurso, encontrada na obra de Mikhail Bakhtin, Valentin N. Volochínov e Pavel Medvedev, todos componentes do Círculo, oferece-nos as lentes com que vamos ler e buscar a compreensão e análise da verbo-visualidade nos discursos jurídicos que selecionamos. Tal aliança constitui-se coerentemente principalmente se nos lembrarmos de que, no pensamento bakhtiniano, a abordagem do discurso é proposta em sua integridade concreta e viva, o discurso situado espacial e temporalmente, com um autor e um destinatário, cujo sentido é dado na interação do verbal com o extraverbal (Cf. Bakhtin, 2008: 207); esse também o foco da antiga retórica, que tratava do discurso situado, cada gênero se dedicando a situações, interlocutores, tema e finalidades concretas e definidas (ainda que devamos lembrar que as retóricas grega e latina tratam inicialmente apenas de três gêneros de discurso: o deliberativo, o judiciário e o epidítico).
O objetivo deste trabalho, pois, será o estudo, a análise e a compreensão das relações entre linguagem, argumentação e verbo-visualidade, especialmente na esfera de atividade jurídica, em dois processos jurídicos: o primeiro, da área penal e o segundo, da área trabalhista, seguindo a abordagem teórico-metodológica já citada, que detalharemos no próximo item. A seguir, apresentamos as duas breves análises e, depois, nossas considerações finais. Destacamos que partimos do princípio de que é na conjugação de texto e imagem, consideradas como um todo - um discurso verbo-visual, que os sentidos e os efeitos de sentido emergem.
1. Breves apontamentos teórico-metodológicos
Inicialmente é preciso observar que a obra do Círculo não se pretende uma teoria acabada do discurso ou da linguagem, nem mesmo uma teoria linguística. Aliás, é importante também afirmar que o trabalho do Círculo é obra de pensadores – filósofos, linguistas, músicos, estudiosos da literatura, etc. - que construíram conhecimento e produziram obras importantes a partir de debates comuns realizados em “círculos” na década de 1920-1930 – o que explica posições, conceitos e noções familiares a todos os seus membros, particularmente Mikhail Bakhtin, Valentin N. Voloshínov e Pavel Medviédev. A obra que produziram, algumas delas cuja autoria ainda é disputada[2], constitui-se num aparato teórico-epistemológico que, num primeiro momento se julgou adequado sobretudo aos estudos literários; hoje, no entanto, se percebe que, por tratarem da palavra e do discurso não apenas na arte ou na poesia, mas também na vida, expressam noções e conceitos de grande força heurística para a compreensão da língua e da linguagem de modo geral. E é a este conjunto teórico-metodológico que têm se referido os estudiosos do discurso quando se referem à Análise Dialógica do Discurso (ADD).
Sem a pretensão, neste curto espaço, de uma exposição extensiva da teoria dialógica do discurso inspirada na obra de Bakhtin e o Círculo, começamos com as palavras de Brait, que bem a resumem:
Sem querer (e sem poder) estabelecer uma definição fechada do que seria essa análise/teoria dialógica do discurso, uma vez que esse fechamento significaria uma contradição em relação aos termos que a postulam, é possível explicitar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel ligação entre língua, linguagens, história e sujeitos que instaura os estudos da linguagem como lugares de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável, e não apenas como procedimento submetido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas. Mais ainda, esse embasamento constitutivo diz respeito a uma concepção de linguagem, de construção e produção de sentidos necessariamente apoiadas nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados (Brait, 2008: 10).
Restringimo-nos aqui à exposição de aspectos que consideramos de importância maior no todo teórico, destacando categorias que servirão para análise das peças processuais escolhidas: a dialogia inerente a todo discurso,[3] ao lado da noção de relações dialógicas; a noção de signo ideológico e os fundamentos teórico-metodológicos de análise (Bakhtin/Volochínov, 1981: 124; Bakhtin, 2008: 207-234).
Bastante conhecida entre os estudiosos da linguagem, a dialogia é provavelmente o conceito do Círculo mais amplamente divulgado. Compreende, como está em Marxismo e filosofia da linguagem (Bakhtin/Volochínov, 1981 [1929]), o “‘diálogo’ num sentido amplo, isto é, não apenas a interação face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja”, na medida em que qualquer enunciação sempre “responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.” (p.123). A interação verbal é o fenômeno social que constitui o locutor e o interlocutor, sujeitos da enunciação, e o diálogo é a verdadeira substância da língua.
Já as relações dialógicas, conforme as palavras de Bakhtin em Problemas da poética de Dostoiévski [1929;1963], podem ocorrer a “qualquer parte significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta não seja interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo da posição semântica de um outro, como representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos nela a voz do outro” (2008: 210; grifos nossos). Destacamos, daí, o fato de que tais relações acontecem entre posições. Além disso, na continuidade do texto, Bakhtin afirma que elas “são possíveis também entre outros fenômenos conscientizados, desde que estejam expressos numa matéria sígnica” (p. 211), como, por exemplo, entre “imagens de outras artes” (grifo nosso). Na análise, então, o reconhecimento das relações dialógicas entre os discursos vai nos permitir a compreensão do nexo e da inter-relação necessária entre o verbal, o visual e o extraverbal dos enunciados concretos, todos compreendidos como expressão de posicionamentos. Mas as relações dialógicas, alerta ainda o filósofo russo, embora pertençam ao campo do discurso, não pertencem a um campo puramente linguístico do seu estudo (Bakhtin, 2008: 208). Assim, o sentido do discurso depreende-se também das condições em que é produzido, do modo como dialoga com as condições sociais, históricas, políticas e culturais, e das próprias condições da interação verbal, da esfera de atividade em que é produzido, da relação entre falantes – de hierarquia, igualdade, familiaridade, etc..
Aprofundando a reflexão sobre o conceito de matéria sígnica como componente do enunciado, a que Bakhtin se refere no excerto acima, devemos retomar outra importante noção elaborada pelo Círculo: os autores não tratam exatamente da noção de signo, mas de signo ideológico, sempre “sujeito aos critérios de avaliação ideológica” (Bakhtin/Volochínov, 1981: 32). Porque é ideológico, o signo remete às diferentes esferas ideológicas em que surge, como aquelas do conhecimento científico, da literatura, da moral, da religião, do direito, da estética, cada uma com “seu próprio modo de orientação para a realidade” (p.33); quer dizer, cada esfera ideológica reflete e refrata a realidade a seu próprio modo. Isso está bastante claro em Marxismo e filosofia da linguagem (Bakhtin/Volochínov, 1981) e também no capítulo em que Medviédev trata dos elementos da construção artística em O método formal nos estudos literários [1928], detendo-se no problema do gênero (2012: 193-207). Acrescentamos ainda que, examinando-se o todo da obra bakhitiniana, isto é, o arcabouço teórico-metodológico que se depreende da obra do Círculo, é importante notar que todos os conceitos estão interligados: neste caso, não se compreende o signo ideológico sem relacioná-lo com as esferas ideológicas (ou da atividade humana), ou mesmo com a noção de gênero, já que o uso da linguagem em cada uma delas está ligado a tipos de enunciados relativamente estáveis (Bakhtin, 2006: 261-262).
Assim, ao tratar da palavra, “o modo mais puro e sensível de relação social” e “fenômeno ideológico por excelência” (1981: 36), Bakhtin/Volochínov afirmam que sua realidade é a função de signo. Então, as relações dialógicas, que ocorrem entre fenômenos expressos em qualquer matéria sígnica, podem ocorrer entre palavras e imagens de diferentes esferas da criatividade ideológica, pois “todas as manifestações da criação ideológica - todos os signos não-verbais - banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele” (Bakhtin/Volochínov, 1981: 38).
Ainda a respeito das esferas ideológicas (ou da criação ideológica, ou do signo ideológico) ou da ideologia (Cf. Grillo, 2008: 133-160), em Qu’est-ce que la langue et le langage? (2010: 533), Volochínov esclarece que a ideologia se expressa não apenas no material verbal, pois é “todo o conjunto de reflexos e refrações no cérebro humano da realidade social e natural, expressa e fixada por ele sob forma verbal, de desenho, de esboço ou de outra forma semiótica” (grifos nossos).[4] Ainda que cada uma das esferas tenha seu próprio modo de encarar (refletir e refratar) a realidade, o sentido dos enunciados concretos ocorre a partir do diálogo entre elas e da compreensão responsivo-ativa entre os parceiros da comunicação discursiva:
... a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos. E essa cadeia de criatividade e de compreensão ideológicas, deslocando-se de signo em signo para um novo signo, é única e contínua: de um elo de natureza semiótica (e, portanto, também de natureza material) passamos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente idêntica (Bakhtin/Volochínov, 1981: 34).
Ressaltamos que, na abordagem tanto dos signos como da matéria sígnica, os autores tratam da linguagem de modo geral, não apenas da verbal, o que inclui as imagens, os desenhos, os gestos, qualquer forma semiótica. Dessa forma, fica sugerido que as categorias e conceitos com que se estuda o discurso verbal podem se aplicados à compreensão e análise da verbo-visualidade, mesmo que se reconheça que a teoria dialógica do discurso não tem nela o seu foco de análise e compreensão. Aliás, lembramos que tal produtividade heurística tem sido atestada em trabalhos que enveredaram por essa trilha (Cf. Brait, 2009, 2010, 2013 entre outros; Brait; Pistori, 2012; Pistori, 2013, etc.). E é isso que faremos neste texto, com interesse especial na questão argumentativa[5].
Enfim, em termos metodológicos, não nos esquecemos de que estamos produzindo um texto sobre textos, um discurso sobre discursos; isto é, dialogamos com os enunciados jurídicos selecionados, buscando neles o que há de único e singular – seu sentido, seguindo os passos propostos pelo Círculo: primeiramente, a observação dos enunciados concretos verbo-visuais, tendo como critério a “interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realizam”. Em seguida, sua relação com o gênero a que pertencem – “tipo de estruturação e de conclusão de um todo”, da mesma forma que com o locutor a que se dirigem e a temática de que tratam. Finalmente, o enfoque não apenas do “exame das formas da língua”, mas também das imagens, pois ambas são responsáveis pela identificação dos valores e visões de mundo em conflito, através das entonações apreciativas e valorativas (Bakhtin/Volochínov, 1981: 124).
2. Verbo-visualidade no processo jurídico
Inicialmente é preciso observar que vamos tratar de gêneros do discurso jurídico: na área penal, as Alegações Preliminares, as Finais e as Contrarrazões da defesa em um processo criminal, todas redigidas por um mesmo locutor; na área trabalhista, uma petição inicial e a decisão a ela relativa, expressa no acórdão do Tribunal Regional do Trabalho. Cada um desses enunciados obedece a coerções genéricas próprias, tanto em termos de tema, composição e estilo, como ainda de relações entre o que é exterior e interior aos enunciados, e entre locutor e interlocutor. Além disso, como já afirmamos anteriormente, cada gênero abarca apenas determinados aspectos da realidade, propiciando uma visão particular dela; por exemplo, no caso do discurso jurídico, é o discurso legal que define o que nele é o fato e lhe confere esta ou aquela consequência. Assim, há uma unidade orgânica entre o tema e aquilo que lhe é exterior (Medvedev, 2012: 196-7), as condições específicas do enunciado, as atividades discursivas e as práticas sociais. Essa inter-relação tensa interior-exterior (Medvedev, 2012: 195-6) se expressa nos enunciados concretos, atos social e historicamente determinados, que se orientam para a vida desde o interior da obra:
Em nossa cultura grafocêntrica, especialmente em termos de estilo (mas também de composição), destaca-se no discurso jurídico a prevalência do texto escrito, “de característica formular, o que costuma ser justificado, na área, desde a codificação napoleônica, pela necessidade de ‘segurança jurídico-procedimental’” (Bittar, 2001: 109). A presença da imagem nesses enunciados é sempre a possibilidade, não a regra; ela serviria a um “iconismo probatório”, visando à “suplantação dos efeitos negativos da tradução dos fatos em linguagem verbal escrita” (Bittar: 2001: 274-5). No entanto, sem qualquer dúvida, signos não verbais como a fotografia, nos enunciados analisados, significam no texto e são tanto mais pertinentes quanto mais servirem à prova do que se alega, já que outra das coerções dos gêneros do discurso processual jurídico é o princípio de que aquele que alega deve provar: “O não provado é o não-existente, algo incapaz de sustentar uma significação jurídica para o discurso decisório” (Bittar, 2001: 275). Busca-se, assim, toda e qualquer forma de linguagem para se provar o alegado, pois a inserção das imagens no texto, da mesma forma que a linguagem escrita, pode influenciar e determinar a formação da convicção do julgador.
2.1. Verbo-visualidade em um processo penal
Comecemos pela apresentação das peças da área penal, na qual uma das defesas, ao longo do processo, utilizou a modalidade verbo-visual por três vezes. Era a defesa de um dos réus, no processo 17.901/97, que julgou rapazes que assassinaram um índio pataxó em Brasília, em 1997. A nosso ver, nenhuma das três ocorrências pode ser definida como atendendo tão-somente a um “iconismo probatório”, conforme tratado por Bittar no trecho recortado: funcionam argumentativamente de modos diferentes, sempre expressando posicionamentos axiológicos. De forma breve, reproduzimos aqui as situações, destacando que observamos as relações dialógicas no discurso, isto é, além do puramente linguístico: em diferentes matérias sígnicas, entre imagens, ou entre o verbal e as imagens.
Na defesa referida, a primeira vez em que surge a imagem é nas Alegações Preliminares de MRA, de 26/05/97 (fl. 342-348). Como advogado de defesa, o locutor trata de caracterizar o bom caráter do acusado, exaltando valores de família e de sua classe social, privilegiada. São valores exclusivos, como educação em escola religiosa, intercâmbios, universidades públicas, estudo de inglês, academia de musculação, etc., trabalho e família: “Essa convivência sadia e fraternal, foi o alicerce moral, cristão e seguro sobre o qual se estruturaram o caráter e a boa índole do réu, desde os primeiros anos de sua existência”. Todos os qualificativos: sadia, fraternal, moral, cristão, seguro... expressam uma entonação apreciativa altamente positiva. A ideia é afirmar que o crime foi um deslize na trajetória de vida do réu, argumento já tratado por Aristóteles, na Retórica:
... mostrar-se equitativo é ser indulgente com as fraquezas humanas; (...) ter em conta não a letra da lei, mas a intenção do legislador; (...) não a parte, mas o todo; não o estado atual do acusado, mas sua conduta constante, ou sua conduta na maioria das circunstâncias (1379b, [19--?]: 82; sem itálicos no original).
Para comprovar tal tese, a primeira parte da peça se denomina “Perfil do acusado” e visa a refutar a acusação da promotoria que o qualificou como “sem profissão”. O texto, então, enumera detalhes familiares do acusado, apresentados com riqueza de minúcias e 14 fotos de família, todas descritas no texto (com a avó, com o cachorro, com a irmã que faz intercâmbio nos Estados Unidos...), promovendo um detalhamento na referencialização que faz firmar a ilusão de verdade. Ao mesmo tempo em que o enunciado verbo-visual remete ao horizonte social da estrutura familiar ideal, de classe social privilegiada, percebemos que o efeito de sentido buscado é passional, há uma entonação emocional que visa a uma identificação entre leitor (juiz) e acusado.
Ao longo do processo, outro argumento utilizado por essa defesa será apontar a mídia como a responsável por incitar a indignação da opinião pública, não o delito. O apelo contrário à posição da mídia, da qual o réu, segundo a defesa, é “vítima”, é argumento recorrente em muitos de seus textos; a ideia é de que isso comprometeria a independência no ato de julgar, consequentemente prejudicando a defesa dos réus. Nas Alegações Finais, de 28/07/1997 (fls. 531-555), essa posição se expressa logo no início, com inserção de uma foto que funciona como epígrafe do enunciado: mostra barraquinhas listadas sob um arvoredo – provavelmente uma feira de artesanato, encimadas por uma faixa em que se pede “punição aos assassinos de Galdino pataxó e de todos os trabalhadores do campo. Grito da terra Brasil - 1997. CONTAG – CUT – CAPOIB – ENS – MONAP – MAB”. A faixa remete a todo o contexto reivindicatório do momento – movimentos pela reforma agrária e pela demarcação de terras indígenas, liderados por sindicatos de trabalhadores e outras associações; mas, em primeiro lugar, pede punição ao crime contra o índio pataxó, questão que, à primeira vista, não teria relação com as demais reivindicações.
Figura. 1 – Fonte: Proc. 17.901/97
Neste caso, percebemos que a imagem não mais se apresenta como um discurso referencial direto e imediato, mas sim como um discurso não autônomo, subordinado ao discurso do locutor, que expressa uma postura crítica em relação a ela, por meio de uma entonação emocional indignada. Como um discurso polêmico duplamente orientado – um “discurso com mirada em torno” (Bakhtin, 2008: 238), voltado para o referente e também para outro discurso, responde ativa e ironicamente ao discurso da imprensa e da opinião pública, que é retomado e rejeitado no texto verbal: “O réu já teve contra si um julgamento condenatório apriorístico, tanto pelo tribunal da mídia, como pela opinião pública por ela manipulada, de forma escandalosa e irresponsável” (fl. 550). A posição da defesa, então, se coloca em relação polêmica com o posicionamento da mídia, na medida em que o locutor expõe e confronta os discursos, por meio de palavras e da imagem, a que o locutor não se refere diretamente: persuasivamente, ambas visam a mostrar tal “manipulação da mídia e da opinião pública” ao julgador, levando-o à sua rejeição.
Mais adiante, ainda neste processo, novamente encontramos a imagem. Nas Contrarrazões ao recurso do Ministério Público (16/09/1997, fl.746-776), logo no início, há uma foto 3x4 do réu, abaixo do título da peça processual. Foto comum, dessas tiradas para documentos, parece apenas identificá-lo réu, ilustrar-lhe a seriedade (não pode ser qualificado como “sem profissão”, diz o texto), torná-lo presente e visível; estaria a serviço do discurso referencial direto e imediato, aquele que nomeia, representa. Dialoga, porém, retoricamente com as Alegações finais da mesma defesa, para comprovar e justificar a afirmação de que o acusado sofre discriminação racial da mídia e que isso não deve interferir em seu julgamento.
A fotografia do acusado, de preferência sobre os demais co-réus, é frequentemente estampada nos periódicos locais, com alcunhas de assassino e monstro, realçadas pela sua origem negra, de tez acentuadamente morena, com ofensa aos mais elementares direitos e garantias fundamentais do cidadão (fl. 550).
Como pudemos observar, as relações dialógicas apontadas, ora num discurso monológico que afirma e reafirma seu posicionamento, como o primeiro e último exemplos, ora no discurso bivocal que instaura a réplica e o confronto, sempre têm em vista a defesa do réu (é o tema do gênero), exaltando-lhe características positivas ou apresentando-o como vítima da situação em que se encontra. Especialmente este último exemplo mostra como aquilo que adquiriu um valor social pode entrar no domínio da ideologia: aqui é a posição contrária ao racismo que busca ser concretamente (já está na lei) reconhecida neste processo. A imagem do réu – o retrato 3x4, aliada às palavras do defensor – “realçadas pela sua origem negra, de tez acentuadamente morena, com ofensa aos mais elementares direitos e garantias fundamentais do cidadão”, como um enunciado único, suscitam índices de valor contraditório (réu ou vítima?). Aliás, acreditamos que os pequenos exemplos dos enunciados verbo-visuais apresentados por essa defesa mostram-nos que são constituídos por signos plurivalentes, que colocam em confronto valores diversos: em relação à classe social, à família, em relação à etnia do réu... Explicitando: nesse último caso, se o réu é apresentado como vítima de racismo por meio de um tom apreciativo ora indignado ora piedoso, cria-se em torno dele um sentimento de compaixão - ele também é vítima, logo merece um julgamento mais brando pelo crime cometido. Nas palavras de Bakhtin/Volochínov, na “realidade, todo signo ideológico vivo tem, como Jano, duas faces. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras” (1981: 47). Vamos observar o mesmo fenômeno nos excertos do processo trabalhista a seguir.
2. 2. Verbo-visualidade em um processo trabalhista
Podemos afirmar que o cerne da Reclamação trabalhista No.0002418-33.2010.5.15.125 que vamos analisar é um acidente de trabalho. Em poucas palavras: trata-se do caso de um lavrador que foi admitido em grande empresa do setor sucroalcooleiro, em 1998, tendo lá trabalhado ininterruptamente por 11 anos. Durante esse período, sempre recebeu promoções funcionais - de lavrador passou a auxiliar de recepção e moagem; em seguida, operador de turbinas e operador de extração - e aumento salarial correspondente. Em outubro de 2009, contudo, sofreu um grave acidente: uma queda de 7 metros (em pé) numa área aberta, não sinalizada, da qual havia sido retirada a grade de proteção. Isso lhe provocou fraturas na perna direita e em ambos os calcâneos. Após seis meses de tratamento, retornou ao trabalho por dois meses, mas, não conseguindo dar conta das funções em decorrência de sequelas do acidente, foi afastado por tempo indeterminado pelo médico da empresa.
Não vamos nos deter aqui nas minúcias do processo, questão não concernente a esta comunicação. Apenas relatamos que, entre os vários pedidos da petição inicial, encontram-se aqueles referentes às indenizações por danos materiais, morais e estéticos: “... isto porque além da dor que teve (e tem) que suporta em razão das fraturas, da perda de capacidade permanente que será comprovada em sede de perícia, pesa sobre o Reclamante a frustração de ver sepultado todo seu promissor futuro profissional” (p.7). No anexo da petição, as três fotos da perna e dos pés do trabalhador, em ângulos diferentes, corroborando as informações da petição, no que poderia ser compreendido como iconismo probatório. A elas assim se refere o locutor: “... independente da capacidade laborativa, o Reclamante teve sérias fraturas na perna direita e nos calcâneos, que ficará definitivamente marcado (cujas fotos falam por si), a despeito da possibilidade de nova cirurgia, além do que desenvolveu cicatrizes e deformidade dos membros inferiores dentre outros transtornos que chamam atenção e causam repulsa, principalmente em crianças” (p.16; sem itálicos no original).
Fig. 2 – Fonte: Proc. No.0002418-33.2010.5.15.125
Ação trabalhista proposta, foi julgada no primeiro grau, tendo o trabalhador recebido apenas parte de seus pedidos. Consequentemente, entrou com recurso à segunda instância, o Tribunal Regional do Trabalho da * Região. A decisão do Tribunal expressou-se num Acórdão, que é resultante da votação de uma turma composta de três desembargadores, e baseia-se em relatório redigido por um deles, que simultaneamente relata o ocorrido anteriormente no processo e sugere as decisões a serem tomadas pela turma; isto é, três julgadores de segundo grau debateram e julgaram o caso, modificando a decisão de primeira instância em alguns pontos.
Como resultado, entenderam ser seu direito o recebimento de outras tantas compensações financeiras relativas ao período trabalhado, e também lhe concederam indenizações mais condizentes relativas aos danos materiais: “Notório, pois, o prejuízo e a redução da capacidade laborativa do reclamante, que foi classificada como parcial e permanente”, afirma o relatório na fl.427; e aos danos morais:
... não há como negar que o acidente causou dor íntima, angústia e tristeza ao obreiro. Este já passou por 4 cirurgias até o momento e é provável que realize outras 02. Há a certeza de que não recuperará 100% de sua capacidade física, pois as sequelas são definitivas e o tratamento por prazo indefinido (fl. 282 do laudo pericial). As condições de saúde do reclamante descritas no laudo (limitação para atividades em pé e caminhadas) também tornam evidente o constrangimento que sofrerá o obreiro por ter sido marcado pelo acidente (fl. 427).
Os excertos nos mostram que, ao lado da argumentação do advogado, a voz do perito - o laudo técnico, foi decisiva. Ambas as decisões aderem claramente ao discurso da compaixão e da identificação com o outro que sofre/sofreu. Observamos isso na ênfase com que se justificam: “Notório, pois, o prejuízo...”; “não há como negar”, “evidente constrangimento”... Contudo, em relação ao dano estético, definido na petição inicial como “voltado para fora, vulnera o corpo, atinge, desfigura a silhueta, a beleza e a plástica, corresponde ao patrimônio da aparência” (p.17), manteve-se a decisão inicial, de primeiro grau, isto é, o mesmo valor indenizatório, com a seguinte justificativa no relatório:
Evidente que o dano estético não pode ser vilipendiado, devendo apenas ser deferido quando restarem evidentes graves deformidades, que alterem a harmonia física e a destreza da vítima, despertando a atenção das pessoas e provocando impacto sobre a percepção da própria vítima sobre si mesma, abalando seu aspecto de normalidade e sua auto-estima.
No caso do reclamante, as fotos juntadas com a inicial denotam que as cicatrizes são relativamente grandes (15cm como dito no laudo), implicando em danos à imagem do obreiro. Contudo, por ser do sexo masculino e de pele morena, as cicatrizes não ficam tão em evidência, motivo pelo qual considero compatível o valor de R$5.000,00 fixados pela Origem (fl. 428).
Na decisão, neste primeiro parágrafo, há o reconhecimento de que o dano estético não pode ser desprezado - “vilipendiado”, mas isso de forma geral, conforme se expõe na sequência. No segundo parágrafo, porém, na continuidade de um discurso em que percebemos um tom “razoável” e “equitativo”, há uma leitura das fotos (e do laudo pericial) de modo bastante diverso daquela feita na petição inicial.
Independente do fato de se considerar que o trabalhador devesse ou não receber uma indenização maior relativa a “danos estéticos”, questão para a qual não somos legalmente competentes, chama-nos a atenção a justificativa por não concedê-la: “Contudo, por ser do sexo masculino e de pele morena, as cicatrizes não ficam tão em evidência, motivo pelo qual considero compatível o valor...” (sem itálicos no original). Ao longo do processo não há qualquer referência ao fato de o trabalhador ser negro, mas essa condição está aí expressa: “pele morena”. São duas vozes (reacionárias) que se confrontam no discurso desse trecho do relatório: em primeiro lugar, afirma-se uma estética masculina e outra feminina. Para a mulher, a estética seria relevante; em segundo, afirma-se uma estética para brancos e outra para negros. Se ele fosse branco... Ou, então, poderíamos aí ouvir duas vozes sociais: uma conservadora, de classe social privilegiada, em oposição a uma voz democrática, de igualdade e fraternidade... Na interação discursiva, locutor e interlocutor se definem a cada vez na linguagem por meio dos signos ideológicos. As fotos, assim como as palavras, aqui apresentam ao menos duas faces, claramente visíveis e contraditórias.
Na inesgotabilidade da consciência que ativamente responde – neste caso, o relatório que foi a base do acórdão decisório responde concretamente às solicitações do trabalhador acidentado -, observamos, como Bakhtin/Volochínov haviam sinalizado, que, “na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia” (1981: 47). Quer dizer, os signos ideológicos – palavras e imagens – são marcados pelo horizonte social de uma época, mas os índices de valor a que remetem não estão estabilizados, são dinâmicos. É isso que constatamos nesse enunciado: em plena vigência constitucional de um discurso que reconhece direitos iguais para todos, deparamo-nos com uma justificativa, num processo legal, sexista e racista...
Considerações finais
Os processos aqui selecionados para descrição, análise e interpretação são longos e dele destacamos tão-somente alguns trechos, o que nos levou à necessidade de relatá-los em grande parte. Cabe pois, neste espaço final, destacar apenas os aspectos ligados à verbo-visualidade que pudemos observar nesta breve análise.
Em primeiro lugar, comprovamos que os sentidos realmente não estão somente no verbal ou no visual, mas na conjunção de ambos: é dessa conjunção que surgem os posicionamentos axiológicos. Ou melhor, são as relações dialógicas, ocorridas em qualquer dessas matérias sígnicas, que nos permitem o reconhecimento das posições em jogo. Mas sua compreensão remete ao exterior, “exterior” este compreendido e depreendido do texto.
Quanto à questão do auditório, Aristóteles tratava das paixões suscitadas no ouvinte como modo de exercício da persuasão. Na citação bakhtiniana, observamos a menção à “dramaticidade interior” aos enunciados, ligada às entonações apreciativas, ou ao “tom volitivo-emocional” que dão acabamento aos discursos. Nesses dois exemplos, estão claramente explicitadas as entonações emocionais dos enunciados, sempre dirigidas ao destinatário que pretendem persuadir, que, no processo judicial, em última análise, seria a própria sociedade. Particularmente, porém, cada um dos processos se dirige primeiramente a um destinatário definido. No processo penal, os enunciados da defesa se dirigem primeiramente ao juiz singular. Assim, o defensor busca a identificação com o julgador na exaltação dos valores de classe privilegiada - possivelmente compartilhados entre defesa e juiz, mas, ao mesmo tempo, remete a valores dos excluídos ao lembrar a etnia do réu, destacando o discurso da lei contra a discriminação racial.
No processo trabalhista, como já é uma decisão, o destinatário primeiro da decisão são as partes: o trabalhador e a empresa. Nesse caso, porque o relatório expõe argumentos das duas partes em conflito ao longo do texto, a entonação emocional é mais contida, racional. Ainda assim, há a busca de identificação do julgador com o sofrimento do operário acidentado no primeiro parágrafo que transcrevemos. Mas um distanciamento em relação a ele na justificativa. Em ambos os processos, porém, a consideração do destinatário e a antecipação de sua atitude responsiva guiam a construção discursiva a partir do exterior do texto.
Nesse sentido, a análise desses enunciados nos permitiu observar os inúmeros discursos que circulam em nossa sociedade, dos quais destacamos as vozes do racismo em oposição às vozes contrárias ao racismo; as vozes do privilégio em oposição às vozes democráticas; os valores machistas em oposição aos valores universais. No caso penal, os signos ideológicos a que o defensor recorre são plurivalentes e a análise nos mostrou o tom apreciativo contraditório com que são apresentadas as características do réu: ora se exaltam os valores do privilégio, como a formação familiar e social privilegiada a que teve acesso, por exemplo; ora os valores da exclusão, como a etnia. De comum, o apelo à compaixão, na medida em que ele é apresentado como vítima da mídia, da opinião pública ou do racismo.
O mesmo acontece no processo trabalhista. As fotografias das partes do membro inferior acidentada são vistas a partir de um discurso que define valores estéticos contraditórios, conforme se trate de homem ou mulher, negro ou branco. Na justificativa do voto, presente no Acórdão, ouvem-se vozes que remetem a discursos polêmicos e não estabilizados em nossa sociedade, ainda que “estabilizado” na legislação. Assim, num processo jurídico, a justificativa surpreende e desvela valores sexistas e racistas do julgador, ainda que revele compreensão e empatia emocional diante do prejuízo sofrido pelo trabalhador acidentado.
Enfim, intimamente relacionadas aos valores, as questões passionais são bastante fortes no discurso jurídico e expressam-se não apenas no verbal, mas também na conjunção do verbal e do visual - quando este segundo se encontra presente. E podem interferir no modo como os juízos são construídos.
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[1] Cf. “Da justiça”, capítulo inicial de Ética e direito (São Paulo: Martins Fontes, 1996) na edição brasileira, cuja primeira publicação é de 1945, na coleção das Actualités Sociales, Nova série, Universidade Livre de Bruxelas, Institut de Sociologie Solvay, Bruxelas, Office de Publicité.
[2] Citamos aqui apenas Marxismo e filosofia da linguagem; problemas fundamentais do métodos sociológico na ciência da linguagem, que aparece sob a autoria de Mikhail M. Bakhtin e/ou Valentin N. Voloshínov em publicações de diferentes países, ou mesmo em publicações de um mesmo país em diferentes edições; e O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica, cuja autoria é disputada entre Pavel N. Medviédev e Mikhail Bakhtin, entre outros. Não vamos nos deter na questão da autoria neste texto, questão que já rendeu numerosos e polêmicos estudos.
[3] É importante notar a concepção bakhtiniana de discurso, exposta com muita clareza no cap. O discurso em Dostoiévski, de Problemas da poética de Dostoiévski: “a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso” (2008: 207), afirmando ainda que, porque o discurso envolve as relações dialógicas - extralinguísticas, não pode ser estudado apenas pela linguística, propondo a “metalinguística” como o estudo dos aspectos que ultrapassam os limites daquela disciplina, sem ignorá-la, mas aplicando seus resultados (cf. 2008: 207-211).
[4] Sobre o conceito, cf. Faraco, 2009, p. 45-50.
[5] Sem ignorar importantes estudos que têm tratado do discurso verbo-visual na contemporaneidade, julgamos conveniente não juntar teorias de diferentes vertentes epistemológicas, utilizando em nossos estudos apenas a Análise Dialógica do Discurso (ADD) que, no Brasil, tem proposto procedimentos teóricos e metodológicos suficientes para a análise proposta.
Algumas Representações Literárias das Vogais Orais Madeirenses:
Os Sistemas Pré-Acentuado e Pós-Acentuado
Maria Helena Dias Rebelo
Universidade da Madeira
(Portugal)
1. A variedade madeirense em obras literárias
Para o linguista interessado em Geografia Linguística ou Dialectologia, nomeadamente no Português falado na Região Autónoma da Madeira (RAM), que se passará a designar por “Madeirense”[1] (Vasconcelos, 1970:129), é importante observar se há convergências ou divergências entre as suas transcrições fonéticas e as literárias que os escritores regionais apresentam, quando procuraram, nas suas obras ficcionais, reproduzir o falar da comunidade linguística. O trabalho de campo do linguista pode enriquecer-se com as semelhanças e as diferenças que encontrar relativamente aos seus próprios resultados porque, como ele, os autores de obras literárias também visaram descrever a pronúncia regional e local, dando, inclusive, conta de particularidades fonéticas. De momento, não há, para a variedade regional em estudo, nenhuma descrição fonética geral e fidedigna realizada, embora estejam em curso trabalhos acústicos (Rebelo e Freitas: 2007). A de Rogers (1946 e 1948), impressionista, é mesmo bastante limitada e deficitária (cf. Rebelo: 2002). Acerca da Fonética madeirense, conhecem-se apenas estudos parcelares e referências pontuais (cf. Rebelo: 2005). Por isso, e por ser o mais sistemático, decidiu-se recorrer ao realizado por Silva (1994) para servir, apenas, como ponto de partida na comparação empreendida no presente estudo que incide, maioritariamente, nas relações da grafia e da fonia, no texto literário madeirense. É impensável confrontar os dados de Silva (1994) com os dos escritores. Não é, de todo, o que se pretende. Almeja-se, única e exclusivamente, o levantamento das representações gráficas literárias para os fonemas orais inacentuados e o cotejo das diversas propostas obtidas, a fim de identificar os elementos fónicos que os escritores grafam de modo diferente do padronizado para retratar particularidades da pronúncia madeirense.
Neste sentido, e a fim de olhar para a Literatura como um contributo para os Estudos Linguísticos, propõe-se continuar a analisar textos literários datados do século XX (Rebelo: 2013). Interessam mais precisamente alguns dos anos 50 aos 90, da autoria de Ricardo Jardim, Ernesto Leal, Jorge Sumares, Francisco de Freitas Branco e Horácio Bento de Gouveia, considerando que a maioria dos estudos linguísticos académicos dedicados ao Madeirense também são deste período. Terão os textos literários regionais influenciado, de algum modo, os estudos linguísticos? Terá sucedido o inverso? Se não foi o caso, de qualquer maneira, escritores e linguistas, pelo menos a maioria, usaram os mesmos instrumentos de trabalho para descrever a pronúncia madeirense: o ouvido e a tomada de notas, a partir da memorização do fenómeno linguístico captado e registado. Embora os objectivos literários e linguísticos fossem sempre diferentes, os métodos iniciais foram idênticos, especialmente antes do uso de gravações por parte dos linguistas. A transcrição do escritor, é claro, deverá ser menos fiável do que a do linguista, sobretudo presentemente. Acredita-se, no entanto, que é relevante analisar de perto as propostas eternizadas nas obras publicadas (essencialmente literárias) que qualquer leitor pode ler e entender, o que não é o caso das transcrições fonéticas dos linguistas. Convirá, contudo, realçar que, antes de utilizar o Alfabeto Fonético Internacional (AFI), os símbolos empregues pelos linguistas ou investigadores não eram muito divergentes dos propostos pelos escritores. Mesmo nas transcrições fonéticas de um linguista, os caracteres escolhidos variavam bastante, não sendo nada fácil entender o valor de um determinado símbolo e dos diacríticos adicionados (cf. Rebelo: 2005-2008). Devido a estas alterações de representação, não é, frequentemente, evidente a transcrição de um linguista daquela época que se dedicasse ao Madeirense. Isso aproxima-o ainda mais dos escritores que se mencionam aqui. Um processo simplificado de reconstrução gráfica foi seguido pelos cinco escritores madeirenses referidos, havendo apenas um deles que terá recorrido, pontualmente, à gravação. Foi Francisco de Freitas Branco. Aliás, os textos destes autores não são realmente ficções, mas crónicas baseadas em transcrições gráficas que considerou reproduções “vivas” da fala insular. Todavia, o trabalho de Horácio Bento de Gouveia tem, ainda hoje, uma valorização maior do que o de Francisco de Freitas Branco.
Portanto, várias questões se colocam. Uma delas prende-se com a relação entre a linguagem falada e a escrita[2]. Como representam os escritores regionais algumas sonoridades do Madeirense que não correspondem ao Português Europeu padrão? Como consideram os fenómenos fonéticos típicos? Ao longo dos anos, nos próprios livros, têm-nos descritos da mesma maneira? Revelam alguma consistência ou as flutuações prevalecem? Escrevem de modo idêntico o léxico regional? Quais são as maiores diferenças nas suas obras? A problemática é realmente muito vasta. É apenas possível tratar aqui uma parte de todo um trabalho que tem de ser feito e que se tem vindo a desenvolver. Então, comparam-se, por isso, unicamente as representações gráficas das vogais dos sistemas pré-acentuado (pré-tónico) e pós-acentuado (pós-tónico), partindo da proposta fonológica de Jorge Morais Barbosa (1983) que se revisita e se relaciona com a de Maria Paula Marques Freitas Silva (1994) para São Vicente, na Costa Norte da ilha da Madeira. Como se disse, visto ser esta a descrição mais sistemática que se conhece, é a que serve de mera referência, isto é, de ponto de partida, de momento, para o Madeirense. Todavia, por o presente estudo não ser propriamente fonético, não se apresenta a transcrição fonética das formas extraídas das obras literárias. Isso implicaria uma interpretação dos dados que os escritores apresentam e não é esse o objectivo deste trabalho. Não se transcrevem foneticamente as representações gráficas extraídas dos textos literários, uma vez que se querem somente observar, comparando, as propostas dos autores para o vocalismo oral inacentuado. Portanto, esta abordagem geral coloca-se no plano da inter-relação Literatura-Linguística, com a descrição pontual de certos fenómenos da escrita literária para a transcrição da produção fónica regional. Logo, não se trata de um estudo fonético-fonológico, embora vise elencar e observar a grafia das representações literárias de alguns fonemas.
2. Horácio Bento de Gouveia e o Madeirense
Quando um escritor concebe diálogos entre diferentes personagens com características tipicamente regionais, tentará retratar o mais possível a fala dos locais e, se existem especificidades linguísticas (essencialmente de pronúncia, o detalhe que interessa aqui sublinhar) próprias da região, ele irá reproduzi-las, relacionando a língua escrita e a falada (cf., por exemplo, a obra de Aquilino Ribeiro). Querendo dar alguma cor local e “passar a realidade linguística” para a ficção, o autor de textos literários transporta para o texto a variedade regional com matizes locais, se os tiver. Capta-a através da escrita (cf. Anexos I e II). No entanto, para permitir que os leitores de outras origens (não madeirenses) consigam ler e compreender o texto, mantém o Português padrão, quando o narrador ou alguma personagem instruída toma a palavra. Assim, garante alguma estabilidade na leitura da obra e usa símbolos acessíveis, recorrendo à escrita alfabética. Nos textos, há, então, duas escritas diferenciadas: uma padronizada para as personagens social e economicamente mais fortes e outra regionalizada para as personagens populares com condições sociais, culturais e económicas mais fracas. Nesta última, continuando a empregar o alfabeto latino, aproxima-se o mais possível do padrão, mas, simultaneamente, da variedade geográfica que transcreve. É o que acontece com os escritores madeirenses indicados porque seguem o mesmo processo, embora recorram a estratégias singulares (cf. tabelas infra).
Na impossibilidade de analisar todas as obras madeirenses que recorrem a este recurso (e já começam a ser algumas), optou-se por aquelas que têm servido a estudos anteriores. Nelas, contam-se dois romances: o de Ricardo Jardim (RJ), intitulado Saias de Balão (1946), onde o processo é pouco usado, e o de Horácio Bento de Gouveia (HBG) Lágrimas Correndo Mundo (1959), no qual o recurso à transcrição da variedade linguística é abundante. Há dois contos: um de Ernesto Leal (EL) com o título “O Homem que Comia Névoa” (1964) e outro de Jorge Sumares (JS), que escreveu “Mai Maiores qu’ essei Serras” na década de 60, tendo sido publicado parcialmente em 1974, no Diário de Notícias da Madeira. Por fim, de Francisco de Freitas Branco (FFB), optou-se por considerar as três crónicas com a transcrição alfabética do Madeirense: “Sobre habitantes da ilha: apontamento linguístico”, “Ê tenho esta ideia comeio (crónica literária)” e “Ainda nam teinha trêzianes, comecei cêde: tentativa para reprodução escrita da fala viva” (1995). Para o Português falado no Arquipélago da Madeira, estes cinco escritores regionais, entre outros, desenvolveram uma tentativa de transcrição do registo oral insular, sobretudo do nível popular, como já se evidenciou. É este o nível da linguagem aqui em destaque. Dos cinco escritores considerados para este estudo, sobressai Horácio Bento de Gouveia porque cultivou, nas suas obras literárias extensíssimas, recorrentemente, o processo de escrever o Madeirense e os restantes autores usaram o método ocasionalmente e em menor escala.
Assim, dos cinco, Horácio Bento de Gouveia tem maior destaque por ser considerado como um representante fundamental desta transcrição “fónica” (mas não fonética) do Madeirense e tem, portanto, um papel mais relevante do que qualquer um dos restantes autores deste estudo. Porém, como nas publicações deles, a reprodução da fala, através da escrita, nas obras de HBG, não é real e factual porque se trata de uma reconstrução ficcionada. Em princípio, transcreveu, de cor, o que sabia e não usou qualquer método de gravação (Gouveia: 1994). A sua memória e o profundo conhecimento do falar da terra que o viu nascer poderão estar na origem da transcrição “fónica” deste professor de liceu da área das Letras que usou e abusou do processo. Foi bem longe na representação escrita que pretendia decalcada do falar, seguindo os seus próprios critérios auditivos.
Os muitos diálogos do romance Lágrimas Correndo Mundo[3] (LCM), livro que aborda o tema do bordado da Madeira, assim como as condições de vida de homens e mulheres dedicados a este labor, foram contabilizados[4] e minuciosamente observados. O levantamento dos discursos directos na obra integral de HBG ainda não foi feito. Contudo, Thierry Santos (2007), na tese de doutoramento sobre o romance Canga, trata o assunto do discurso (cf. 4.3.4. o Diálogo, 296-298, e 4.3.5 o Discurso indirecto livre e o monólogo interior, 299-302) e o da variação dialectal (cf. 2.4. Língua a Padrão vs o português da Madeira, 66-185). A obra global de HBG parece ter uma consistência interna e todos os seus romances são baseados nos mesmos métodos de reprodução da fala espontânea insular, independentemente da localidade de origem das personagens. Para a construção dos diálogos, a sua posição ter-se-á mantido em todos os textos. Relativamente ao assunto, aplica-se, perfeitamente, a LCM, o que Thierry Santos (2007, 300-301) acrescenta para Canga[5]: “Não será (…) de estranhar que Bento de Gouveia prefira o estilo directo, em detrimento do estilo indirecto, este permitindo-lhe, pois, apagar-se totalmente por trás das suas personagens e imprimir maior vivacidade ao discurso narrativo.”, o que evidencia a importância do registo oral nos textos de HBG.
Quase todas as páginas do romance LCM, livro que serve para apoiar o presente estudo comparativo, são construídas a partir de diálogos, alguns muito curtos e outros bem longos. Aliás, da totalidade, há apenas umas quantas páginas que não têm discurso directo e, consequentemente, a reprodução do Madeirense. Contámos (cf, nota de rodapé relativa ao assunto) todos os diálogos que tecem a teia narrativa, para observar as características, especialmente as de pronúncia (equivalentes às realizações fonéticas), do falar. Por vezes, como na realidade empírica e extratextual, o final de um diálogo é difícil de identificar porque, tendo muitas personagens, sucede que os interlocutores vão mudando (cf. o caso do passeio de carro de João de Freitas com os pais e as primas). Pode acontecer, também, que um diálogo é interrompido por uma personagem alheia à conversação inicial. Registam-se igualmente mudanças de espaço, enquanto os diálogos vão acontecendo. Uma personagem pode, inclusive, manter diálogos com duas personagens, começando uma conversa com um terceiro interveniente, antes de retomar o diálogo inicial que foi interrompido. Há, ainda, diálogos mantidos entre muitas personagens, subdivididas em pequenos grupos. Portanto, as possibilidades, como na realidade da comunicação interpessoal, são múltiplas e é incontestável que se “fala” muito em LCM, tendo o Madeirense maior representatividade do que o Português Padrão. Todavia, nem todos os diálogos estão marcados pelo registo popular regional (cf. por exemplo, LCM:16) como Thierry Santos o assinalou para Canga. Eles aparecem, apenas, quando há personagens das camadas sociais mais baixas a falar, como referido anteriormente. Na sua maioria, são pobres e analfabetos, mas alguns sabem ler e escrever rudimentarmente (cf. ANEXO I).
Os diálogos deste romance de HBG estão (re)construídos, parecendo naturais porque representam e caracterizam as personagens pela linguagem que empregam. Todavia, serão totalmente artificiais, uma vez que reproduzem e representam não o “verdadeiro” falar dos madeirenses, mas a maneira como o escritor percebeu o linguajar das gentes mais humildes da sua terra. Os fenómenos linguísticos nem sempre se manifestam em todos os diálogos. Por vezes, as mesmas personagens também não “articulam” de modo idêntico os mesmos vocábulos, como, por exemplo, nos seguintes casos: “ainda”/ “inda”, “não”/ “nã” (João de Freitas, p. 32), “mê”/ “meus” (p. 34, uma bordadeira: “o mê comer” e “os meus vestidos”. Às vezes, mas nem sempre, o escritor HBG indica com o itálico uma palavra escrita de forma diferente do padrão ortográfico, por exemplo, “já tua cum sono” (LCM 53) (apenas “tua” vem em itálico), mas isto não acontece sempre. Comprova-se o facto em “Proque nã calhua. Ai vezes só por um mexer de beiços é ũa multa!” (LCM 60). De vez em quando, crê-se que a transcrição não mostra nenhuma diferença entre o que é Madeirense e Português padrão. Acontece com “ismigalhou” (LCM 135), onde a sílaba inicial “es-” se pronuncia, à partida, “is-“ na norma, mas não no Arquipélago da Madeira[6]. Sucede, ainda, que um fenómeno frequentemente representado nem sempre ocorre, como “-ua” para “-ou” em “Corri atrai dele. Voltua.” (LCM 133), mas “fechou a Casa” (LCM 143). A metodologia de HBG não parece, então, muito consistente, mas dá uma nota de realismo linguístico, já que estas alterações e inconsistências também acontecem na fala espontânea (Freitas: 2010). Deve lembra-se que HBG tinha noções específicas de Fonética, como o revelou[7] no artigo “Respigos de Fonética no Linguajar da Gente – Freguesia da Ponta Delgada”.
Em LCM, para caracterizar a variedade regional, além dos diálogos, acontece a HBG de apresentar apenas uma frase de uma personagem que serve de figurante. Assim, para esses casos, não há conversa, mas não deixa de ser discurso e representação da fala espontânea. Trata-se de uma intervenção isolada (fala solta) de uma personagem[8]. Na maioria dos casos, essa figura aparece apenas uma vez, não tendo nunca grande importância, mas o escritor quer fazê-la “falar”. Há um terceiro tipo de discurso que marca a linguagem madeirense. Acontece, quando o diálogo (“di”, implicaria dois) é substituído pelo monólogo (“mono”, uma personagem fala consigo própria). Isso sucede, por exemplo, a Afonso que, desconhece-se se interior ou exteriormente, “falava de si consigo” (LCM: 182) sem empregar os artigos definidos antes dos possessivos, como acontece no falar madeirense: “(...) «(...) Minha mãe queria qu’eu casasse... todos os filhos se têm casado!... Verdade seja que depois do casamento de minha irmã encarei a possibilidade de ir à igreja». Veio tirá-lo desta cisma um freguês.”. Thierry Santos (2007: 302) equacionou esta vertente assim: “o monólogo interior oferece-nos o presente de um protagonista que esboça, no âmago de um diálogo entre si e a sua consciência”. Além destas possibilidades linguísticas, regista-se ainda o discurso indirecto livre, como no pensamento de João de Freitas, (LCM 41 ou 94) e nos sonhos de João de Freitas (LCM 148-149). Vestígios da fala madeirense ocorrem também na carta de Manulinho a Maria de Jesus. O registo regional está presente na própria escrita da personagem (cf. ANEXO I). É um exemplo concreto em que a personagem escreve como fala. Há “erros” na carta porque Manulinho era pouco escolarizado e não sabia escrever respeitando a norma do Português. Isto revela que tudo o que HBG grafou, alterando a ortografia “normal”, isto é, seguindo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1945, deve ser retido porque haverá particularidades regionais que será necessário ter em conta.
Esta observação é válida para todos os escritores aqui considerados, já que, na transcrição da fala espontânea reconstruída ficcionalmente, há movimentos de aproximação e de afastamento relativamente à grafia padrão portuguesa. Interessarão os movimentos de afastamento para o registo das vogais pré-acentuadas e das pós-acentuadas, os elementos que se comparam. As transcrições gráficas literárias do Madeirense devem ser lidas segundo os valores das letras a nível alfabético. Essa seria, evidentemente, a finalidade dos escritores. Queriam aproximar a grafia da fala, substituindo, por esta via, a “transcrição fonética” por uma escrita que se poderá designar como “grafofónica”. Este método de transcrição gráfica adequa-se, de algum modo, ao que se conhece como “pronúncia figurada” (Rebelo e Santos: 2013). Para os valores das letras, vejam-se as pronúncias das letras do alfabeto latino (cf., a título meramente exemplificativo, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea). Uma vez que a interpretação do material sonoro do registo regional não é comum aos vários escritores, parte-se dos fonemas do Português Europeu padrão (cf. Barbosa) e consulta-se o estudo de Silva mencionado para ter um ponto de partida comum, a fim de poder comparar as realizações articulatórias ficcionadas que se vão listando em cada um dos textos analisados.
3. Representações literárias do vocalismo átono
Em trabalhos anteriores[9], houve a preocupação de comparar, primeiro, a vogal /i/, em diversas posições, mas sobretudo enquanto tónica, por a sua mudança de timbre ou ditongação ser, reconhecidamente, uma particularidade fonética no Madeirense (cf. por exemplo, Viana, 1973:88 e Vasconcelos, 1970:130) e, depois, as vogais tónicas. Estas parecem, também elas, transportar especificidades do Madeirense (cf. Rebelo: 2013). Para concluir o estudo do vocalismo, resta cotejar as propostas dos cinco escritores quanto ao vocalismo não acentuado, seja ele pré-tónico ou pós-tónico.
3.1. As vogais pré-acentuadas
Para o Português Europeu, mais precisamente a variedade padrão, Jorge Morais Barbosa (1983: 135-163) identificou as seguintes vogais pré-acentuadas: a) em posição inicial de vocábulo, realizam-se os seguintes fones [i e ԑ a α ǝ ɔ o u], b) em sílaba fechada, todos os assinalados podem figurar - [i e ԑ a α ǝ ɔ o u], c) em sílaba aberta, apenas os seguintes fones ocorrem: [i a α o u] e d) em sílaba inacentuada com uma consoante na posição inicial, surgem [i e ԑ a α ǝ ɔ o u]. Como se explicou, quanto à variedade madeirense, o único estudo fonético sistemático que englobe as vogais inacentuadas foi empreendido por Paula Marques Freitas da Silva (1994: 55-58), que considerou as seguintes possibilidades fónicas para o sistema das vogais pré-acentuadas: [i e ԑ a α ǝ ɔ o u]. No sentido de simplificar a comparação das propostas dos escritores, parte-se, no geral, das considerações destes dois estudos linguísticos que são apenas pontos de referência para os dados literários obtidos. Reagrupam-se todas as posições indicadas por Barbosa – a), b) c) e d) – em “pré-acentuada”, isto é, pré-tónica. Apresentam-se, seguindo os fones enunciados acima, e substituem-se os símbolos /α/ e /ǝ/ por /ɐ/ e /ö/. Sintetizam-se os dados em tabelas, a fim de poder favorecer o cotejo entre as representações dos diversos escritores. Na primeira coluna das tabelas sinópticas, encontram-se as maiúsculas iniciais dos nomes dos autores cujos textos se analisam. Na segunda, dá-se o fonema que motiva a comparação entre barras oblíquas / / e, para cada autor, listam-se as representações literárias gráficas presentes nos textos. A síntese de todas as representações figura na linha superior da tabela e possibilita uma leitura rápida da convergência ou divergência do Madeirense com o padrão do Português Europeu, a partir da grafia. Na terceira coluna, dão-se exemplos da “transcrição grafofónica” extraídos das obras. No sentido de ilustrar cada representação literária dos fonemas, são facultados exemplos extraídos dos textos com indicação da página onde se podem encontrar. Colocam-se entre aspas “ ” os contextos de uma ou mais ocorrências. Entre os sinais < >, copia-se o vocábulo destacado da citação onde consta o elemento a analisar. É o vocalismo pré ou pós-tónico destes vocábulos que interessa observar. Pode suceder que a representação literária não seja diferente da ortográfica. Nestes casos, não há especificidades regionais. Aí, acrescentam-se os parênteses curvos ( ) que servem para a escrita ortográfica. Com os rectos [ ], dão-se informações suplementares. Logicamente, as particularidades manifestam-se quando há divergência. Assim, na segunda coluna, está a informação relevante a este propósito, como se pode verificar nas diversas tabelas infra.
A vogal madeirense /i/ é vista, nomeadamente por Cunha e Cintra (1996), além de Viana (1973) e Vasconcelos (1970), entre outros estudiosos, como tendo matizes, sendo, por isso, específica da variedade insular. Em posição pré-tónica, segundo os dados recolhidos na tabela 1, tem assumidamente algo de característico. Apenas RJ e EL a representam de maneira ortográfica, sem qualquer característica madeirense. São os únicos a manter unicamente o <i> ortográfico pré-tónico. Os outros escritores, cujos trabalhos se comparam, além de <i>, propõem <e>. Somente FFB assinala um ditongo e uma mudança de timbre em <u>, nitidamente de cariz popular.
Como se pode comprovar na tabela 2, são várias as representações gráficas literárias para a vogal pré-acentuada /ö/. É FFB quem tem uma proposta mais variada, mesmo se a de HBG é considerável por apresentar quatro variantes. É viável afirmar que todas as letras vocálicas do alfabeto são empregues para dar conta da pronúncia desta vogal que deverá merecer um estudo fonético aprofundado, segundo os dados literários em observação. Acontece ainda que a sua síncope (apresentada com X) é também uma possibilidade em HBG e FFB, embora aconteça pela sua não realização.
Apesar de os exemplos colhidos nos textos em análise não serem muitos, havendo até dificuldade em encontrar vocábulos para ilustrar as representações de /e/, é possível afirmar que as vogais pré-tónicas /e/ e /ԑ/ (cf. tabela 3) não apresentam qualquer realização particular nos cinco escritores cujas propostas se comparam. Todos eles grafam estas vogais com as letras próprias da ortografia comum do Português Europeu. Apenas RJ adiciona um acento grave (è) para representar /ԑ/, mas, provavelmente, porque o seu livro foi publicado antes do Acordo Ortográfico de 1945.
Nada de substancialmente divergente acontece nas propostas dos cinco escritores para as vogais /ɐ/ e /a/ em posição pré-tónica (cf. tabela 4). Porém, é HBG quem mais se afasta dos outros autores quanto à vogal /ɐ/, que tem, em todos eles, mais representações do que /a/. O autor de LCM propõe várias mudanças de timbres, incluindo uma nasalação, como se verifica pela leitura dos dados expostos na tabela 4. RJ é o único a facultar a vogal <o> em “chamar”.
Mesmo se os exemplos para /o/ e /ɔ/ (cf. tabela 5) não são abundantes nas obras em análise, é incontestável que a vogal semifechada tem mais realizações, para os cinco escritores considerados, do que a semiaberta. É, contudo, HBG quem faz uma proposta mais vasta para os modos de articular /o/. Dá conta, inclusive, de uma ditongação que também se regista em RJ. É, ainda, ele quem apresenta a vogal <a> em “pouquinho”, o que ocorre igualmente em FFB, para o mesmo termo. Dos cinco escritores, HBG coloca mais possibilidades de realizar esse fonema no registo popular madeirense.
Para a vogal /u/ pré-tónica, HBG e JS são os únicos a registar outras possibilidades vocálicas que não as habituais da ortografia normativa, isto é, <o> e <u>. Ambos apresentam <e> e apenas HBG indica, pontualmente, um <a> como em <acalá> (acolá). Salvo estes dois autores, os restantes consideram não haver nada de particular com esta vogal em posição pré-acentuada, como se comprova pela tabela 6.
Tabela 1 |
/i/ |
“i”, “e”, “ei”, “u” |
HBG |
i e |
<vezinha> (vizinha): “Já vua, vezinha.” (20), “vezinha Luísa.” (20), “a vezinha inda tem a sua filha” ( 97) (<vizinha>): “a vizinha é mãe de filhos” (35), “minha vizinha” (20), <dezendo> (dizendo): “dezendo” (30), “dezendo que o lume” (53), <dezer> (dizer): “ ‘teve há pouco aqui a dezer” ( 5), “veio-lhe dezer” ( 136) <ismigalhua> (esmigalhou): “o desastre da bomba que lh’arrebentua na mão e lh’ismigalhua a cara.” (135) |
RJ |
i |
(<algibeira>): “’tá qui n’algibeira” (183) (<aflição>): “nã era d’aflição” (196) (<dizer>): “a dizer à gente” (196) (<direito>): “Tá direito, patrão... Vossa senhoria nã se afreime...” (256) (<licença>): “com licença da menêina” (265) (<felizmente>): “felizmente que a moda das saias de balão já passara” (304) (<Idiotas>): “Idiotas é com’aquêle que diz!” (315) |
EL |
i |
(<chiqueiro>): “Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro.” (69) (<figueira>): “Vem aquei à figueira...” (69) (<caminhando>): “Nós cá vamos caminhando para o Espigão.” (79) (<entendimento>): “Cobre Deus o entendimento” (80) |
JS |
e i |
<lecença> (licença): “Com sua lecença” (175) (<cigarrinho>): “Um cigarrinho?” (175) (<cidade>): “Memo da cidade?” (176) <fedalgos> (fidalgos): “Passo por’qui muntos fedalgos” (176) <vestoso> (vistoso): “Munto vestoso memo” (176) <dezer> (dizer): “costumava dezer que a terra é cuma um filho.” (178) <sastefeito> (satisfeito): “nã cabe no catre de sastefeito que tá” (182) |
FFB |
e u ei i |
<vezinhos> (vizinhos) e <vesitave-se> (visitavam-se): “vezinhos, vesitave-se uns aos outros” (34) <prumeiro> (primeiro): “co Menino Jesus existiu prumeiro ca gente todos” (35) <feilheinhos> (filhinhos): “pa têre seus feilheinhos” (271) (<opinião>): “na meinha opinião” (271) <dizêre> (dizer): “eisto queu vou dizêre” (271) (<inocentes>): “pelo menos os inocentes” (272) <adeveinha> (adivinha): “não sei o que se adeveinha” (272) <barreigudos> (barrigudos): “tão todos barreigudos” (273) (<figueira>): “tinha uma figueira” (342) |
Tabela 1. Representações literárias da vogal /i/ pré-tónica
Tabela 2 |
/ö/ |
“i”, “e”, “a”, “o”, “i”, “u” e X |
HBG
|
i e a X
|
<marcineiro> (marceneiro): “é o nome dum marcineiro” (28) <disconto> (desconto): “Um disconto de 300 patacas !?” (34) <digraçado> (desgraçado): “É um digraçado!” (60) <disculpa> (desculpa): “nã m’alembrava dessa disculpa” (61) <disgostosa> (desgostosa): “Ficou munto disgostosa” (71) <piquena> (pequena): “Inda eras piquena cando ele morreu.” (136) (<pequena>): “q’ando a pequena introu no hospital, quem nos imprestou o dinheiro pa ui doutores fazer a operação?” (153) <chigua> (chegou): “Cando a mãe chigua” (136) <milhorava> (melhorava): “A nossa vida milhorava munto!” (152) <navoeiro> (nevoeiro) e <carrado> (cerrado): “Tava um navoeiro çarrado!” (193) <disconto> (desconto): “Ele nã lhe fez disconto?” (35) <esp’rança> (esperança): “tenho cá uma esp’rança” (18) |
RJ |
e o a i |
<menêina> (menina): “rica meneina” (29) <porfeitos> (perfeitos): “rapazes porfeitos” (37), <escalête> (esqueleto): “maridos magros co’mum escalête” (37) <seguêi> (segui): “Eu seguêi atrás da minha senhora” (195) (<alegria>): “era d’alegria” (195) <dimônio> (demónio): “O senhor Gastão anda sob as artes do dimônio!” (245) (<recado>): “Vou mandar recado pelo Antoninho, e pode sê v’êle em indo montado na bêsta...” (256) (<mercou>): “foi quem as mercou...” (265) (<preciso>): “Era preciso mandar vir o senhor dôitor” (277) <disgraça> (desgraça): “Ah! menêina, que disgraça esta!” (309) (<descarregada>): “tá descarregada, menêina!” (312) (<senhor>): “o senhor... nã sei... nã sei...” (312) |
EL |
e i |
(<pequeno>): “Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro.” (69) (<pequena>): “ao pé da fonte pequena...” (69) (<regar>): “’tou a regar...” (69) <estepuilha> [regionalismo – sinónimo de “maroto” ou “malvado”]: “O estepuilha tem mas é qu’aprender a cantar...” (70) <Amecês> (Vossas Mercês): “Amecês que não durmam!” (83) <’lixandrina> (Alexandrina): “’lixandrina do Diabo” (83) |
JS |
i u a e |
<digrácia> (desgraça): “Uma digrácia.” (175) <pirgunto> (pergunto): “Se mal pirgunto” (176) <burmelha> (vermelha): “munto burmelha da cara” (177) <Sarrado> (Serrado): “lá em baixo no Sarrado” (179) <bubero> (beberam): “todos os que tavo ali bubero um copo” (182) (<desculpe>): “desculpe o mau falar” (183) |
FFB |
u X e o i |
<dupois> (depois): “dupois tem quir às padarias” (34) <algrias> (alegrias): “com muitas algrias” (35) (<Menino>): “Cá Menino Jesus!” (35) <Fermente> (Fermento): “Fermente mesme de casa (35) <formente> (fermento): “nan tinha o formente faze asseim” (35) (<mesinha>): “aqui está esta mesinha velha” (35) (<recordação>): “tanhe ali pra recordação” (35) (<vergonha>) e <daparecêre> (de aparecer): “têm vergonha daparecêre” (271) (<presidente>): “do ministro ao presidente” (272) <discansados> (descansados): “dormire más discansados” (274) <disculepáre> (desculparem): “peço pa me disculepáre” (275) (<cemitério>): “caminho d cemitério” (339) (<pequena>): “era pequena, mas era peste” (339) |
Tabela 2. Representações literárias da vogal /ö/ pré-tónica
Tabela 3 |
/e/ e /ԑ/ |
“e”, “è”, X |
HBG |
e e X |
/e/ (<empregozinho>): “para ver se arranjava um empregozinho” (16) /ԑ/ (<Guilhermina>): “D. Guilhermina estimei muito vê-la.” (179) <Manulinho> (Manuelinho): “Manulinho” (131) |
RJ |
è |
/e/ [não se registaram exemplos] /ԑ/ <quètinha> (quetinha): “Esteja quètinha!” (32) <Zèzinho> (Zezinho): “O Zèzinho da Camacha” (264) |
EL |
e |
/e/ [não se registaram exemplos] /ԑ/ <Manelhuinho> (Manuelinho): “O Manelhuinho foi co Antóino ?” (72) <relvuinha> (relvinha): “Está alei aquela relvuinha tão boa!” (74) |
JS |
e e |
/e/ (<comerzinho>): “Pois se é dela que vem o comerzinho que se come” (179) /ԑ/ (<resinha>): “um braçado de rama de til pra uma resinha” (179) |
FFB |
e |
/e/ [não se registaram exemplos] /ԑ/ (<bonequinhos>): “os seus bonequinhos” (34) (<delgadinhas>): “fica as pontinhas más delgadinhas (35) (<bequinho>): “à porta do beco, do bequinho” (339) |
Tabela 3. Representações literárias das vogais /e/ e /ԑ/ pré-tónicas
Tabela 4 |
/ɐ/ e /a/ |
/ɐ/ “e”, “in”, a” e /a/ “a” |
HBG
|
e in a a |
/ɐ/ <rezão> (razão): “Eu cá sei a rezão” (21), « tem rezão » (60) <inté> (até): “tamos aqui inté àve-marias” (30) (<patrão>): “o patrão não recebe encomendas de fora?” (133) (<chamadas>): “ilhas chamadas Filipinas” (133) <cramar> [regionalismo: sinónimo de “lamentar-se”]: “nã podemos cramar” (135) (<América>): “dum telegrama que arrecebeu da América” (143) /a/(<alfaiate>): “A Júlia do alfaiate.” (136) |
RJ |
a o
a à |
/ɐ/(<rapazes>): “rapazes porfeitos” (37) <afreime> [regionalismo: sentido de “assustar”]: “Nã se afreime! Nã ‘tou brincando...” (72) (<atrás>): “Eu seguêi atrás da minha senhora” (195) (<alegria>): “era d’alegria” (195) <chomar> (chamar): “É preciso chomar o senhor dôitor!” (277) (<mamar>): “Dando de mamar ao menêino.” (303) (<descarregada>): “tá descarregada, menêina!” (312) (<Afastem-se>): “Já disse! Afastem-se!” (99) /a/<amecê> (Vossa Mercê): “Veja amecê” (73) <chàzinho> (chazinho): “Um chàzinho de laranjeira” (193) |
EL |
a a |
/ɐ/ <Maruia> (Maria): “Ó Maruia!...” (68) (<acabares>): “Quando acabares esse poio...” (69) (<acabando>): “vem vuindo, mulher... acabando esse poio...” (69) <Manelhuinho> (Manuelinho): “O Manelhuinho foi co Antóino ?” (72) <camuinho> (caminho): “vão abrir camuinho” (76) /a/ <Amecês> (Vossas Mercês) e (<camionete>): “Amecês já sabem que vão abrir camuinho para a camionete de horário vuir até à venda do Jordão ?” (76) |
JS |
a e a |
/ɐ/ <marmir> [criação popular sinónima de “queimar”]: “um sol a marmir” (175) (<caminho>): “Fica a uma hora de caminho daquela beira pra dentro.” (175) (<cigarrinho>): “Um cigarrinho?” (175) (<agradecido>): “Munto agradecido.” (175) <famila> (família): “não é famila do senhor Albertinho da Vila?” (176) <rezão> (razão): “O senhor nã me dá rezão?” (178) /a/ <Albertinho> (Albertino): “não é famila do senhor Albertinho da Vila?” (176) (<ilharga>): “à ilharga da senhora Cambra” (176) (<novidadezinha>): “cando via a novidadezinha que tanto custua a cuidar” (180) |
FFB |
a a |
/ɐ/ (<saquinha>) e (<farinha>): “uma saquinha de farinha” (34) (<farelo>): “já tirave o farelo prá salimentar” (34) (<lapinhas>): “vinhe vesitas ver as lapinhas” (34) (<escadinha>): “a dela era de escadinha” (35) <pedacinhe> (pedacinho): “eles tire um pedacinhe de massa” (35) <escrapiadas> [regionalismo: um género de bolo ou pão]: “faze as escrapiadas” (35) (<Jardim>): “No Jardim Municipále” (339) /a/ (<padarias>): “vai comprar às padarias” (34) <salváre> (salvar): “coletes pa se salváre” (274) |
Tabela 4. Representações literárias das vogais /ɐ/ e /a/ pré-tónicas
Tabela 5 |
/o/ e /ɔ/ |
/o/ “a”, “oi”, “ôi”, “o” e /ɔ/ “o”, “ò”, “ou” |
HBG
|
a oi ou o o |
/o/<pocachinho> (pouquinho): “O vinho é pocachinho.” (18) <arroibou> (roubo): “tamém m’arroibou oito patacas” (30) [roubou] <apoipada> (poupada): “Minha mãe é pobre mas apoipada.” (113) (<doutores>) e (<operação>): “q’ando a pequena introu no hospital, quem nos imprestou o dinheiro pa ui doutores fazer a operação ? » (LCM 153) /ɔ/(<hospital>): “q’ando a pequena introu no hospital, quem nos imprestou o dinheiro pa ui doutores fazer a operação ? » (LCM 153) |
RJ |
o ôi ou ò o |
/o/ <boeiro> (boieiro): “o boeiro berra” (59) (<azougou>) [sinónimo de “morrer” relativamente aos animais]: “deu-lhe um mal, azougou” (264) <dôitor> (doutor): “senhor dôitor” (277) <boazêinha> (boazinha): “tão boazêinha!” (284) (<obrigue>): “nã m’obrigue a fazer fôgue! Nã m’obrigue!” (309) <Vocência> (Vossa Excelência) e <Vocelência>(Vossa Excelência): (139) /ɔ/ <sòzinho> (sozinho): “foi dormir sòzinho p’ró quarto grande” (277) <vocemecês> (Vossas Mercês) e <vossemecês> (Vossas Mercês): (316) |
EL |
ou o |
/o/ <ouvuindo> (ouvindo): “’tás ouvuindo, estepuilha ! ” (74) /ɔ/ <Georgette> [nome próprio francês]: “Georgette!... Nã ouves, Georgette Óoo Georgeeette!” (71) |
JS |
a ou o o |
/o/ <dator> (doutor): “senhor dator Ramiro” (179) (<ouvidos>): “Fiquei mouco dos ouvidos” (179) <horairo> (horário): “Cá no horairo nã me meto” (179) (<olhando>): “Sempre se vai olhando pelo qu’é nosso” (179) (<ouvindo>): “O Rebeca foi ouvindo, foi ouvindo” (182) /ɔ/ (<copinhos>): “ele já tinha uns copinhos” (182) |
FFB |
a o ou o ou |
/o/ <pocachinho> (pouquinho): “O trigo, memo esse pocachinho caparece” (34) (<obrigado>): “muito obrigado” (275) (<chouriço>): “ovos fritos com chouriço” (339) /ɔ/ (<copito>): “co seu copito de vinho” (34-35) <roubáre> (roubar): “uns aos outros a roubáre” (274) |
Tabela 5. Representações literárias das vogais /o/ e /ɔ/ pré-tónicas
Tabela 6 |
/u/ |
“o”, “u”, “e” e “a” |
HBG
|
a o e
|
<acalá> (acolá): “acalá” (38) (<acolá>): “acolá adiante no portal da fazenda” (85) <melher> (mulher): “melher e ui filhos” (41) <disgostosa> (desgostosa): Ficou munto disgostosa » (71) <milhorava> (melhorava): “A nossa vida milhorava munto!” (152) <navoeiro> (nevoeiro): “Tava um navoeiro çarrado!” (193) |
RJ |
o u |
(<molhadas>): “molhadas pelas gotas do sereno” (39) <carolaços>: “pregar-me uns carolaços” (180) <cozêinha> (cozinha): “Vou já p’ra cozêinha arranjá-lo.” (193) (<chorava>): “nã sabêia se rêia, se chorava!” (196) <possiv’le> (possível): “A gente vai-se fazer o possiv’le!...” (256) (<baboseiras>): “Isso são tudo baboseiras!” (278) (<trocarmos>): “É só p’ra trocarmos umas palavrinhas...” (302) (<ajustar>): “veio-se mandados p’ra ajustar contas” (315) (<estorvar>): “O senhor nã nos há-de estorvar!” (315) |
EL |
u o |
(<mulher>): “vem vuindo, mulher... acabando esse poio...” (69) (<somenos>) e <bonuito> (bonito): “É somenos, mas já é bonuito.” (70) (<bordei>): “Já bordei bastantes...” (71) (<estupor>) “Eduardinho do estupor !” (83) |
JS |
e u o |
<melheres> (mulheres): “homes e melheres, numa grande festa.” (176) (<juízo>): “tonto do juízo” (177) <vergonhoso> (envergonhado): “tá meio vergonhoso” (177) (<costumava>): “costumava dezer que a terra é cuma um filho.” (178) (<maluqueira>): “Bem possa qu’isto já seja maluqueira de velho” (178) (<comerzinho>): “Pois se é dela que vem o comerzinho que se come” (179) (<bonito>): “Aquilo era bonito de ver” (179) <terrões> (torrões): “fomos esmigalhando terrões a olho de enxada” (181) |
FFB |
o u |
<dormire> (dormir): “dormire más discansdos” (274) (<governo>): “anda o governo” (274) (<coletes>): “coletes pa se salváre” (274) <Portugále> (Portugal): “o nosso Portugále” (274) (<glutona>): “Era uma glutona” (338) <mulhére> (mulher): “uma mulhére alta” (338) |
Tabela 6. Representações literárias da vogal /u/ pré-tónica
3.2. Vogais pós-tónicas
Para Jorge Morais Barbosa (1983: 105-133), as vogais pós-acentuadas podem ocorrer em a) sílaba pós-acentuada final com duas possibilidades: em sílaba aberta ou fechada por /S/ (p. 116) e em sílaba fechada por outras consoantes. Assinala, também, b) a sílaba pós-acentuada não final com as vogais /i a e u/ (p. 130). Maria Paula Freitas Marques Silva (1994: 51-55), para as vogais pós-acentuadas, apresenta [ǝ i e a o u]. Considerando estes dados, mas tendo em conta unicamente os materiais literários em estudo, optou-se por reduzir as vogais pós-tónicas a três por não se registarem as restantes nos textos em análise. Para cada uma das três vogais, construíram-se as tabelas 7, 8 e 9 com os resultados obtidos.
A tabela 7, com a comparação dos dados para a vogal pós-tónica /ɐ/ revela concordância entre os vários escritores. Considerando os exemplos colhidos, esta vogal ocorre normalmente, como na realização padrão, não assumindo qualquer especificidade regional.
Para a vogal pós-tónica /u/, cujo exemplificação consta da tabela 8, vários timbres ocorrerão no falar madeirense, já que, nos exemplos colhidos nos textos dos autores que se cotejam, há alguma variação gráfica. Mesmo se predomina <o>, <e> é bastante frequente. Registam-se, também, <a> em <cuma> (como) e, apenas em HBG, <i>, embora esta vogal não seja recorrente na produção deste autor.
Do levantamento realizado para a vogal pós-tónica /ö/, apenas HBG apresenta outra possibilidade além de <e>. Trata-se de <i>, como se comprova na tabela 9. Contudo, esta vogal final parece ter alguma estabilidade e não apocopar, uma tendência na fala real espontânea.
Tabela 7 |
/ɐ/ |
“a” |
HBG
|
a
|
<Inda> (Ainda) e (<Festa>) [na região, a “Festa” corresponde ao Natal] “Inda não; cuma ´tamos casi na Festa” (20) (<patacas>): “Um disconto de 300 patacas !?” (34) (<pequena>): “q’ando a pequena introu no hospital, quem nos imprestou o dinheiro pa ui doutores fazer a operação ? » (153) <milhorava> (melhorava): “A nossa vida milhorava munto!” (152) <Tava> (Estava): “Tava um navoeiro çarrado!” (193) |
RJ |
a |
(<rica>): “rica menêina” (29) (<riba>) [para cima]: “nã vaia p’ra riba!” (32) (<minha>) e (<senhora>): “Eu seguêi atrás da minha senhora” (195) (<alegria>): “era d’alegria” (195) <bêsta> (besta): “Vou mandar recado pelo Antoninho, e pode sê v’êle em indo montado na bêsta...” (256) <disgraça> (desgraça): “Ah! menêina, que disgraça esta!” (309) (<descarregada>): “tá descarregada, menêina!” (312) |
EL |
a |
<Maruia> (Maria): “Ó Maruia!...” (68) <ruiba> (riba – por cima): “Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro.” (69) (<pequena>): “ao pé da fonte pequena...” (69) (<figueira>): “Vem aquei à figueira...” (69) (<penas>) e (<pardas>): “Tem penas pardas...” (70) <estepuilha> [ver supra: “maroto”, “malvado”]: “O estepuilha tem mas é qu’aprender a cantar...” (70) <Rapareiga> (Rapariga): “Ah! Rapareiga! Respondes, ó quê? (72) |
JS |
a |
(<nadinha>): “tamém me vua assantar um nadinha” (175) (<beira>) e (<setenta>): “devo andar à beira dos setenta” (175) <Inda> (Ainda), (<patacas>) e (<elas>): “Inda me dero dez patacas por elas” (177) (<filha>), (<Maria>) e (<casada>): “ tenho uma filha, qu’é Maria, casada no Brasil” (177) |
FFB |
a |
(<minha>) e (<filha>): “agora a minha filha, que vaia ali pó pé do Jardim” (339) (<horas>): “quéra horas” (339) (<chegava>) e (<porta>): “chegava à porta do beco” (339) (<rapariga>) e (<casa>): “Oh, rapariga, mas tu nam vens pra casa” (339) (<pobrezinha>): “quére pobrezinhas” (340) |
Tabela 7. Representações literárias da vogal /ɐ/ pós-tónica
Tabela 8 |
/u/ |
“a”, “i”, “o”, “e” |
HBG
|
a i o
|
<cuma> (como):“é tão pobre cuma eu” (13), “Está escuro cuma breu!” (20), “Inda não; cuma ´tamos casi na Festa” (20), “Cuma faço c’os bordados” (152) <Vami> (Vamos): “Vami dormir.” (18) <marcineiro> (marceneiro): “é o nome dum marcineiro” (28) <disconto> (desconto): “Um disconto de 300 patacas !?” (34) <digraçado> (desgraçado): “É um digraçado!” (60) <cando> (quando): “Inda eras piquena cando ele morreu.” (136) (<dinheiro>): “q’ando a pequena introu no hospital, quem nos imprestou o dinheiro pa ui doutores fazer a operação ? » (153) <navoeiro> (nevoeiro) e <carrado> (cerrado): “Tava um navoeiro çarrado!” (193) |
RJ |
o e
|
(<maridos>) e (<magros>): “Nã se quere maridos magros co’mum escalête” (37) <porfeitos> (perfeitos): “rapazes porfeitos” (37), <dimônio> (demónio): “O senhor Gastão anda sob as artes do dimônio!” (245) (<recado>): “Vou mandar recado pelo Antoninho, e pode sê v’êle em indo montado na bêsta...” (256) (<preciso>): “Era preciso mandar vir o senhor dôitor” (277) <fôgue> (fogo): “nã m’obrigue a fazer fôgue” (309) |
EL |
o |
<boizeinho> (boizinho): “Vei cá, boizeinho.” (65) (<pequeno>) e (<chiqueiro>): “Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro.” (69) (<Vamos>) e (<galo>): “Vamos ter galo...” (70) (<somenos>): “É somenos, mas já é bonuito.” (70) <Manelhuinho> (Manuelinho): “O Manelhuinho foi co Antóino ?” (72) |
JS |
a o |
<Cuma> (como): “ Cuma é?” (175) <cravalho> (carvalho): “debaixo deste cravalho” (175) <muntos> (muitos) e (<coelhos>): “vêm muntos por’i, aos coelhos.” (176) (<crianço>): “É a mãe deste crianço.” (177) (<comerzinho>): “Pois se é dela que vem o comerzinho que se come” (179) |
FFB |
e o |
<boles> (bolos): “Os boles, a minha sogra dezia-me: «as rosquilhas doces».” (35) <baxo> (baixo):“de cabeça pra baxo” (272) <gôrdos> (gordos), <cumo> (como) e <pórcos> (porcos): “tão gôrdos cumo pórcos” (273) <lence> (lenço): “co meu lence me custou?” (341) <espalho> (espelho) e (<rachado>): “o espalho tá rachado” (342) |
Tabela 8. Representações literárias da vogal /u/ pós-tónica
Tabela 9 |
/ö/ |
“e”, “i” |
HBG
|
i e |
<casi> (quase): “Inda não ; cuma ´tamos casi na Festa” (20) (<gente>): “a se lembrar da gente” (119) (<escreveres>), (<deves>), (<sempre>) e (<frente>): “Quando escreveres deves de mandar dizer que é sempre preciso um bocadinho de fazenda em frente da casa.” (119) (<ele>): “Inda eras piquena cando ele morreu.” (136) |
RJ |
e |
<escalête> (esqueletos): “maridos magros co’mum escalête” (37) <soidades> (saudades): “nã deixa soidades” (72) (<barbante>): nesta mão tenho o barbante p’ra amarrar...” (73) (<Flores>): “Flores bem fresquêinhas!” (112) <peste> [regionalismo: sinónimo de “maroto” ou “traquina” e próximo de “pestinha” num registo familiar]: “O peste do garôto safou-se!” (181), (<gente>): “a dizer à gente” (195) (<cidade>): “descerem d’arriba cá baixo à cidade” (256) |
EL |
e |
(<couves>): “Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro.” (69) (<fonte>): “ao pé da fonte pequena...” (69) <coives> (couves): “Vais agora ao poio grande das coives...” (70) |
JS |
e |
(<quente>): “Tá quente” (175) (<longe>): “É uma estalage longe!” (175) (<Cruzes>): “Cruzes! Uma digrácia!” (175) <diche> (disse): “Não atremei o que diche.” (179) (<gente>): “Amecê tamém engana a gente?” (180 |
FFB |
e |
(<quente>): “quente até tanto” (340) (<largasse>): “enquanto nam largasse” (340) <vêezes> (vezes): “duas vêezes, ó trê vêezes!” (340) <fôme> (fome): “Nam tanhe fôme” (342) |
Tabela 9. Representações literárias da vogal /ö/ pós-tónica
4. Síntese
Como ficou claro, este estudo serve-se da Literatura para poder, posteriormente, empreender investigações no campo da Linguística. Julga-se, pelo material exposto nas tabelas, que fica demonstrado o interesse que os textos literários podem ter para compreender a complexidade da interpretação da variedade madeirense, nomeadamente no que diz respeito ao vocalismo não acentuado, seja o pré-tónico, seja o pós-tónico. Não resta qualquer dúvida que as divergências entre as propostas dos cinco autores regionais comparados revelam uma variação “grafofónica” considerável para o vocalismo átono, o que se poderá traduzir numa riqueza fonética do falar madeirense a comprovar em investigações exclusivamente linguísticas. HBG nem sempre tem, contrariamente ao que se poderia esperar, a proposta mais variada, mas destaca-se dos restantes autores por dispor de representações que os outros não contemplam.
Dos dados obtidos na comparação das propostas de representação literária do vocalismo não acentuado do Madeirense, torna-se evidente que há vogais pré-tónicas e pós-tónicas que merecem um estudo fonético aprofundado por parte do linguista que se interesse pela variedade regional madeirense. Para o sistema das pré-tónicas, este cotejo de propostas literárias revela que os estudos fonéticos deverão incidir sobre os casos de /i/, /ö/ e /o/. Quanto ao das pós-tónicas, interessarão ao linguista, sobretudo, /u/ e /ö/. As pesquisas linguísticas, uma vez concretizadas, poderão ou não confirmar os dados apresentados pelos escritores. Porém, estes evidenciam pistas de trabalho. É, todavia, indispensável, primeiro, prosseguir na análise das representações gráficas existentes, essencialmente as de cariz literário, para descrever o mais possível as relações entre o registo escrito e o oral, a nível do Português falado na Região Autónoma da Madeira.
Bibliografia
Barbosa, Jorge Morais. Études de Phonologie portugaise. Évora: Universidade de Évora, 1983.
Branco, Francisco de Freitas. “Sobre Habitantes da Ilha: Apontamento Linguístico”, “Ê tenho esta ideia comeio (crónica literária)”, “Ainda nam teinha trêzianes, comecei cêde: tentativa para reprodução escrita da fala viva”. Porto Santo. registos insulares. S.l.: edição de autor, 1995.
Catach, Nina. L’ Orthographe. Paris: PUF, 1988.
Cintra, Luís Filipe Lindley. “Os Dialectos da Ilha da Madeira no Quadro Geral dos Dialectos Galego-Portugueses”, 26/12/1990, texto manuscrito, apresentado por João David Pinto Correia, no II Congresso de Cultura Madeirense, no Funchal, e transcrito, com algumas alterações, sob o título “Os Dialectos da Ilha da Madeira no Quadro dos Dialectos Galego-Portugueses” in Cultura Madeirense. Temas e problemas, José Eduardo Franco (coord.). Porto: Campo das Letras, 2008. 95-104.
Cunha, Celso e Cintra, Luís F. Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: Sá da Costa, 1995.
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Duarte, Isabel Margarida. “O Oral no Escrito: Um Processo Integrado” in Pedagogia da Escrita. Perspectivas. Fonseca, Joaquim (dir). Porto: Porto Editora, 1994. 79-106.
Emiliano, António. Fonética do Português Europeu. Descrição e Transcrição. Lisboa: Guimarães Editores, 2009.
Ferré, Pere e Boto, Sandra. Novo Romanceiro do Arquipélago da Madeira. Funchal: Empresa Municipal “Funchal 500 Anos”, 2008.
Freitas, Tiago. “Gravando e Transcrevendo o Português Falado: Um Guia Teórico e Prático” in Oliveira, Miguel, Jr. (org.) 2010. Estudos de Corpora. Da Teoria à Prática. Homenagem do ILTEC a Tiago Freitas. Lisboa: Edições Colibri e ILTEC, 2010. 15-66.
Gouveia, Horácio Bento de. “Respigos de Fonética no Linguajar da Gente – Freguesia da Ponta Delgada” in Crónicas do Norte. Câmara Municipal de São Vicente, 1994, e In Diário de Notícias do Funchal de 07-11-1960.
Gouveia, Horácio Bento de. Lágrimas Correndo Mundo. Coimbra: Coimbra Editora, 1959.
Jardim, Ricardo. Saias de Balão (na Ilha da Madeira). Funchal: Eco do Funchal, 1946.
Leal, Ernesto. O Homem que Comia Névoa. Lisboa: Europa-América, 1964.
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Rebelo, Helena. “L’Écriture du Parler de Madère: Quelques Représentations littéraires”, comunicação aprovada para o « XXVIIe Congrès international de linguistique et de philologie romanes » (CILPR), organizado pelo Laboratoire ATILF (CNRS/Université de Lorraine) / Société de linguistique romane, de 15 a 20 de Julho de 2013, em Nancy (França), e a aguardar publicação.
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Santos, Thierry Proença dos. De ilhéus a canga, de Horácio Bento de Gouveia : A narrativa e as suas (re)escritas (com uma proposta de edição crítico-genética e com uma tradução parcial do romance para francês) , volumes 1 e 2, tese de doutoramento apresentada à Universidade da Madeira e à Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3, École Doctorale 122 – Europe Latine et Amérique Latine, 2007.
Vasconcelos, José Leite de. Esquisse d’une Dialectologie portugaise, thèse pour le doctorat de l’Université de Paris, 1901, 2ªed., com aditamentos e correcções do autor, preparada por Maria Adelaide Valle Cintra. Lisboa: Centro de Estudos Filológicos, 1970.
Viana, Aniceto dos Reis Gonçalves. Essai de Phonétique et de Phonologie de la Langue portugaise d’après le Dialecte actuel de Lisbonne. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1973.
[1] Não há áreas dialectais definidas para esta variedade regional, nem Lindley Cintra (2008: 99-100), que considera haver variação interna porque defende o plural “dialectos madeirenses”, as estabeleceu. Portanto, identifica-se, aqui, a variedade dialectal no seu todo, usando-se no singular sob a designação de “Madeirense” e aplicando-se a toda a área geográfica do arquipélago.
[2] Já que, como é sabido, a ortografia não representa plenamente a dinâmica da fala, para transcrever esta, incluindo num plano dialectológico, é necessário fazer opções divergentes das ortográficas. Para as questões das relações escrita-oralidade várias obras podem ser mencionadas. Indicam-se algumas das consultadas sobre o assunto, destacando excertos que incidem sobre a temática. A primeira referência é a obra intitulada L’Orthographe (Catach: 1988). Na página 110, abordando a pedagogia da escrita e a sua relação com o registo oral, lê-se “Ce sont des travaux de ce genre (...) qui pourront le mieux aider les maîtres à pratiquer un enseignement réellement contrastif entre l’oral et l’écrit, avec une connaissance exactes de leurs ressemblances et de leurs différences.”. A segunda é um artigo de Isabel Margarida Duarte (1994). Também num plano pedagógico, na página 91, é explicada a diferença entre a transcrição escrita e a conversa oral que a origina, dando lugar ao “diálogo escrito” que se reencontra na Literatura: “Poderão ver como o diálogo escrito, mormente o de ficção, é submetido a certas normas de lisibilidade, eliminando as reformulações, os elementos fáticos e a maior parte das características que apontámos para a conversa real, oral, ou seja, como ele é, no fim de contas, calculado, artificial e construído, elaborado de forma a transmitir, através dos artifícios de retórica, a expressividade do oral espontâneo.”. A terceira indicação bibliográfica refere-se especificamente à Madeira. Para a transcrição de romances da tradição oral (vertente da fala espontânea), na Nota Introdutória do Novo Romanceiro do Arquipélago da Madeira (Ferré e Boto: 2008, 18), aparece sumariamente descrito o método de transcrição seguido: “optámos por não reproduzir, na fixação, quaisquer traços fonéticos típicos da região madeirense, por não se enquadrar de todo nos objectivos desta edição o estudo dialectológico; mantivemos, não obstante, a configuração morfológica que o informante imprime aos vocábulos, bem como algumas características fonéticas da oralidade, pertinentes do ponto de vista da métrica poética, como sejam: / 1. a inserção / queda de vogais no início ou no meio dos vocábulos (...), / 2. as vogais abertas por motivos de prosódia, que marcamos com um acento grave (...), / 3. resolvemos normalmente em crases os encontros vocálicos entre sons representados pelo mesmo grafema em final de palavra e início de palavra seguinte (...).
[3] É a história de João de Freitas que, tendo uma origem humilde, nasceu no Estreito de Câmara de Lobos. Este jovem tornou-se distribuidor de bordado na Costa Oeste da ilha da Madeira. Sonhava ser um rico industrial de bordado, o que veio a conseguir. Maria de Jesus, Maria Clara e Maria da Luz, entre outras jovens, são bordadeiras no Funchal. Num dado momento, vão trabalhar na mesma empresa, mas levam vidas diferentes. Cada um (ele e elas) segue o seu percurso no mundo da indústria e do comércio do bordado da Madeira, nos anos 20 e 30 do século XX, o tema do livro.
[4] Apresentamos aqui a listagem, indicando as páginas onde se desenvolvem: 1) Diálogo entre Maria da Luz e Maria de Jesus (LCM 13), 2) Diálogo entre João (do Estreito) de Freitas da Silva e o tio (LCM 17), 3) Diálogo entre Maria de Jesus e a mãe (LCM 19-20), 4) Diálogo entre a mãe de Maria de Jesus (Luísa) e o alfaiate Antoniquinho (LCM 20), 5) Diálogo entre Maria de Jesus e a mãe (LCM 21-22, 23-24), 6) Diálogo entre João de Freitas e a tia (LCM 25), 7) Diálogo entre João de Freitas e um pescador chamado Japão (LCM 28), 8) Diálogo entre João de Freitas e o Senhor Góis (LCM 28-29), 9) Diálogo entre João de Freitas e as bordadeiras (LCM 29-30), 10) Diálogo entre João de Freitas e um “vendeiro” (LCM 31), 11) Diálogo entre João de Freitas e as bordadeiras (LCM 33-37), 12) Diálogo entre João de Freitas e Japão (LCM 38-39), 13) Diálogo entre João de Freitas e José da Passada (LCM 39-40), 14) Diálogo aquando da sessão da lanterna mágica (as bordadeiras falam umas com as outras) (LCM 41), 15) Diálogo entre João de Freitas um empregado da casa Farraba (LCM 42), 16) Diálogo entre Água-vai e as bordadeiras (LCM 42-43), 17) Diálogo entre João de Freitas e Água-vai (LCM 44-46), mais a mulher do Senhor Andrade, Joaquina, e, por fim, o Senhor Andrade, 18) Diálogo entre João de Freitas e Água-vai (LCM 48-49) com a Senhora Joaquina e o Senhor Andrade (na Encumeada a caminho de São Vicente – o casal é do Rosário), 19) Diálogo entre Julinho e a mãe dele (LCM 52), 20) Diálogo das coscuvilheiras: Ester de Abreu e Josefa (LCM 52-53), 21) Diálogo entre Julinho e Maria da Luz (LCM 54), 22) Diálogo entre as bordadeiras e os chefes da casa de bordados (LCM 57), incluindo Germana, 23) Diálogo entre Glória e Augusta (LCM 60), 24) Diálogo entre Maria da Luz e Julinho (LCM 60-62), 25) Breve diálogo entre Maria de Jesus e a mãe (LCM 66), 26) Diálogo entre Maria de Jesus e a vizinha Inácia (LCM 70-71), 27) Diálogo entre Maria de Jesus e a mãe, com Manuel (o irmão de Maria de Jesus) (LCM 71-74), 28) Diálogo entre João de Freitas e Água-vai (LCM 76-77), 30) Diálogo entre Ricardo Gomes e João de Freitas (LCM 78), 31) Diálogo entre um professor aposentado e João de Freitas (LCM 81-82), 32) Diálogo entre João de Freitas e uma senhora idosa que vivia com a sobrinha (LCM 83-91), 33) Diálogo entre João de Freitas e Simão, que aluga quartos na Calheta (LCM 91-93), 34) Diálogo entre bordadeiras da Calheta (LCM 93), 35) Diálogo entre João de Freitas e a « velhota da pensão » (LCM 94), 36) Diálogo entre João de Freitas e Simão (LCM 94-96), 37) Diálogo entre João de Freitas e as bordadeiras da Calheta (LCM 96-97), 38) Diálogo entre Maria Clara e Maria da Luz (LCM 100-101), com o namorado de Maria Clara (LCM 101) – o diálogo continua p. 103 entre Maria Clara e Maria da Luz, com a intervenção pontual da mãe desta (LCM 103-104), 39) Diálogo habitual entre as irmãs de Maria Clara (LCM 105), 40) Diálogo entre Maria Clara, a mãe e o pai (LCM 105-106), 41) Diálogo entre Maria da Luz e Julinho (LCM 106), 42) Diálogo entre Maria da Luz e Maria Clara (LCM 106-107), 43) “Diálogo” entre a Senhora Quitéria e as bordadeiras, e umas com as outras na ausência da Senhora Quitéria que foi falar com o patrão (LCM 108-109, 110), 44) Diálogo entre as bordadeiras (LCM 110), 45) Diálogo entre Maria da Luz e Julinho, com intervenção de Maria Clara (LCM 111-112), 46) Diálogo entre Maria de Jesus e Maria Clara (LCM 114-115), 47) Diálogo entre Maria de Jesus, a mãe e o irmão (LCM 116-117, 119-120), 48) Diálogo entre João de Freitas, a mãe, o pai e a prima Ângela (LCM 125-127), 49) Diálogo entre João de Freitas, as primas e outros jovens (LCM 128-129), 50) Diálogo entre Filomena, engomadeira, e homem que quer ir ver o Marítimo, com intervenção de Maria de Jesus (LCM 132-133), 51) Diálogo entre a gerente da loja de bordados e Maria de Jesus (LCM 133), 52) Diálogo entre Maria de Jesus e a mãe, com intervenção da vizinha Júlia (LCM 134-137), 53) Diálogo entre as empregadas do Senhor Samara (LCM 140-141), 54) Diálogo entre Susana, Leonel e outros, na festa de S. João (LCM 141-), 55) Diálogo entre Maria da Luz e Maria Clara, com a intervenção de Carminho (LCM 142-144), 56) Diálogo entre Maria da Luz e Jacinto, com intervenção do « candeeiro » (guia do carro de bois) (LCM 144), 57) Diálogo entre Maria da Luz e a mãe (LCM 145), 58) Diálogo entre o Senhor Jaraba e João de Freitas (LCM 147-148), 59) Diálogo entre João de Freitas e Francisco Elias, “bomboteiro” (LCM 151), interrompido pelo diálogo de Elias com a mulher, mas recomeça na página 153, 60) Diálogo entre Elias e a mulher (LCM 152-153), 61) Diálogo entre João de Freitas e Abel (LCM 154-156), interrompido por uma chamada telegónica de Silva e por um vendedor de loterias, 62) Diálogo entre Maria de Jesus e Manulinho (LCM 158-161), com intervenções da mãe de Maria de Jesus e do irmão, o Manel, 63) Diálogo entre Manulinho, o pai, Maria de Jesus e a mãe dela (LCM 162-164), com intervenção da vizinha Berta, 64) Diálogo entre eles todos, mas na festa de São Pedro, na Ribeira Brava, e, depois, de regresso ao Funchal (LCM 165-167), 65) Diálogo entre a mulher de Elias e Maria da Luz (LCM 172), 66) Diálogo entre Maria da Luz e a madrinha, D. Guilhermina, (LCM 175-176), 67) Diálogo entre o professor Lopes e D. Guilhermina, com Maria da Luz, na Camacha (LCM 176), 68) Diálogo entre Maria Clara e Maria da Luz (LCM 178-179), 69) Diálogo entre o professor Lopes e D. Guilhermina, com Maria da Luz (LCM 179), 70) Diálogo entre Maria da Luz e Afonso (mestre numa serralharia) (LCM 180-181), 71) Diálogo entre Maria da Luz e Maria Clara (LCM 181), 72) Diálogo entre Afonso e um cliente (LCM 182), 73) Diálogo entre Afonso e Maria da Luz (LCM 183-184), 74) Um segundo diálogo entre Afonso e Maria da Luz (LCM 184), 75) Um terceiro diálogo entre Afonso e Maria da Luz (LCM 184), 76) Diálogo entre João de Freitas e uma viloa (LCM 186), 77) Diálogo entre João de Freitas, a mãe, o pai e o Senhor Gregório Gonçalves, um vizinho, que sabe ler, mas que não compreende tudo do que lê (LCM 187-190), 78) Diálogo entre diversos curiosos que apreciam o automóvel de João de Freitas (LCM 191), 79) Diálogo entre os pais de João de Freitas, este e as primas (LCM 193), 80) Diálogo entre a mãe de Ângela e la mãe de João de Freitas (LCM 194), 81) “Diálogo” entre João de Freitas e a mãe, a quem se dirige, mas que não responde (LCM 194), 82) Diálogo entre João de Freitas e o empregado da “venda” (LCM 195), 83) Diálogo entre João de Freitas e a família (LCM 196-197), 84) Diálogo entre o Senhor José da Passada, João de Freitas e a família deste (LCM 197-199), depois o diálogo continua com José da Passada, 85) Diálogo entre João de Freitas e Ângela, com a mãe dela (LCM 200), 86) Diálogo entre João de Freitas e o Dr. Faria (LCM 202-203).
[5] Cf. Santos (2007: 296-298):“Na economia global do romance, os diálogos suspendem o fluxo narrativo, pausam o lirismo do escritor, confrontam o leitor com o mundo quotidiano e recuperam a linguagem de todos os dias. A presença dos diálogos consagra, assim, o discurso directo ao actualizar os dizeres das personagens, faz coincidir o tempo da história com o da narração e potencia a realização narrativa com as suas consequências dramáticas. Os diálogos são, no macrotexto, o lugar onde as personagens interagem verbalmente, em determinado ambiente social e geográfico. (…) Todavia, não se deve perder de vista o carácter artificial desses diálogos, manipulados com uma preocupação estética e argumentativa. Por isso, o diálogo ficcional que Horácio Bento engendra elimina as escórias que parasitam a conversação banal (enunciados inacabados, hesitações, lapsos, reformulações, falhas no entendimento do que é dito…) e surge bastante adoçada relativamente à efectiva produção da fala na vida quotidiana. Veja-se, por exemplo, a discrepância fonética no diálogo entre o colono com sotaque e o senhorio, seu conterrâneo, sem sotaque, que sempre viveu na mesma aldeia.
Na verdade, por detrás do diálogo, existe um autor que ordenou as sequências dialogadas e organizou o discurso das personagens em função de um objectivo supremo, o de comunicar com o leitor. (…)
O romance tende, por isso, a reflectir conversas das mais correntes e bem recheadas, aquilo a que costuma designar-se como «narrativas de experiência » (…). Mas os diálogos são, acima de tudo, a expressão de uma experiência, de um sentir e de uma condição que registam as legítimas aspirações, reclamações e denúncias de um grupo social, os colonos, que não tinham até então direito à palavra, nem eram tidos nem achados pelas instâncias que tomavam as decisões com repercussões no seu dia-a-dia (…).”
[6] Em termos pessoais, foi curioso verificar que o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea representa, na transcrição fonética, a vogal inicial de “esmigalhar” como uma vogal central tradicionalmente considerada como semifechada. Esta não é a realização que se conhece, visto articular-se aí uma vogal anterior fechada. De qualquer forma, em termos de pronúncia do Português Padrão, há divergências (Emiliano: 2009) e nem sempre é evidente identificar o modelo a seguir.
[7] Veja-se a seguinte citação: “Sem pretensões de fazer estudo filosófico mas apenas com o propósito de registar factos fonéticos que obedecem à lei do menor esforço, isto é, à tendência geral do homem em expressar-se da maneira mais simples e mais breve, e económica no dispêndio de energia fisiológica, respigámos exemplos correntios do falar da gente nortista de nossa ilha, o aborígene da Ponta Delgada.(...) Pelo que possui muito interesse linguístico o diálogo surpreendido entre personagens rurais, transplantado depois para o romance ou novela. (...) falsear-se-ia uma faceta vivíssima do idioma se, em vez da fala natural do povo rústico, o escritor a acepilhasse e a escrevesse com correcção da pronúncia peculiar ao habitante da cidade.
Depois que a estrada (...) se tornou o irradiante veículo da civilização da cidade nas freguesias do Norte, a gente da Ponta Delgada, com excepção do planalto das Lombadas começou a limar a linguagem que foi perdendo o seu pitoresco nas formas expressionais. (...)
Exemplifiquemos, pois, aspectos fonéticos do falar que ainda hoje tem força de lei.
(...)
E aqui ficam alguns respigos da fonética, da orientação que recebemos do nosso saudoso professor de Filologia, na Faculdade de Letras de Lisboa, Doutor João da Silva Correia.”
[8] Designam-se estas intervenções como “fala solta”. Foram as seguintes as recolhidas ao longo do romance: 1) Falta solta de um rapaz, mensageiro de António Balanco, para João de Freitas (LCM 32), 2) Falas soltas da Senhora Quitéria, encarregada, dirigindo-se à Menina Teresa e à Susana (LCM56), 3) Fala solta do pai de Germana para o Vigário, padrinho dela (LCM 57), 4) Fala solta de um caixeiro com “galanteios atrevidos” a Maria de Jesus (LCM 66) e de “um senhor observador da cena”, 5) Fala solta de Helena (LCM 73), 6) Fala solta da idosa da Calheta que reproduz o discurso do padre (LCM 85), 7) Fala solta da Senhora Quitéria (destinada à Menina Clara que chegou alguns minutos atrasada ao trabalho (LCM), 8) Fala solta vinda da hospedaria, com palavrões (LCM 178).
[9] Ver, por exemplo, Rebelo (2002, 2005-2008).
ANEXOS
Exemplos da relação registo oral – registo escrito na transcrição “grafofonética” em Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia.
II – Diálogo da página 70 de LCM, onde ocorrem exemplos da transcrição escrita da pronúncia madeirense (cf., por exemplo, “daquelei doenças” ou “inganua”). Notem-se, também, as duas grafias de “enfermeiro”.
Que valores tem a Língua Portuguesa?
Um estudo com universitários portugueses, brasileiros e cabo-verdianos[1]
Maria Helena Ançã
Universidade de Aveiro
(Portugal)
1.Introdução
Nas sociedades contemporâneas, marcadamente competitivas, as línguas vão adquirindo novas dimensões e valores, sendo percecionadas como bens de consumo que importa promover, dado que, como qualquer outro produto, são sujeitas a avaliação.
Em termos de ensino e, mais exatamente, na formação inicial de professores de língua(s), consideramos que uma abordagem mais ampla e ‘contemporânea’ da língua deva ser desenvolvida. Nessa abordagem seriam delineadas outras vertentes, para além da sociocultural e histórica, mais de caráter pragmático, como a de comunicação internacional, por exemplo, onde confluísse o poder da língua, adveniente, em larga medida, do seu potencial económico.
A promoção e consciencialização destas vertentes parece-nos fundamental na formação inicial de professores de Português, assim como o desenvolvimento de saberes sobre as línguas e sobre a LP no contexto global, ou seja, da ‘cultura linguística, no entendimento de Candelier (2011).
Neste quadro, é objetivo deste texto traçar a/uma (possível) ‘cultura linguística’ de 36 sujeitos no final da sua formação inicial, em três países, por forma a analisar o lugar atribuído à LP no mundo, assim como os valores desta por eles percecionados.
2. O valor das línguas
O interesse pelo valor das línguas e pelo seu poder remonta à segunda metade do século passado, no quadro da economia da língua. Neste âmbito, Grin e Vaillancourt (1997) retomam este tipo de estudos, considerando que os conhecimentos linguísticos são uma forma de capital humano, cuja análise pode ser realizada do ponto de vista económico. Entre outros aspetos, apontam as várias conceções da língua como atributo económico, nas diferentes tradições. Destacamos neste espaço a tradição norte-americana: sendo a língua um bem ‘supercoletivo’, quantos mais indivíduos a falarem, mais aumenta o valor dessa língua, enquanto troca, – efeito de rede.
Outro aspeto importante tratado pelos mesmos autores é o caso dos bilingues (“une condition nécessaire pour être en mesure de choisir entre deux langues”, 1997:70) e da aprendizagem de uma língua segunda (L2) ou estrangeira (LE), com implicações nas políticas de línguas. O interesse dos economistas por estas situações linguísticas é explicado, por um lado, pelo facto de estes casos exigirem escolhas pessoais/profissionais: que línguas aprender – porquê e para quê e em que contexto? (No caso de uma língua materna/LM não há propriamente escolhas a fazer, trata-se de uma língua herdada dos pais/progenitores/família). Por outro lado, enfatizam “l’avantage du bilinguisme, c’est-à-dire la rentabilité financière d’une deuxième langue comme élément du capital humain d’un individu” (1997:71). É ainda através dos sujeitos bilingues/multilingues que as línguas se relacionam.
Também De Swaan (2001, 2011), no âmbito da sociologia, analisa estes dois aspetos que concorrem para o potencial comunicativo de uma língua: i) quanto maior for o número de falantes de uma língua dada, mais atrativa ela se torna, – qualidade da “prevalência”; ii) quantos mais falantes dessa língua souberem outras línguas, ou seja, quanto mais multilingues houver dentro de um grupo de falantes da mesma língua, mais essa língua se torna central, – qualidade de “centralidade”. A combinação destas duas qualidades assegura, de certo modo, a internacionalização de uma língua (Castro, 2009[2]), ou, indo mais longe, o potencial comunicativo de uma língua é calculado através do Q-value: fórmula aritmética que combina a prevalência duma língua com a sua centralidade (De Swaan, 2001, 2011).
Quer De Swaan (2001) quer Calvet[3] (2002) propõem um ‘modelo gravitacional’ das línguas[4], no qual o sistema linguístico é composto por um conjunto de “constelações” que constituem uma “galáxia”, apoiando-se, para esta descrição Calvet na ecolinguística (entendida no seu sentido literal). Ora, este sistema apresenta vários níveis de análise, sendo a organização mundial das relações entre as línguas o nível superior. As línguas estão ligadas pelos bilingues que as falam e o sistema destes permite traçar as relações em termos de gravitação. Em torno de uma língua hipercentral (o inglês), gravita uma dezena de línguas supercentrais (francês, espanhol, árabe, chinês, português…). Por sua vez, à volta destas, gravitam cem ou duzentas línguas centrais, que têm quatro ou cinco mil línguas periféricas em seu redor.
Esta abordagem, aplicada ao modelo de aprendizagem de línguas em contexto internacional, põe em foco uma dinâmica de convergência para a língua central, supercentral e hipercentral, verificando-se em cada um dos níveis do sistema duas tendências: o bilinguismo “horizontal” (aquisição de uma língua do mesmo nível) e bilinguismo “vertical” (aquisição de uma língua de nível superior) (Calvet, 2002).
2.1. Línguas e LP no contexto mundial
Existem cerca de 7000 línguas vivas no mundo[5], todas elas com a sua importância, com as suas características e particularidades. Mas, quando pensamos em línguas ‘poderosas’, ocorrem-nos aquelas com número mais elevado de falantes, como o chinês, ou o inglês (e ainda por esta ser língua de comunicação internacional).
Tendo por base Lewis, Simons e Fennig (2013), as línguas mais faladas, em termos de LM, são: em primeiro lugar, o mandarim/chinês (955 milhões), depois o espanhol (405 milhões) e em terceiro, o inglês (359 milhões), surgindo a LP em sexto lugar[6]. Mas será unicamente o critério demográfico determinante na avaliação de uma língua?
Efetivamente, para esta avaliação, Calvet e Calvet (2012) consideram necessário fazer um cálculo rigoroso a partir de múltiplos parâmetros. Para além do número de locutores, devem ser contemplados ainda outros parâmetros: entropia (modo como os falantes de uma língua se encontram repartidos pelas regiões que a falam), taxa de veicularidade (relação entre o número de locutores que a utilizam como L2 e o total de locutores), número de países onde é língua oficial, número de traduções para a língua fonte e para a língua alvo, número de prémios literários, número de artigos na Wikipédia, índice de desenvolvimento humano, taxa de fecundidade, índice de penetração na internet[7].
Neste conformidade, o resultado da organização de Calvet e Calvet (2012) não é coincidente com o dos autores acima mencionados, estando, nesta lista, o inglês à cabeça, seguido de: espanhol, francês, alemão, russo, japonês, neerlandês, italiano, português (9º), mandarim.
Um estudo desta natureza foi feito para o português europeu, a pedido do então Instituo Camões: Potencial Económico da Língua Portuguesa. Trata-se de um estudo pioneiro, realizado pelo ISCTE/IUL, com coordenação de Reto (2012).
Atualmente, a LP é falada por 250 milhões de locutores, de LM e L2, ocupando 10,8 milhões de quilómetros quadrados da superfície terrestre, ou seja, 3,7 da população mundial, com 4% da riqueza total (Reto, 2012). O conjunto destes indicadores constitui, obviamente, uma situação extremamente favorável para a promoção e difusão da língua, com vista à consolidação da sua internacionalização.
Como sabemos, o reconhecimento internacional da LP não é o desejado, não obstante as suas potencialidades a nível global. É necessário que o poder político com a sociedade civil continuem a desenvolver mais esforços e ações nesse sentido. As duas Conferências Internacionais sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, organizadas pela Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa, Instituto Internacional de Língua Portuguesa e Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, são a prova disso.
3. O estudo exploratório
O presente estudo é de natureza qualitativa, – pretende descrever para compreender (Bogdan e Biklen, 1994) uma realidade, uma situação –, não sendo objetivo dos estudos qualitativos em educação apresentar amostras representativas nem obter generalizações, mas tão-somente apontar tendências.
O estudo visa conhecer a ‘cultura linguística’ de alguns finalistas universitários sobre a LP no contexto mundial e identificar os valores a ela atribuídos. Foram apresentados, no âmbito de um inquérito por questionário, vários tópicos, uns de caráter mais objetivo (questões 1-3), outros mais subjetivo (questões 4-5).Visualizemos as questões analisadas na tabela seguinte:
1 |
As cinco línguas mais faladas no mundo |
2 |
Número aproximado de falantes de Português Língua Materna |
3 |
Países que têm a LP como oficial |
4 |
Valores da LP |
5 |
Para mim, a LP é… |
Tabela 1. Questões analisadas no inquérito
O questionário foi passado numa universidade no Centro/Norte de Portugal, numa universidade do Norte e interior do Brasil e numa universidade cabo-verdiana, no ano letivo 2012/2013. A escolha por estas universidades prende-se com a origem dos docentes responsáveis pela passagem dos questionários e participantes no projeto onde este estudo se inclui[8].
O programa NVIVO, versão 10, esteve na base da organização e tratamento da maioria dos dados.
O grupo da universidade portuguesa é composto por 14 finalistas de um Mestrado profissionalizante, realizando, na altura, o estágio pedagógico[9]. Só uma dessas mestrandas é venezuelana, as restantes são portuguesas, das zonas Centro e Norte do país, tendo a primeira como LM o castelhano e as restantes a LP. A maioria (71,4%) insere-se na faixa etária dos 20-25 anos, havendo, ainda, a considerar a faixa dos 26-35 (21,4%)[10].
O grupo brasileiro, natural da zona onde se localiza a universidade, tem 12 estudantes em final da Licenciatura (após a conclusão da graduação estes jovens terão acesso ao ensino da LP). Há igualmente uma predominância do sexo feminino, existindo só um estudante do sexo masculino. Todos consideram o PLM, assinalando uma aluna, para além da LP, também o espanhol como sua LM. A idade deste grupo varia também dos 20 aos 35 anos, concentrando-se a maioria (58,3%) na faixa dos 20-25 anos.
O grupo cabo-verdiano é constituído por 14 estudantes finalistas de Licenciatura e, como o grupo português, realizando o estágio pedagógico. Só há dois indivíduos (14,3%) do sexo masculino. A faixa etária mais incidente é aquela que se situa entre os 22 e os 27 anos (57,1%), registando-se também estudantes dos 30 aos 33 anos (28,6%) e ainda dois na faixa dos quarenta, de 41 e 44 anos (14,3%). É neste grupo que o leque de idades é mais alargado, provavelmente, porque nem todos tiveram acesso ao ensino superior, logo após o ensino secundário. Em termos linguísticos todos apontam a língua cabo-verdiana/crioulo (cabo-verdiano) como LM[11].
Debruçando-nos, agora, sobre as respostas referentes às cinco línguas mais faladas no mundo (questão 1), verificamos que nem todos os respondentes assinalaram a(s) última(s) opções, por desconhecimento.
Em primeira posição, encontramos duas línguas destacadas: o inglês e o chinês/mandarim (Tabela 2). Para o grupo português, esta escolha é justificada com valores bastante próximos em ambas as línguas: chinês/mandarim – 50% / inglês – 42,9%; para os brasileiros, o inglês surge com 58,3%, estando o chinês/mandarim muito distante deste último valor (16,7%); no caso dos cabo-verdianos, o inglês (para 42,9% dos sujeitos) também representa um peso mais acentuado do que o chinês (28,6%).
Com efeito, o inglês é entendido por todos como uma língua ‘franca’, de comunicação internacional, com um peso considerável nas ‘indústrias da língua’[12]. No entanto, o chinês, embora tenha maior relevo junto das portuguesas (maior ainda do que o inglês), é encarado na sua extensão demográfica e no seu poder económico, tornando-se, atualmente, uma língua atrativa para a aprendizagem, como é o caso da oferta da língua chinesa em Portugal em contextos formais e não formais. A dimensão destas duas línguas é confirmada por Lewis, Simons e Fennig (2013), com a primeira posição para o chinês (nas suas 13 variedades) e a terceira para o inglês, como já referido.
Grupo português |
Grupo brasileiro |
Grupo cabo-verdiano |
|
1ºlugar |
Chinês (50%) Inglês (42,9%) |
Inglês (58,3%) Chinês (16,7%) |
Inglês (42,9%) Chinês (28,6%) |
2º lugar |
Inglês (50%) |
Espanhol (50%) Italiano (8,3%) |
Chinês (35,7%) Inglês (28,6%) Wolof (7,1%) |
3º lugar |
Espanhol (28,6%) Francês/Alemão (21,4%) |
Francês (33,3%) Italiano (25%) |
LP (35,7%) Espanhol/Francês/Árabe (14,3%) |
4º lugar |
Francês (28,6%) LP/espanhol (21,4%) |
Espanhol (33,3%) Francês (25%) Italiano (8,3%) |
Espanhol/Francês (21,4%) |
5º lugar |
LP (35,7%) Árabe (7,1%) |
LP (50%) Italiano/Inglês (16,7%) |
LP (42,9%) Árabe/Espanhol/Crioulos (7,1%) |
Tabela 2. As cinco línguas mais faladas no mundo segundo os sujeitos deste estudo
Como segunda língua mais falada, aparece para o grupo português novamente o inglês (50% das respostas), – talvez para as estudantes que não o consideraram na primeira posição –, enquanto metade dos brasileiros entende que é o espanhol a segunda língua, o que, de facto, corresponde ao atual panorama linguístico, como já mencionado, mantendo os estudantes cabo-verdianos ainda o confronto entre o chinês (35,7%) e o inglês (28,6%). Curiosamente um aluno deste grupo assinala o wolof como segunda língua, possivelmente pelo contacto frequente de falantes desta língua quer através da emigração cabo-verdiana para o Senegal, quer, nas últimas décadas, através dos imigrantes senegaleses, ou outros africanos, falantes de wolof, em Cabo Verde [13].
A importância do espanhol começa a ser notória a partir da segunda posição, inicialmente pelo grupo brasileiro e, a seguir, pelo português. O fator demográfico desta língua impõe-se e os estudantes são sensíveis ao mundo hispânico, através dos contactos e da proximidade geográfica e cultural, respetivamente o primeiro grupo com os países de língua espanhola na América Latina, e o segundo, sobretudo, com Espanha, mas, também, com alguns países da América Central, nomeadamente com a Venezuela, no quadro das migrações[14]. Por outro lado, a oferta do espanhol nos sistemas de ensino formal e não formal, em vários países, incluindo Portugal e Brasil, tem sido intensificada, havendo, já em 2007, 14 milhões de estudantes de espanhol como LE no mundo, o que faz com que o espanhol seja a segunda LE a ser aprendida, a seguir ao inglês (Troyano e Asencio, 2007).
Como terceira língua, surge o francês nos três grupos, embora com destaques diferentes, sendo o brasileiro aquele que reforça esta posição (33,3%), seguido do português e, em final, do cabo-verdiano. Nesta terceira posição surgem ainda outras línguas, como o espanhol (28,6%) para as portuguesas e a LP (35,7%) para os cabo-verdianos e ainda o italiano (25%) para os estudantes brasileiros.
É notório que, para o grupo brasileiro, o italiano seja referenciado do segundo ao quinto lugar[15], embora só com um registo (8,3%) nos segundo e quarto lugares, enquanto para as mestrandas portuguesas, esta língua nunca seja referenciada. O facto de haver uma extensa comunidade de origem italiana no Brasil, porventura uma das maiores comunidades italianas fora de Itália, confere esta dimensão global à língua italiana. O Brasil, pela sua extensão, funcionará, para estes jovens, não tanto como um país, mas como um quase continente, a partir do qual percecionam o mundo.
O francês[16] e o espanhol aparecem de novo, em quarta posição para os três grupos, em percentagens próximas mas pouco elevadas, em ambas as línguas, tendo os universitários brasileiros destacado o espanhol (33,3%) e as portuguesas o francês (28,6%), enquanto os cabo-verdianos apostaram nos mesmos valores para as duas línguas (21,4%).
A aprendizagem do francês não terá tocado esta faixa etária, no seu percurso escolar. O mesmo não poderá ser dito para as gerações anteriores, escolarizadas em Portugal ou Cabo Verde (no tempo colonial), que tiveram o francês como primeira LE. O esplendor desta língua fazia, então, sentir-se na Europa, em termos literários, culturais e artísticos[17].
Na quinta língua mais falada no mundo, encontramos citada a LP pelos três grupos, com percentagens diferentes: com uma percentagem mais elevada (50%) nos estudantes brasileiros, cujo peso demográfico se expressa por este valor, seguida dos cabo-verdianos e, por fim, das mestrandas portuguesas. Estas últimas consideram ainda, em quinto lugar, o árabe, com 7,1%[18].Ainda nesta posição, os brasileiros ressaltam o inglês e o italiano, com a mesma percentagem (14,3%), considerando os cabo-verdianos, nesta quinta posição, ainda o árabe, o espanhol e os crioulos[19] (7,1%). Relativamente à escolha da LP neste quinto lugar mundial, ela aproxima-se das posições difundidas pela comunicação social (Guerreiro e Junior, 2011).
Quanto à questão 2 (Gráfico1): o número de falantes de PLM, as formandas de Portugal (PT) não estão totalmente seguras da resposta, – nem tão pouco estarão os brasileiros, nem os cabo-verdianos –, mas metade das primeiras opta pelo valor mais próximo (230 milhões). As restantes respostas incidem sobre ‘1 bilião’, ‘140 milhões’ (14,3%), havendo uma resposta reportando-se a ‘10 milhões’, – provavelmente porque só foi considerado Portugal, esquecendo o Brasil, com perto de 190 milhões de falantes nativos (Guerreiro e Junior, 2011).
Gráfico 1. Número aproximado de falantes de PLM
O grupo brasileiro (B) incide nos 140 milhões/230 milhões, com uma percentagem de 33,3%, e ainda, 1 bilião (16,7%). Quanto aos cabo-verdianos (CV), as primeiras respostas vão para 10 milhões (28,6%), 1 bilião/230 milhões (21,4%) e, por fim, 140 milhões. Para os brasileiros, as respostas tendem a centrar-se na dimensão demográfica do próprio país, fechando-se, mais uma vez, sobre ‘este continente afetivo’, e ignorando o restante cenário lusófono de PLM, enquanto os cabo-verdianos se centram essencialmente nos falantes do português europeu, não dando atenção, neste tópico, ao Brasil e a outros falantes de LM noutras geografias. Estranha-se, contudo, este desconhecimento, uma vez que se trata de futuros professores ou professores estagiários (Ançã, 2014).
Para a terceira questão: países com português como língua oficial, as respostas dos três grupos podem ser visualizadas no Gráfico 2:
Gráfico 2. Países que têm a LP como língua oficial
Na leitura destes resultados, é necessário distinguir três conjuntos de respostas. O primeiro comporta os valores mais homogéneos entre os grupos e reportam-se ao Brasil, Portugal e Angola. O Brasil é reconhecido por todos, com percentagens muito elevadas, – só os resultados dos respondentes de CV não chegam aos 100%; de seguida, Portugal, com valores na ordem dos 80% (ligeiramente menos para as estudantes portuguesas); e Angola que representa um peso elevado, sobretudo, para os formandos cabo-verdianos (93%). Portugal e Brasil são os países onde tradicionalmente a grande maioria tem o Português como LM e os primeiros que ocorrerão como exemplificação de países de língua oficial portuguesa; de seguida, Angola, cuja presença neste conjunto terá outras motivações, porventura os contactos advindo de uma cooperação educacional, mas também económica.
O segundo conjunto reporta-se a resultados referentes a dois países, Moçambique e Cabo Verde, com percentagens desequilibradas: Moçambique com maior peso junto dos cabo-verdianos (93%, o mesmo valor atribuído a Angola por este grupo, como vimos), seguindo-se o português (64,3%) e, por último, o grupo brasileiro que confere a Moçambique só algum peso (25%). Cabo Verde surge a 100% pelos próprios cabo-verdianos, a 57,1% pelas formandas portuguesas, e numa escala mais reduzida, pelos brasileiros (16,7%). Embora haja uma cooperação forte entre Cabo Verde e Brasil, a nível da educação, na zona onde se desenvolveu este estudo, o conhecimento deste país não é elevado.
De notar que alguns inquiridos, portugueses e brasileiros, não sentiram necessidade de referir os seus países como tendo o português como língua oficial, porque, a nosso ver, lhes terá parecido uma evidência. Este facto reforça a nossa ideia do seu fechamento sobre si, sem grandes ‘pontes’ para o exterior lusófono.
Num terceiro conjunto, encontramos os restantes países cujo conhecimento não é partilhado por todos, exemplo: a Guiné-Bissau (77%), sobejamente próximo dos cabo-verdianos, com uma história comum, no âmbito da luta de libertação (PAIGCV[20]). Mais de metade das respondentes portuguesas assinala a Guiné-Bissau, como país de língua oficial portuguesa. O seu reconhecimento advém, também, dos contactos frequentes com guineenses imigrantes em Portugal e, em particular, da convivência destas com os colegas guineenses, da mesma universidade. Contudo, os brasileiros não referem nem este país, nem São Tomé e Príncipe (STP) nem ainda Timor Leste (TL). Os cabo-verdianos demonstram um razoável conhecimento de todos os países de LP em África (ver em especial a percentagem relativa a STP), assim como na Ásia: TL e ainda a Região Administrativa Especial de Macau, – houve igualmente dois registos do grupo português relativamente a Macau. São os cabo-verdianos, aliás, quem demonstra maior conhecimento dos países que falam Português, e foi, com efeito, só este grupo que não apresentou respostas ‘fora do contexto’ (Ançã, 2014).
Revisitando o estudo de Reto (coord.) (2012), a propósito desta mesma questão colocada a universitários, em leitorados de português do então Instituto Camões: as percentagens situavam-se na ordem dos 70-80% para o Brasil, Angola e Moçambique, tendo os restantes países, de dimensão menor, ficado muito aquém do esperado. “Conclui-se que a aprendizagem da língua portuguesa só até certo ponto é acompanhada da aprendizagem da respetiva geografia” (Reto, 2012:165-166). Esta abertura às geografias da LP parece-nos fundamental, já que a maioria destes estudantes perceciona a LP a partir do ponto onde vive, sem uma visão das (outras) diferentes variedades geográficas.
Na questão seguinte, Valores da LP (Tabela 1), solicitava-se aos estudantes que, de entre um número de valores assinalados, escolhessem os mais adequadas (Gráfico 3):
Gráfico 3. Valores da LP
Para todos, o valor sociocultural e intelectual (socioc int) da língua é aquele que apresenta maior relevo, como expectável, em estudantes de cursos de Humanidades/Ciências Sociais e Humanas. As percentagens são bastante elevadas, sobretudo nos grupos de Portugal (PT) e Brasil (B), respetivamente 92,8% e 83,3% (ligeiramente mais baixa no grupo cabo-verdiano). De seguida, regista-se o valor da língua nas relações comerciais (rel. com): com as respostas dos cabo-verdianos à cabeça (71,4%) e os restantes um pouco abaixo (PT, 42,9%; Brasil, 58,3%); nas relações internacionais, os valores estão muito próximos, embora sensivelmente inferiores, – com exceção para as respondentes portuguesas que mantiveram a mesma percentagem (42,9%). A LP com o valor de língua de ciência tem impacto nos estudantes do Brasil e de Cabo Verde, que terão como suporte material a LP para textos/livros académicos, associando as participantes portuguesas imediatamente ao inglês este valor. O peso político teve alguma expressão para o grupo cabo-verdiano (42,9%), – empenhados na construção do jovem país –, sendo o poder económico (económ.) só expressivo para os sujeitos do Brasil, como seria de esperar (33%), dada a situação privilegiada em termos económicos que este país vive na atualidade. Quanto ao valor da LP no ciberespaço (net), é com alguma surpresa que se leem estes resultados: PT, 21,4%, Brasil, 25% CV, 28,6%. Os estudos feitos neste âmbito mostram que a LP tem bastante impacto a nível de ciberespaço. Guerreiro e Junior (2011) referem que, em 2007, das sete línguas mais faladas na internet, a LP ocupava o quinto lugar. Na mesma linha, Reto (2012) caracteriza a LP como uma língua relevante a nível da internet e da Wikipédia. Será o momento destes universitários se consciencializarem desta dimensão (ver sobretudo Guzeva et al., 2013)!
No tópico 6, solicitava-se que cada estudante completasse a frase “Para mim, a LP é…” (Gráfico 4)
Gráfico 4. Para mim, a LP é…
Quanto ao grupo de PT, metade das estudantes destaca, em primeiro plano, os valores identitários (Ident.), – com recurso sistemático aos possessivos ‘meu’ e ‘minha’, e o valor de comunicação, referindo respetivamente que se trata da LM da maioria e da língua de trabalho de todas. Num segundo plano, algo distanciado, referem os valores de caráter profissional, ou seja, o peso histórico e sociocultural (H socioc), assim como as características da língua (aspetos estéticos e linguísticos (21,4%): romântica, doce, bonita; “rica aos níveis semântico, lexical, morfológico”), com apenas 14,3%, a aprendizagem/formação (“difícil de aprender (…) gostava de a conhecer melhor”[21]) e, por fim, a relevância.
Contrariamente, os estudantes brasileiros privilegiam, com 41,7%, as dimensões relevância, peso histórico e sociocultural e características da língua: relevância (“Enfim, uma língua de futuro” ou “uma língua em ascensão económica e social”); peso histórico e sociocultural :“por meio dela consigo expressar a cultura do meu país” ou “o caminho […] para o conhecimento a respeito da cultura e muito mais do meu[22] país”; características da LP meramente subjetivas, aliás (“uma das línguas admiráveis do mundo. Ao passo que é complexa, estimula o interesse pelo aprofundamento dos seus aspetos”, “rica”). O destaque dado ao reconhecimento social e económico e, por esta vias, ao cultural, reflete, uma vez mais, o atual momento social e económico do Brasil, com uma valorização deste país, mundialmente, com fronteiras abertas através deste crescimento sociopolítico e económico. A importância da aprendizagem/formação surge com uma percentagem superior à do grupo precedente, 33,3% (ex: “tão importante e deve ser aprendida e difundida como qualquer outra língua”), mas estranhamente ‘baixa’ para o perfil deste público; e, por fim, é focado o valor de identidade, com 8,3% (“é uma estrutura de desenvolvimento que faz parte da minha vida desde que nasci”). Embora a identidade aparentemente surja com o valor menos presente, esta deve ser lida também noutros registos e noutros valores, sobretudo quando há recurso ao possessivo (‘meu’, ‘minha’).
No que concerne aos cabo-verdianos, encontramos uma pulverização de valores, mas, apesar de tudo, os valores históricos e socioculturais (35,7%) e ainda a aprendizagem/formação (apenas 28,6%) são os privilegiados. Esta escolha parece estar em conformidade com o facto de se tratar de formandos em LP, e a língua ser o seu objeto de estudo (“fundamental porque é a língua que escolhi para me formar”), tendo havido motivos de ordem histórica e também socioculturais ligados a esta escolha. Como diz um dos respondentes se não dominar bem a LP “não encontro emprego…[porque é uma] língua de prestígio e muito valorizada em Cabo Verde”. De seguida, encontramos o valor de comunicação (14,3%) que neste tópico não tem particular expressão (“permite falar com os meus irmãos da CPLP mas também conhecer a cultura deles…”). Seguem-se os valores identitários (é a minha[23] segunda língua… é daquelas que mais aprecio” e “a melhor herança que os portugueses nos deixaram”, citando Amílcar Cabral) e, por fim, por apenas um sujeito, os valores de relevância, ligado ao poder económico da língua (da demografia à importância da introdução da LP em organismos internacionais, peso político, língua de ciência e de relações comerciais e ainda do ciberespaço, a referência ao ciberespaço é, aliás, muito limitada, como já mencionado, e as características (afetivas) da língua (“…algo que nos cativa…”).
Destes resultados, há dois aspetos que nos merecem reflexão: o pouco peso atribuído à aprendizagem da LP/formação para os grupos, em particular para as mestrandas portuguesas. Fenómeno talvez explicável pelo facto de a área de LP não ser a única na sua formação; a omissão do valor comunicativo da língua nos brasileiros inquiridos, porventura porque estes usarão no quotidiano uma variedade de LP, de algum modo, afastada da variedade considerada padrão, e não sentirão tão fortemente esta como língua de comunicação internacional (Ançã et al., 2013). Por sua vez, os cabo-verdianos deste estudo que, tendo reconhecido a comunicação e partilha entre os povos através da LP na questão anterior, quando se trata de algo mais pessoal (“Para mim, a LP é…”), esta dimensão não é tão clara. Recordemos que o cabo-verdiano é a LM destes sujeitos e que a comunicação em Cabo Verde se processa essencialmente nesta língua.
3. Comentário final
Tinha por objetivo este estudo uma (possível) descrição da ‘cultura linguística’ de 36 universitários portugueses, brasileiros e cabo-verdianos, e ainda a identificação dos valores atribuídos à LP.
Os resultados apontam, genericamente, para algum desconhecimento do ordenamento das línguas mundiais, da dimensão de LP em número de falantes, assim como do número de países com língua oficial portuguesa (neste último aspeto, os cabo-verdianos demonstram mais informação). Por outro lado, são eleitos os valores mais ‘clássicos’ da LP, havendo, contudo, por parte do grupo português uma certa abertura, com a inclusão da dimensão de comunicação internacional, – pouco relevante para os outros dois grupos, sobretudo para os brasileiros. Estes, embora demonstrem confiança no país, não têm consciência de que o domínio económico vai beneficiar a procura do ensino da língua, e que a difusão da LP e a consolidação da internacionalização vão dar visibilidade à cultura e às indústrias da língua em geral.
Estes resultados levam-nos a questionar o ensino da língua e o papel da didática, que não consideram outros espaços geoculturais onde a LP também é falada, nem os novos valores que a LP vai adquirindo. Efetivamente, estes universitários/(futuros) professores estão pouco sensibilizados para o poder da LP e do seu crescimento nestes últimos anos. Existe, por conseguinte, uma necessidade de apostar numa abordagem mais alargada, que consciencialize os (futuros) profissionais em educação para a dimensão global da LP espelhada nos seus múltiplos valores.
Para concluir, e considerando as “Conclusões da Segunda Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial” (Encarte Camões, 2013), gostaria de realçar duas das recomendações apresentadas neste documento: a importância concedida ao desenvolvimento de “estratégias de promoção da imagem de poder e de valor acrescentado” da LP; o ensino desta língua e a formação profissional. Os nossos desígnios vão, por consequência, ao encontro destas conclusões.
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[1] Este trabalho é financiado pela FCT/MEC através de fundos nacionais (PIDDAC) e cofinanciado pelo FEDER através do COMPETE – Programa Operacional Fatores de Competitividade no âmbito do projeto PEst-C/CED/UI0194/2013.
[2] Para Castro (2009), a “prevalência” pertence ao português brasileiro, enquanto a “centralidade” se aproxima mais do português europeu.
[3] Sociolinguista francês.
[4] Dirá Boyer (2006) que foi De Swann o promotor do modelo gravitacional adaptado por Calvet.
[5] De acordo com Lewis, Simons e Fennig (2013) existem 7.106 línguas no planeta (acesso em 15 dezembro 2013).
[6] Acesso em 9 dezembro 2013.
[7] O desenvolvimento destes parâmetros encontra-se no Baromètre Calvet des Langues du Monde (Calvet e Calvet, 2012) (acesso em 19 dezembro 2012).
[8] Foi esta a ordem cronológica pela qual os questionários foram passados.
[9] No que concerne a estas estudantes, só a conclusão do Mestrado (2º Ciclo) lhes permite o acesso ao ensino.
[10] A restante percentagem corresponde a uma não resposta.
[11] Há um estudante nascido no Fogo, sendo os restantes de Santiago.
[12] Por ‘indústrias da língua’, entendemos, com Reto (2012), as atividades nas quais a língua é um elemento-chave, como: a literatura, o cinema, a imprensa, a educação...
[13] O número de falantes de wolof no Senegal, em 2006, era 3.930.000, sendo a totalidades de falantes de wolof no mundo (Senegal + restantes países), para a mesma data, de 3.976.500 (www.ethnologue.com/language/wol; acesso em 22 novembro 2013).
[14] A zona geográfica onde se localiza a universidade portuguesa foi, por excelência, uma zona de emigração para a Venezuela. Atualmente, verifica-se o movimento inverso: a vinda de venezuelanos e (o retorno) de lusovenezuelanos.
[15] De acordo com Lewis, Simons e Fennig (2013), o italiano surge em 20º lugar (acesso em 9 dezembro 2013).
[16] Em décimo sexto lugar para Lewis, Simons e Fennig (2013) (acesso em 9 dezembro 2013).
[17] “Until the mid-twentieth century [French] remained the language of diplomacy par excellence and the main transnational language of literature and the arts” (De Swann, 2001:16-17).
[18] O grupo do Brasil não menciona esta língua. No entanto, encontramos o árabe nas respostas dos estudantes cabo-verdianos, em terceiro lugar, com dois registos, como já referido, e em quinto lugar, com apenas um registo.
[19] De realçar que os “crioulos” , cuja a designação é dos inquiridos, são perspetivados do ponto de vista sincrónico, e não na apresentação mais tradicional, classificados diacronicamente, ou seja, a partir da língua em cuja base lexical assentam.
[20] Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde.
[21] Esta frase é de uma mestranda portuguesa e não da venezuelana, como poderíamos supor.
[22] Destacado nosso.
[23] Destacado nosso.
Aspectos discursivos da referenciação em textos de estudantes
do final do ensino básico da cidade do Rio de Janeiro
Maria Teresa Vilardo Abreu Tedesco
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Brasil)
O objetivo maior deste trabalho é analisar a produção escrita de alunos em situação de concurso para ingresso em uma Universidade pública do Estado do Rio de Janeiro, observando textos do tipo argumentativo, na forma de cartas. Além disso, propõe-se fazer uma relação do tipo de texto com as estratégias utilizadas no processo de referenciação que ocorrem nesses textos, sob uma perspectiva teórica que reúne os pressupostos da linguística textual como suporte para a discussão acerca da tipologia textual e da referenciação e os pressupostos da sociolinguística. Utilizou-se a metodologia variacionista como recurso de aplicação de um tratamento quantitativo dos dados, centrado em percentual de frequência de uso, já que foram levantadas formas alternantes de utilização discursiva dos recursos de referenciação nos textos analisados.
Assumindo diferentes perspectivas de interpretação do processo de aprendizagem da escrita, de modo geral, a escola tem entendido o processo de aquisição como algo de natureza sucessiva, passando, primeiramente, por uma etapa de conhecimento gramatical para somente, em etapas posteriores, desenvolver o uso “efetivo” da escrita. A prática pedagógica não tem alcançado os resultados mais satisfatórios no que tange à competência comunicativa para a produção de textos – leitura e escrita. Necessita-se de subsídios para que o ensino de língua portuguesa permita um uso mais eficaz da leitura e da escrita, propiciando um domínio dessas habilidades, fazendo com que o cidadão, de fato, se aproprie de sua língua.
Nesta perspectiva, o conceito de linguagem adotado é importante, deixando de ser encarado como instrumento de comunicação, que vê a língua como código ou sistema capaz de transmitir uma dada mensagem, passando a ser visto como uma forma de sociointeração em que os sujeitos do processo são ativos e interagem através da língua. Decorrente dessa visão sociointeracionista, entendo o texto como uma manifestação verbal que se constitui da seleção e da ordenação dos elementos linguísticos utilizados pelos falantes nesse processo de interação, de acordo com seus objetivos e práticas sócioculturais. (cf. Koch, 1997).
Reconhecendo a polêmica do tema tratado e a diversidade que envolve os dados analisados, tenho como objetivo específico com a análise proposta verificar como são utilizadas as diferentes estratégias de referenciação nesses textos, a fim de determinar a existência ou não de uma correlação entre tais estratégias e a construção do texto argumentativo, analisando as cadeias de referenciação como via para o tópico discursivo que mantém a coerência do texto.
Desta forma, este trabalho de pesquisa poderá contribuir para o estudo de tipos textuais, na tentativa de estabelecer uma relação entre o uso da referenciação e o texto argumentativo.
As hipóteses que norteiam esta pesquisa são as seguintes:
1. A proposta de redação
O corpus desta pesquisa é composto por textos produzidos por alunos em situação de concurso público, a saber: alunos concluintes da 3ª série do ensino médio, fim da denominada escolaridade básica no Brasil, e que se habilitaram ao preenchimento de vagas de diferentes faculdades e institutos oferecidos pela UERJ[1] através de seu concurso vestibular.
Os textos analisados são exemplares do gênero carta, com propósito argumentativo, cujo objetivo é persuadir o interlocutor sobre determinado ponto de vista. Investiga-se de que forma as estratégias de referenciação utilizadas nos textos analisados contribuem para a construção textual em sua microestrutura.
A prova de redação do vestibular UERJ-97[2] teve como objetivo analisar as habilidades de leitura e de escrita desenvolvidas ao longo dos ensinos fundamental e médio, ciclo básico de ensino, já que durante o curso universitário, em verdade, e, em sua vida profissional, o cidadão se defrontará, frequentemente, com situações em que o domínio pleno dessas habilidades propiciará, certamente, sucesso, ou, pelo menos, melhores condições para estar mais próximo deste.
A organização de ideias, a interpretação de dados e de fatos, a elaboração de hipóteses e o estabelecimento de relações constituíram habilidades avaliadas naquele momento. O domínio de estratégias linguísticas que revelassem essas habilidades pelo estudante foi levado em consideração no processo de produção de texto, na inter-relação leitura-escrita.
A prova do vestibular UERJ-97 consistiu de uma proposta de produção de texto a ser redigido em prosa, de caráter argumentativo, em que o candidato deveria ter a oportunidade de expor seu ponto de vista a respeito do tema, organizando ideias, estabelecendo diferentes relações. A proposta de redação apresentada no vestibular UERJ permitiu ao produtor do texto o acesso a uma gama de informações acerca do tema polêmico em questão, bem como a escolha de um possível destinatário.[3]
A opção por um texto argumentativo no Vestibular UERJ, tendência partilhada com outras provas de acesso aos diferentes cursos universitários, leva em conta que, no dia a dia de qualquer cidadão, a argumentação se faz presente a todo momento, quer se tenha um interlocutor específico ou não. No vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – 97, houve a opção pela produção de uma carta argumentativa, supostamente dirigida a um leitor específico. Definindo-se previamente quem é o interlocutor de um determinado assunto, o produtor do texto tem melhores condições de fundamentar sua argumentação, visto ter conhecimento da posição defendida pelo interlocutor. Além disso, o contexto de comunicação criado – produção de uma carta – impõe não só o estabelecimento e a manutenção da interlocução, como também o uso de uma linguagem compatível com o interlocutor.
O comando da redação solicitava ao estudante que, antes de fazer sua redação, lesse atentamente os vários textos da coletânea, vinculados a uma notícia que teve grande destaque na imprensa brasileira nos meses de julho e agosto de 1996: a acusação de racismo contra o compositor Tiririca, o que levou à apreensão de seus discos e à proibição de execução da música Veja os Cabelos Dela. Apresentava, ainda, dois depoimentos que transcrevo a seguir para melhor entendimento:
DEPOIMENTO 1
Em seu despacho, a juíza Flávia Viveiros de Castro ressalta que da letra de Veja os Cabelos Dela constam expressões que, em tese, consubstanciariam a prática de crime de racismo, já que se refere a uma[4] nega que fede / fede de lascar. . . / bicha fedorenta / fede mais do que gambá.
Existem dispositivos legal e constitucional que embasam o pedido do Ministério Público, além do que os próprios versos da canção, irreverência à parte, de novo consubstanciam uma visão preconceituosa da mulher de etnia negra. Há de se ressaltar a influência perniciosa e sub-reptícia de canções como esta, especialmente em meio ao público infanto-juvenil, mais facilmente sujeito a influências maléficas e distorcidas que se agregam aos seus inconscientes [...], diz a juíza Flávia Viveiros de Castro em seu despacho.
Ela determinou que o diretor de marketing da Sony Music, Luiz André Calainho, fosse imediatamente informado de sua decisão, através de um ofício, (trecho da matéria “Justiça Proíbe Música de Tiririca”, em O Globo,[5] 25/07/96).
DEPOIMENTO 2
Parece existir, no momento, um esforço concentrado para fazer surgir no Brasil um problema que nunca tivemos: o da discriminação racial. Serve de gatilho, para isso, a proibição ao cantor cearense Tiririca de executar a canção Veja os Cabelos Dela, cuja letra ofende a raça negra. Só o intuito de criar problemas nos levaria a pensar assim. Na década de 30, a música de maior sucesso foi O Teu cabelo Não Nega, que versa justamente sobre a carapinha dos nossos irmãos negros, que nunca se sentiram ofendidos por ela, que até hoje é tocada para animar bailes carnavalescos.
(Hélio Penna e Costa, em O Globo, 30/07/96 – Seção “Cartas dos Leitores”)
Caso você concorde com o conteúdo do depoimento 1, escreva uma carta para o Sr. Hélio Penna Costa, usando argumentos para convencê-lo dos pontos de vista defendidos pela juíza Flávia Viveiros de Castro. Use a abreviatura Sr. como forma de tratamento.
Caso você concorde com o conteúdo do depoimento 2, escreva uma carta para a juíza Flávia Viveiros de Castro, usando argumentos para convencê-la dos pontos de vista defendidos pelo Sr. Hélio Penna Costa. Use a abreviatura Sra. como forma de tratamento.
ATENÇÃO |
Assine seu texto como Um/Uma estudante. |
Redija sua carta predominantemente em língua culta |
A proposta de per si baseia-se em dois depoimentos específicos, publicados em jornal de grande circulação: um depoimento da juíza que julgou o caso, censurando a música do cantor Tiririca; o outro depoimento de um leitor que defende o referido cantor e sua música, por considerá-los isentos de preconceito e de agressão à raça negra. Coube ao vestibulando, naquele momento, escolher um interlocutor para dissuadi-lo do ponto de vista expresso, tentando persuadi-lo do ponto de vista adotado. Trata-se, portanto, de um verdadeiro exercício argumentativo.
Em Concordando Com |
Depoimento 1 Da juíza Dra Flávia V. Castro |
Escreve Para |
Interlocutor Hélio Penna, concordando com a proibição da música. |
Depoimento 2 Do leitor Hélio Penna e Costa |
Juíza Flávia V. de Castro, discordando da proibição da música. |
O tema gerador das redações em análise é a proibição da música de Tiririca. Este tópico discursivo, esta macroproposição textual aciona frames, armazenados na memória do produtor do texto que geram subtópicos tais como discriminação, racismo, etc. Destarte, quando o candidato tomou conhecimento do tema proposto para a redação, foram acionados, a partir de todo o material oferecido, conhecimentos pertinentes ao tema, gerando várias possibilidades de expressão, de abordagem do proposto.
Tópico discursivo
Do tópico discursivo - proibição da música do Tiririca - emanam algumas possibilidades de desenvolvimento do tema. O produtor do texto poderá selecionar e desenvolver uma das possibilidades ou combiná-las, conforme o caminho adotado para persuadir o seu leitor.
Para fins de análise dos dados, é importante ter clareza de que se trata de uma situação discursiva peculiar, pois cabe ao produtor do texto atender a uma proposta de escrita requisitada em uma prova de concurso vestibular, que poderá resultar na conquista de uma vaga na Universidade. Entretanto, a proposta de redação traz uma situação de comunicação fictícia. O candidato, pressionado (ou não) pela situação real de concurso, acaba por “entrar no jogo” proposto. Na verdade, o simples fato de se entrar em um processo de comunicação verbal implica que se respeitem as regras do jogo. Trata-se de um acordo tácito, inseparável da atividade verbal. De qualquer forma, esta é uma situação de comunicação que se aproxima (ou tenta se aproximar) de uma realidade, numa concepção sociointeracionista de linguagem.
A proposta trata de “adotar ou não” a decisão com relação à suspensão da música. Postulo a existência de duas dimensões discursivas, condicionadas pela situação de comunicação em tela no corpus analisado, a saber:
2. A função discursiva das cadeias de referenciação
Buscando verificar o comportamento linguístico de cadeias de referenciação, determinei uma categorização da função discursiva do elemento nas cadeias, tomando como base os estudos de Koch (1999, 2002). Foram postuladas as seguintes funções discursivas: introdução, recategorização, recategorização avaliativa, manutenção do referente, retomada (de um elemento), o que comprova a primeira hipótese de pesquisa.
Função Discursiva |
Aplicação total |
Frequência |
Introdutor |
149/227 |
66% |
Recategorizador |
93/116 |
80% |
Recategorizador Avaliativo |
6/86 |
7% |
Manutenção do Referente |
119/134 |
89% |
Retomada |
59/70 |
84% |
Total |
426/633 |
67% |
Tabela 1: Influência da função discursiva do elemento no uso do Sn simples
1) Introdutor – Toda a cadeia referencial é iniciada por um elemento a que denominei Introdutor, correspondendo à primeira menção da cadeia. Os resultados numéricos apontam bastante regularidade na expressão do introdutor por SN[6] simples. Considero-os dentro da expectativa, visto que é natural que na primeira menção ocorra o SN simples.
(1) é tão cheio de preconceito --> necessita dele na música --> passando este para seu filho
(Red. 1)
(2) Grande diversidade étnica --> etnias diferentes --> entre elas --> caldeirão étnico.
(Red. 4)
No exemplo (1), tem-se a presença de um SN simples na função discursiva Introdutor: o item preconceito, que será um tópico desenvolvido nesta redação, e depois retomado pronominalmente. A cadeia no exemplo (2) apresenta a primeira menção, formada por SN complexo, seguido de outro SN complexo. Trata-se de uma cadeia de SN complexo e pronome (3ª menção).
2) Recategorizador – Considerei função discursiva de recategorização, a menção do referente que, mantendo o sentido básico, utiliza um item lexical diferente. Observei nos dados certa tendência para a não repetição de itens lexicais, sobretudo quando essa repetição pudesse ocorrer próxima. Parece que o produtor do texto tem o cuidado de evitar a repetição de palavras, ou, pelo menos, tem o cuidado de não repetir o mesmo item lexical seguidamente. Por exemplo, todas as recategorizações que dizem respeito às atividades de Tiririca e que, de certa forma, já tinham sido sugeridas na proposta de redação (Tiririca/ o compositor/ o letrista/ o artista) se mantêm no mesmo campo semântico. Por isso, determinei uma função discursiva de recategorização para marcar essa característica dos dados analisados, garantindo mudanças no item lexical, sem trazer, entretanto, um juízo de valor do produtor do texto, o que poderia contribuir para a orientação argumentativa a ser expressa no texto. A recategorização aparece associada a quase todas as funções da sequência, isto é: contextualização; posição; justificação; exemplificação; interrogação; contra-argumentação; alusão; repetição; conclusão.
(3) A canção Veja os cabelos dela --> a canção de Tiririca --> Canção esta --> esta música
(Red. 28)
O exemplo (3) apresenta uma cadeia de referenciação, em que a última menção feita através de um item lexical, está no mesmo campo semântico da primeira menção. Isso foi denominado recategorização. Este uso evita mais uma repetição do item lexical na cadeia, que perpassa algumas sequências do texto. Seu uso, entretanto, não amplia o espectro de informação do item. Na verdade, não acrescenta ao leitor quaisquer informações daquilo que quer dizer. Saliento, nesta cadeia, a reiteração de itens lexicais, todos SNs simples.
(4) a etnia negra --> a raça negra
(Red. 7)
O exemplo (4) ilustra uma cadeia mais localizada em que se encontram SNs complexos com função discursiva de recategorização, pois não se repete o item lexical, mas esta substituição, que se dá por sinonímia, não acrescenta outras informações para o leitor. Portanto, observa-se certo cuidado em não repetir itens, mas não há, de fato, uma expansão de significado, que traga mais informações para o leitor.
3) Recategorizador Avaliativo
Diferentemente do item anterior, esta recategorização acrescenta elementos à interpretação, seja através do uso de modificadores, seja através da seleção lexical de um item sumarizador, saindo da mera repetição ou substituição do item lexical, para imprimir uma orientação argumentativa, demonstrando, não só na construção formal do texto, mas também na seleção vocabular a elaboração de sentidos. Na visão de Koch (2002), “as referenciações podem indicar pontos de vista, assinalar direções argumentativas.”
A expectativa deste trabalho era de se encontrar um número maior de recategorizações do referente, com acréscimo de modificadores que pudessem atribuir-lhe avaliações positivas e negativas, espelhando uma relação mais próxima entre a seleção lexical através da referenciação por SNs e a argumentação. Os resultados numéricos demonstram que esse uso do Sn complexo ocorre nos dados analisados, especificamente, nesta função de recategorização avaliativa. Há, também, o uso de SN simples como recategorização nos casos denominados nominalizações, embora sejam poucos. É muito sintomático que, numa redação que se esperaria “formal”, haja tão poucas nominalizações, recurso tão próprio da escrita.
(5) O passado musical brasileiro não nos deixa cometer essa injustiça.
(Red. 2)
O exemplo (5) ilustra o exposto acima com relação à recategorização avaliativa. O trecho retirado da Red. (2) apresenta um SN simples que resume todo o significado dos parágrafos anteriores. Importante perceber que este item lexical traz uma direção do que o produtor do texto pensa. Na verdade, ele repudia a “condenação” de Tiririca (A carta está dirigida à juíza).
4) Manutenção do referente – Representa a continuidade do mesmo item lexical que indica o referente. O exemplo abaixo ilustra através de SN complexo (1ª e 3ª menções) e de SN simples (2ª menção) essa função.
(6) Um dos fatos importantes --> em fatos --> fatos citados
(Red. 25)
5) Retomada – É a retomada de item lexical, quando os itens dentro da cadeia de referenciação não são itens subsequentes. Ou seja, retoma o item lexical cuja última menção está intercalada por outro item lexical. Ao retomar, não há acréscimo de elementos de sua composição, voltando ao mesmo ponto em que já estava, no que tange à argumentatividade.
(7) os negros --> os negros --> nem eles --> maioria dos negros
(Red. 27)
Trata-se de uma cadeia composta de SN simples. O primeiro item é o introdutor, seguido de manutenção do referente. A terceira menção é uma anáfora pronominal, e a quarta retoma o item lexical da segunda, o que tratei como retomada.
(8) a raça negra --> a mulher negra --> a raça negra
(Red. 27)
A retomada também ocorre com o SN complexo, conforme exemplo (8). A retomada da primeira menção é o terceiro SN, intercalado por item lexical, a que denominei recategorização. Neste caso, mulher negra e raça negra fazem parte da mesma cadeia, devido à relação de uma parte do conjunto.
Apresento, no exemplo abaixo, uma cadeia completa e as respectivas funções que os elementos da cadeia apresentam.
(9) Letrista cearense Tiririca --> de Tiririca --> de Tiririca --> o artista --> Tiririca --> um palhaço inocente.
(Red. 46)
A cadeia acima, retirada da redação (46), está centrada no personagem Tiririca, apresentando seis menções. A primeira menção, portanto, o introdutor da cadeia, é o SN complexo Letrista cearense Tiririca. Encontra-se numa sequência cuja função é de contextualização. O segundo, o terceiro e o quinto elementos da cadeia mantêm o SN da primeira menção, por isso foram analisados como casos de manutenção. O artista, quarto elemento, refere-se ao personagem Tiririca, tratado aqui como recategorização.
Ao analisar a cadeia de referenciação como um todo, considerei o número de menções do referente em cada cadeia, visando a medir a extensão desta ao longo do texto. Minha hipótese inicial é que as cadeias de referenciação mais longas, perpassando o texto, podem garantir a manutenção do tópico discursivo, o que poderá tornar o texto mais coerente.
No entanto, como se constata no quadro 2, o número de menções por cadeia é predominantemente baixo: prevalecem as cadeias de apenas duas menções e as cadeias com mais de 5 menções vão se tornando raras.
Número de menções |
Aplicação/ Total |
Frequência |
2 |
80/222 |
36% |
3 |
50/222 |
23% |
4 |
46/222 |
21% |
5 |
16/222 |
7% |
6 |
15/222 |
7% |
7 ou mais |
25/222 |
7% |
Tabela 2: Número de Menções por cadeia de referenciação
Verifica-se que, das duzentas e vinte e duas cadeias de referenciação do Corpus, o percentual mais alto está concentrado em cadeias mais curtas, e estas, naturalmente, tendem a ser mais localizadas no texto. É importante esclarecer que foram encontradas cadeias formadas por até quinze menções, mas não passaram de duas. Este resultado pode estar relacionado com a própria natureza do texto investigado. Se, ao invés de um texto mais argumentativo, tivéssemos um texto narrativo, certamente as cadeias seriam mais longas. Ao mesmo tempo, há que atentar para a natureza semântica dos elementos mencionados. As cadeias mais produtivas são as que se constroem em torno do referente Tiririca. As cadeias formadas em torno dos termos usados mais genericamente (os negros, por exemplo) são as menores.
Em se tratando da relação entre número de menções e parágrafos, chega-se à questão do tópico discursivo. Por isso, ative-me, também, à verificação da contiguidade das menções, controlando se ocorriam em parágrafos sucessivos ou não, visto que as cadeias de referenciação são mais facilmente encontradas em posição intraparágrafo. Na tabela 3, pode-se visualizar a relação menção/ sucessão de parágrafos. A frequência percentual demonstra a falta de continuidade, visto que, majoritariamente, a menção mantém-se em um parágrafo. Se considerarmos que uma redação tem, em média, 05 parágrafos e, se, em cada parágrafo, há uma única menção, temos um “fatiamento” em várias partes do tópico discursivo, o que pode influenciar, negativamente, na construção da coesão textual.
Parágrafos |
Aplicação / total |
Frequência |
1 só parágrafo |
46/222 |
43% |
2 parágrafos sucessivos |
49/222 |
22% |
2 parágrafos não sucessivos |
24/222 |
11% |
3 parágrafos sucessivos |
13/222 |
6% |
3 parágrafos não sucessivos |
22/222 |
10% |
4 parágrafos sucessivos |
9/222 |
4% |
4 parágrafos não sucessivos |
9/222 |
4% |
Tabela 3: Distribuição das cadeias por parágrafos
Admite-se a existência de dois processos gerais de organização textual, quais sejam: a progressão referencial e a progressão tópica. Embora processos distintos, entendo-os como processos complementares na estrutura textual. Algumas questões acerca desses processos devem ser colocadas. A primeira delas diz respeito à progressão referencial ao longo dos textos analisados. O fato de termos uma única cadeia, ainda que extensa, ao longo do texto, por si só não garante a progressão referencial, visto que não basta a manutenção ou troca de um item lexical para haver essa progressão. Em outras palavras, a progressão só se fará se forem usadas adequadamente estratégias diversas de referenciação. Há um princípio de operação básica que diz respeito à ativação / reativação / de-ativação (Koch, 2002: 83) continuamente elaborado. É neste sentido que o processo de referenciação é importante, pois o produtor do texto elabora esses tópicos discursivos (e subtópicos), podendo expandir seu significado com novas informações e re-significações, o que denota um processo contínuo, porém complexo, de acréscimos sucessivos que contribuirão para o processo de compreensão textual. Percebe-se, entretanto, a dificuldade da discussão, visto que um texto não apresenta um único tópico.
Um dos fatores para manutenção coerente do tópico é haver elementos introduzidos, mantidos, e, ao mesmo tempo, relacionáveis a subtópicos que vão sendo construídos (cf. Mentis, 1988), através de “constelações associativas” destes tópicos e dos subtópicos, partindo dos frames associados, que levam ao projeto de texto. Por isso, a continuidade tópica e a coerência não somam, apenas, informações.
Assim, quanto mais localizadas as cadeias e quanto menos recategorizações avaliativas o produtor do texto fizer, menos argumentativo o texto será. Logo, a progressão tópica e a progressão referencial estarão prejudicadas. Esta perspectiva corrobora a terceira hipótese.
3. Exemplificando as cadeias de referenciação
É importante ressaltar que o texto não é elaborado de forma linear. São essas expansões tanto de significado quanto do tópico que promoverão a progressão sucessiva das partes, construindo o sentido. Mais uma vez se chega à noção de referenciação. O tópico é construído discursivamente.
A fim de ilustrar o comportamento de uma cadeia de referenciação no Corpus analisado, apresento a redação 46, focalizando a cadeia de referenciação cujo elemento principal é Tiririca.
... é fácil justificar atitudes como a da Sra. com relação ao letrista cearense Tiririca, baseado na insegurança social sem descobrir o que é “danoso” na arte, sem a capa da censura. |
A primeira menção da cadeia é um SN complexo que apresenta as características do personagem principal: Tiririca |
As passagens e versos da canção de Tiririca são tão somente transpostos dos preceitos populares como o de que negros são mais suscetíveis a mau cheiro, ou de que cabelos de negros não são bons. |
A segunda menção apresenta somente o N Tiririca |
Convenhamos que o sensacio-nalismo aumenta demais os fatos e que numa visão superficial escapou-lhe o fato de Tiririca ser um nor-destino, indivíduo castigado pelo preconceito. (...) |
A terceira menção da cadeia de referenciação mantém o mesmo item anterior, ressaltando, através de predicações, características do cantor. |
Se for preciso censurar a canção, que a Sra. o faça, mas a sociedade crucificar o artista, isso eu não considero justo, não vejo em Tiririca a propaganda preconceituosa. Vejo sim, um palhaço inocente que apesar de ter colocado coisas muito ruins em sua música, nunca teve a intenção de ofender os irmãos negros. |
É interessante observar a existência de três menções da cadeia de referenciação nesse segmento de texto. O item o artista recategoriza o referente, que é retomado através do nome na outra menção. Por fim, o último elemento da cadeia com a presença de um N + modificador acrescenta para o leitor uma nova visão do produtor acerca do tema exposto. |
Trata-se de um exemplo particularmente interessante, já que a cadeia é das mais longas – 6 menções – e perpassa todo o texto. Além disso, o produtor do texto sabe explorá-la para sustentar seu ponto de vista – até cabe a censura à música, mas não ao artista.
A redação 46 apresenta quatro parágrafos e, na verdade, três cadeias de referenciação. Além da cadeia destacada, tem-se uma cadeia formada pelo léxico canção, que, também perpassa quase todos os parágrafos (2º e 4º). Na verdade, esta cadeia baseada em – canção – está acoplada à primeira. Há a terceira cadeia (negros), que perpassa dois parágrafos (2º e 4º). Observe-se que a função discursiva do segundo parágrafo é a exemplificação. É um bom exemplo de subtópico que está compondo a sustentação do texto, na função discursiva de sustentação por exemplificação.
No quarto parágrafo, reunindo tópico e subtópicos, há a presença dos itens lexicais que compõem as três cadeias, o que imprime ao texto uma maior coesão, pois as cadeias correspondem a uma das formas possíveis de amarras do texto. Este é um dos raros casos de cadeia de referenciação bem explorada, garantindo o tópico discursivo e colaborando para a argumentação.
São estas expansões, tanto de significados quanto de cadeias tópicas e subtópicas, que promoverão a progressão sucessiva das partes do texto, construindo o sentido, confirmando a segunda hipótese de pesquisa.
O problema dos dados analisados não se dá somente pelo fato de termos um número razoável de cadeias curtas, que acabam estando mais localizadas no texto; a questão repousa no fato de haver textos que só apresentam cadeias localizadas, o que pode torná-los fragmentados.
Para ilustrar essa contrapartida, apresento a redação 6.[7]
Acompanho com interesse as contendas ideológicas em torno da música do compositor Tiririca, estou de acordo com a atitude da Sra. Juíza Flávia Viveiros de Castro e infelizmente tenho de descordar com o senhor sobre a forma de analisar o caso. |
A afirmação de que nunca houve no Brasil o problema da discriminação racial é equivocada, pois basta ligar a televisão e eis que aparece a nossa frente a discriminação, na forma de comerciais onde só figuram brancos bem vestidos, em casa bonitas; nas novelas onde o ator negro até pouco tempo só participava como empregado ou com funções similares; mesmo no noticiário da TV recebemos notícias da arbitrariedade da polícia em relação aos cidadãos negros, exemplo explícito de racismo, quando músicos do grupo Olodum foram abordados e presos, além de maltratados, por serem os negros sempre os principais suspeitos de qualquer delito que ocorra. Se estes fatos não são suficientes para convencê-lo do seu engano, acrescento o caso dos vistos negados pela embaixada dos Estados Unidos a cidadãos brasileiros negros e de outros que foram proibidos de entrar em recintos considerados de alta classe. Episódios relatados acontecem diariamente. |
Peço ao senhor que examine melhor as relações sociais em nosso país, reflita, certamente encontra a verdade. |
Na redação 6, embora se apresente um excelente exemplo da função discursiva de exemplificação, o autor do texto não consegue fazer uma relação entre música do Tiririca, apontada no primeiro parágrafo, e que não forma qualquer cadeia, e as contendas ideológicas a respeito desta. Ele promete, no segundo parágrafo, esta relação, especificamente, através da discriminação racial. Entretanto, leva a discussão para o âmbito da TV, exemplificando os fatos que ocorrem na TV como evidências da discriminação racial. Isto pode ser evidenciado, inclusive, pelo fato, de termos ao longo do texto, apenas, duas cadeias, localizadas no segundo parágrafo:
A questão da música não é retomada e a conclusão utiliza um SN bastante amplo – relações sociais – sem estabelecer as correlações prometidas no primeiro parágrafo.
Quanto às cadeias de referenciação, há uma tendência ao uso de cadeias mais curtas e, por conseguinte, mais localizadas, o que auxilia no fortalecimento da coesão intraparágrafos. Podem-se correlacionar as cadeias de referenciação com o tópico discursivo e subtópicos, sem haver uma sistemática para a ordem em que os elementos sintáticos (isto é, cadeias de SN – Pronome, zero, cf. Cap. 4[8]) tendem a aparecer na cadeia. Constatei, também, uma tendência muito grande ao uso de determinantes definidos, o que atribuo ao próprio processo de interação solicitado, bem como ao conhecimento partilhado das informações através da coletânea oferecida. Além disso, nas cadeias de referenciação, predomina o uso de sintagmas nominais simples, com uma incidência um pouco maior desse uso nas funções discursivas de manutenção e de retomada do referente[9], o que demonstra um uso básico da escrita que nem sempre contribui para o propósito comunicativo da persuasão. Por vezes, observou-se na escolha linguística dos estudantes o cuidado para não haver uma repetição de palavras, no caso, do tópico discursivo. Nos movimentos discursivos de manutenção e retomada do referente, nem sempre se garantia a continuidade tópica ao longo dos parágrafos, o que, de certa forma, pode tornar a coesão por referenciação mais “frouxa”. Essa caracterização se traduz, também, no uso pouco sistemático do SN complexo na função discursiva do elemento na cadeia, qual seja, a recategorização avaliativa. Esse uso pode compor em um texto uma forte estratégia argumentativa, auxiliando a persuasão do interlocutor.
4. À guisa de conclusão
Embora os produtores dos textos sigam a estrutura canônica – introdução, desenvolvimento e conclusão-, o desenvolvimento, em que ocorre a função discursiva da sequência, denominada sustentação, apresenta problemas. Está sempre presente, correspondendo ao desenvolvimento do texto. Entretanto, nem sempre cumpre o seu papel discursivo, ou seja, trazer ao texto as evidências empíricas e formais, a fim de persuadir o leitor do ponto de vista defendido. Este fato pode ser, em parte, explicado por haver cadeias de referenciação muito curtas, o que traz um “picotamento” da ligação das partes do texto. Consequentemente, há parágrafos mais estanques, configurando uma justaposição de ideias num plano discursivo mais linear, sem hierarquização, não havendo uma progressão tópica, prejudicando a tessitura textual.
Percebe-se que falta aos textos o movimento argumentativo típico que conduz da posição à conclusão, no estabelecimento de uma nova tese, que garante a progressão. O que acontece, na maioria das vezes, nos dados, é um movimento linear, de começo, meio e fim, mas que não dá conta desse movimento argumentativo: Premissa/ conclusão; Premissa / sustentação. O fato é que estamos lidando com um tema de natureza polêmica, logo o movimento argumentativo deveria ocorrer. Estes textos começam e terminam, mas nem sempre, do ponto de vista da organização textual, atendem ao propósito comunicativo da argumentação.
Por outro lado, a predominância de SNs simples nas cadeias de referenciação não contribui muito para a orientação argumentativa, pelo baixo índice de modificadores, que configuram sintaticamente a recategorização avaliativa nas cadeias de referenciação. Além disso, há o uso reduzido de nominalizações e de rotulações que poderiam ajudar na organização dos textos argumentativos. Entretanto, mais uma vez, o baixo índice desses recursos – esperado, porque próprios da escrita – distancia-nos deste propósito. Do conjunto de possibilidades de estratégias de referenciação que a língua nos oferece, os textos analisados indicam que os autores não variam muito nas suas escolhas linguísticas, mantendo-se em um jogo discursivo do referente, materializado no uso de SN simples, na substituição por zero ou na mera retomada do termo.
Embora Koch e Marcuschi (1998) afirmem que “No contexto do discurso, todos os referentes são evolutivos, já que sempre haverá uma mudança, ou seja, os referentes modificam-se à medida que o discurso se desenrola.”, avalio, se, de fato, estes textos apresentam esta característica discursiva. Creio que o fazem timidamente, na medida em que raramente ultrapassam o repertório de itens lexicais previsíveis a partir da proposta de redação.
Nesta perspectiva, destaca-se a proeminente necessidade de desenvolvimento da competência discursiva do estudante, aliando ensino da leitura/ escrita/ estratégias gramaticais, já que a amostra de textos analisados nessa pesquisa denuncia, ainda, certa dificuldade dos estudantes no uso de estratégias discursivas que fortaleçam o seu projeto de dizer. De certo modo, os argumentos orientam os diferentes comportamentos dos indivíduos, os valores dos grupos sociais, pois precisamos tomar posições, que, muitas vezes, envolvem temas polêmicos. Logo, saber argumentar é muito importante.
O que se vê num panorama mais geral do currículo desenvolvido nas escolas, nos resultados de testes de avaliação nacional, em pesquisas acerca do tema é um resultado aquém das expectativas de formação de sujeitos que apresentem, de fato, um desenvolvimento das competências textual e linguística, visão corroborada na análise proposta.
Bibliografia
Koch, Ingedore G. Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.
Koch, Ingedore G. Villaça & Marcuschi, Luiz Antônio. “Processos de referenciação na produção discursiva”. D.E.L.T.A, Vol. 14, n.º especial (1998).
Koch, Ingedore G. Villaça. A referenciação: Construção discursiva. Ensaio apresentado por ocasião do concurso de Titular em Análise do Discurso do IEL/UNICAMP, dez. 1999a.
Koch, Ingedore G. Villaça. A construção discursiva da referência. Trabalho apresentado no III Colóquio Internacional de Estudos do Discurso. Santiago do Chile, 1999b. (mimeo)
Koch, Ingedore G. Villaça. A referenciação textual como estratégia cognitivo – interacional. In Barros, Kazue S. Monteiro, Produção textual: interação, processamento, variação. Natal: Edufrn, 1999c.
Koch, Ingedore G. Villaça. Expressões referenciais definidas e sua função textual. In Duarte, Lélia Parreira (Org.). Para sempre em mim: homenagem a Ângela Vaz Leão. Belo Horizonte: CESPUC, 1999d.
Koch, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.
Mentis, Michelle. Topic management in the discourse of one normal and one head injured adult [tese de doutorado]. Santa Bárbara : University of California, 1988.
[1] UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pública, estadual, situada no bairro Maracanã, cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
[2] Este trabalho se constitui em continuidade da pesquisa de doutorado. As produções escritas compõem o banco de dados de minha pesquisa. Trata-se de textos do último vestibular (1997) no RJ que propiciou a escrita do tipo de texto argumentativo, do gênero carta argumentativa, texto de meu total interesse porque, efetivamente, tem-se uma clara situação polêmica, uma situação argumentativa, contrariamente, aos textos denominados dissertativos- argumentativos.
[3] Passo a denominar o destinatário do texto produzido como interlocutor.
[4] Mantida a grafia original da letra de música, objeto de discussão.
[5] O Globo, jornal de grande circulação no Brasil.
[6] Passo a utilizar a abreviação SN no lugar da expressão Sintagma Nominal.
[7] Foi mantido o texto original produzido pelo estudante.
[8] Cf. TEDESCO, Maria Teresa. O processo de referenciação e a construção do texto argumentativo. Tese de Doutorado em Linguística. Inédita. Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2002. 199fls. Mimeo.
[9] Postulei, neste trabalho, as funções discursivas em dois níveis, a saber: da seqüência e das menções.
O tratamento morfossintático dos substantivos de origem portuguesa no tétum-praça
Natalia Czopek
Universidade Jaguelónica de Cracóvia
(Polónia)
O nosso objetivo principal é realçar a natureza crioula do tétum-praça, sublinhada tantas vezes por Hull (1999, 2001), descrevendo os ajustamentos morfossintáticos ao sistema do tétum que sofreu o substantivo português. Os exemplos que servirão de base na nossa análise serão extraídos de três textos de índole diferente: do registo escrito de algumas lendas timorenses de tradição oral recolhidas por Artur Basílio de Sá numa coletânea Textos em Teto da Literatura Oral Timorense (1961)[1] e por Davi Borges de Albuquerque no seu trabalho Língua e meio ambiente na literatura oral em língua Tetun, Timor Leste (2012); da palestra dirigida ao Congresso Nacional pelo Prof. Dr. Geoffrey Hull Identidade, Lian no Polítika Edukasionál (2001) e de um texto científico escrito, ou seja, de uns fragmentos da obra de Frédéric Durand Istória Timor-Leste Nian. Husi Pre-istória to’o Atualidade (2009), sendo o corpus enriquecido por exemplos do Dicionário de Tétum-Português de Luís Costa (2000)[2]. Acreditamos que esta amostra de textos diferentes nos proporcionará uma imagem mais completa do elemento português em tétum. O nosso trabalho não pretende de forma nenhuma ser exaustivo, tencionamos apresentar uma análise preliminar que aproveitaremos continuando a investigação sobre este tema.
1. Enquadramento histórico e sociolinguístico
Os primeiros testemunhos escritos sobre a história de Timor-Leste provêm já da época dos portugueses, isto é, são posteriores ao século XVI[3] e, por conseguinte, é-nos bastante difícil reconstruir o passado timorense. Das poucas fontes anteriores acessíveis sabemos apenas que as primeiras vagas de migrações eram melanésias e, mais tarde, austronésias (Durand, 2009: 23); os habitantes da ilha tiveram contacto com os comerciantes chineses, javaneses e, provavelmente, árabes que a referem na sua literatura náutica do século XV. Os portugueses começaram a frequentar as partes da ilha ricas em sândalo, ou seja, principalmente a zona ocidental chamada de Sevião, após a tomada de Malaca em 1511 (Loureiro, 2001: 93-104)[4]. Os primeiros contactos baseavam-se, como de costume, no chamado comércio silencioso com linguagem gestual. Naquela altura, Timor dividia-se em sessenta pequenos reinos agrupados em duas confederações: a dos Belos, a leste, e a dos Baiquenos, a oeste. Perante o perigo da invasão dos povos islamizados das Celebes, alguns reis timorenses, aceitando a fé cristã, declararam-se vassalos do rei português. O primeiro convento da ilha foi fundado em 1633 pelos missionários mas o domínio administrativo português só se consolidou com a nomeação por Lisboa do primeiro governador em 1703[5]. Os reinos favoráveis ao governo português ficaram sob a proteção militar portuguesa contra os invasores asiáticos e os holandeses que começaram a radicar-se na parte ocidental da ilha (Loureiro, Vale de Sousa, Carvalho, 2002: 36.)[6]. No entanto, a presença holandesa na ilha revelou-se cada vez mais forte e em 1769 os portugueses tiveram de mudar a capital de Lifau para Díli[7]. Em 1898, os jesuítas abriram o colégio da Soibada que, mais tarde, veio a ser o centro da educação timorense, mas só desde 1915 foram aparecendo as primeiras escolas primárias. Após a segunda Guerra Mundial, o país ficou bastante destruído e a sua reconstrução revelou-se lenta, dado que Portugal se tinha concentrado nas suas colónias africanas. O caminho à descolonização e à criação de novos partidos políticos abriu-se com o movimento de 25 de abril de 1974 que acabou com o “Portugal multirracial e pluricontinental, uno e indivisível”. No entanto, em 1975, junto com operação militar indonésia contra Timor, começou o período negro da historia timorense, o período de terror, declínio económico, guerrilha e luta constante que acabou só em 2002 com a proclamação da independência (Loureiro, Vale de Sousa, Carvalho, 2002: 37-40).
A história complicada de Timor é uma das razões principais da formação de uma sociedade crioula de enorme diversidade étnica, cultural e linguística[8]. É um país de poliglossia, atualmente são reconhecíveis cerca de 20 grupos linguísticos principais de Timor-Leste, e um número mais reduzido de dialetos, a maioria proveniente da família austronésia ou malaio-polinésia (Loureiro, Vale de Sousa, Carvalho, 2002: 42)[9]. No contexto de uma tal diversidade surge sempre a necessidade de eleição de uma língua franca que, neste caso, é o tétum, a língua dos Belos divulgada pelo liurai de Ué-Hali na sua conquista do leste insular. Tendo cada uma das zonas do país uma língua mais falada no seu território, no distrito de Díli é o tétum que prevalece como meio de comunicação[10]. Vale a pena realçar que Timor-Leste é a única das antigas possessões portuguesas onde uma língua nativa foi elevada ao estatuto de língua oficial.
O tétum, uma língua da família austronésia, parece ter as suas origens na Formosa e, talvez, no sul da China continental. O tétum-térique já tinha sido usado como língua veicular antes da chegada dos portugueses[11], como resultado da conquista anteriormente mencionada. É a variedade tradicional, “mais alta”, conhecida também como o tétum clássico ou verdadeiro, usada na tradição oral pelos mestres da palavra, os lia-na’in[12]. Após a chegada dos portugueses, o tétum-térique integra no seu vocabulário palavras portuguesas e malaias, tornando-se uma língua crioulizada, simplificada, e dando origem ao chamado tétum-praça, conhecido também como tétum-Díli[13]. Durante muito tempo a sua forma escrita permaneceu imperfeita (Castro, 1996: 91-94.)[14]. A posição do tétum fortaleceu-se no período do regime indonésio quando ganhou, junto com o português, o estatuto da língua de resistência[15] e, mais tarde, como a língua mais falada do país, foi eleito para estandardização.
2. Análise dos exemplos encontrados nas fontes escolhidas
A razão mais óbvia de os empréstimos portugueses terem entrado na língua dos timorenses foi a falta das palavras para denominarem objetos desconhecidos, revelando-se o processo de analogia insuficiente na maior parte dos casos. A fonte mais comum de empréstimos para designar novas realidades foi o português (Hull, Eccles, 2001: XIV)[16]. No entanto, as gerações educadas em indonésio, tendem a introduzir no tétum-praça palavras indonésias e nas classes menos educadas podem acontecer interferências com o tétum-térique. Segundo Hull (Golden, 2004: 118)[17], como resultado dos contactos interétnicos, a cultura indígena transformou-se numa cultura híbrida tão complexa que é agora impossível separar a cultura nativa da europeia sem destruir a consciência étnica comum.
Como afirma Dalgado (1988: XXIII), “um termo peregrino não pode incorporar-se numa língua sem se despir do seu carácter heterogéneo, do mesmo modo que um estrangeiro não pode naturalizar-se sem se sujeitar às leis do país”. Decidimos dedicar o nosso trabalho às transformações que sofreram na sua forma e no seu uso os substantivos de origem portuguesa adotados no tétum. Pretendemos começar dedicando um comentário breve às influências portuguesas encontradas na coletânea de Artur Basílio de Sá e no trabalho de Davi Borges de Albuquerque. Como já foi dito, decidimos incluir os dois textos a título de uma comparação introdutória, pois, sendo fortemente enraizados na antiga tradição oral timorense, não admitem tantos empréstimos portugueses. Borges de Albuquerque identifica três géneros textuais da tradição oral tetumófona: o hamulak (oração narrativa em versos usada em cerimónias ritualísticas), ai knananuk (poesia oral usada em festas tradicionais) e ai knanoik (contos populares, mitos de origem ou fábulas com fins educativos). Nos exemplos dos primeiros dois géneros não encontramos nem um empréstimo português porque os textos, na maioria dos casos, se apoiam no léxico próprio, pouco usado no dia-a-dia, ou nos arcaísmos do tétum-térique que atualmente foram substituídos no tétum-praça por vocábulos portugueses. Nos contos que representam o terceiro género, encontramos algumas palavras de etimologia portuguesa que, mesmo assim, são muito pouco numerosas comparando com os textos que vamos analisar a seguir. A sua presença explica-se pelo facto de os contos não serem transmitidos em nenhum registro especial, que não seja a linguagem popular, nem utilizarem recursos estilísticos próprios. Por conseguinte, as pessoas que os transmitem são capazes de introduzir, às vezes, umas palavras portuguesas usadas, provavelmente, no tétum-praça. Nos fragmentos dos cinco contos propostos pelo autor[18], apenas 3 dos oito empréstimos portugueses são substantivos. Os fenómenos linguísticos relacionados com as ditas palavras vão-se repetir e comentar mais pormenorizadamente na parte posterior deste trabalho, a este ponto vamos só incluir as características mais visíveis : agora/agora tempu (duas variantes do mesmo advérbio, uma das quais inclui um substantivo português); animaal/animal sira (hesitação ortográfica resultante, provavelmente, da vontade de sublinhar na fala a vogal acentuada, o contexto é do plural marcado pelo pronome tétum sira-eles/elas); orariu (o h mudo nunca fica grafado e o o final tem valor fonémico). Algumas das palavras citadas não são empréstimos indispensáveis, têm as suas correspondentes timorenses, por exemplo daudaun (agora). Aliás, as duplas formadas por uma palavra nativa e um empréstimo, resultado das interferências linguísticas de falantes bilingues ou plurilingues, não são um fenómeno pouco comum [19].
Nos ai knanoik registrados por Artur Basílio de Sá também não abundam palavras de origem portuguesa. Vejamos os exemplos mais interessantes dos substantivos que encontramos nas sete lendas incluídas no primeiro volume da coletânea: oras wai loro/iha oras ne’e be/oras mei dia/oras ne’e[20] (verão/quando/meio-dia/agora mesmo; a palavra oras provém da portuguesa ‘horas’, fazendo parte de diferentes construções híbridas, algumas têm as correspondentes indígenas, como loro nafahe ona-‘meio-dia’); nia força (‘a sua força’; o termo português usa-se apesar da existente palavra tétum kbiit; se calhar por ser uma interferência acidental, mantém-se a grafia original[21]); reino-reino (um empréstimo português reduplicado para indicar multiplicidade, de acordo com os padrões do tétum mas com grafia original); amo sira (‘senhores’; o vocábulo português ‘amo’ formando o plural por meio do pronome tétum sira-eles/elas); sorte/sorti/sortin (hesitação ortográfica no registro da palavra portuguesa ‘sorte’); bensa (‘bênção’; termo aproveitado para chamar uma nova realidade da religião cristã); sentido (palavra importada sem alteração fonética mas usada com valor morfológico e semântico diferentes[22]); nusu licença (‘pedir licença’; expressão híbrida com grafia original); marinheiro/conselho (grafia original, a grafia estandardizada é com símbolos fonémicos ñ e ll); fó sinal (‘deu sinal’; expressão híbrida). Nota-se, então, por exemplo, uma forte tendência ao hibridismo, característica típica das línguas crioulizadas; tanto empréstimos indispensáveis, designando novas realidades, como interferências que parecem dispensáveis; grafia macarronista mas também casos de assimilação ortográfica ao tétum.
Como afirmam Hull e Eccles (2001: XIV), o tétum-praça é uma língua crioulizada e, como tal, perdeu a maior parte da sua morfologia, exceto uns elementos fossilizados na derivação. As funções morfológicas foram assumidas por vários marcadores e, até um certo ponto, pela sintaxe. Nos dois textos principais do nosso corpus, dado o seu carácter científico, encontrou-se um número grande de substantivos de origem portuguesa que representam diferentes processos do ajustamento ao sistema tétum. Vejamos os fenómenos que achamos os mais interessantes e representativos:
Analisando os exemplos que acabamos de citar, dentro do panorama socio-histórico traçado na primeira parte do trabalho, resulta-nos impossível negar o carácter crioulizado do tétum-praça. Os fenómenos que encontramos no nosso corpus obviamente não concernem todos os processos relacionados com os substantivos de origem portuguesa cujo emprego, de forma geral, após uma adaptação ortográfica, se ajusta à morfossintaxe do tétum. No entanto, defendemos que as características acima enumeradas confirmam o hibridismo do tétum-praça e podem servir de base para análises mais pormenorizadas.
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[1] Os textos recolhidos pelo autor são de puro térum-térique e foram incluídos na nossa análise apenas a termo de comparação, já que os estrangeirismos são aqui raros e aparecem grafados em itálico.
[2] No nosso trabalho não vamos dedicar muito espaço à questão da ortografia mas parece-nos interessante colocar a este ponto que o padrão para a ortografia dos empréstimos lexicais é a pronúncia acroletal, ou seja, a das elites urbanas, normalmente fluentes em português, enquanto Luís Costa (2000: 279) inclui no seu dicionário a pronúncia dos falantes não-escolarizados, não fluentes em português, por exemplo palasi em vez de palásiu.
[3] Destacam-se aqui, por exemplo, os relatos dos cronistas dominicanos frei João dos Santos (Etiópia Oriental de 1609) e frei Luís de Sousa (História de São Domingos 1623-78). Horta Schmidt (1983: 358) afirma, citando Sapir, que o estudo dos empréstimos que trazem em si a marca da sua origem, pode ajudar muito a reconstruir a história de um povo sem escrita.
[4] Os portugueses partiram à conquista da Ásia procurando “cristãos e especiarias”. Timor, ilha “onde nasce o sândalo”, apareceu pela primeira vez na cartografia europeia num mapa desenhado por um cartógrafo jovem Francisco Rodrigues, por volta do ano 1512. O autor afirma que a principal razão dos contactos comerciais dos portugueses e, anteriormente, dos chineses, malaios e javaneses com os timorenses era a procura da preciosa madeira de sândalo, mel, cera e escravos. A primeira viagem portuguesa à ilha teve lugar provavelmente em 1514 ou 1515, mas, durante a primeira metade do século XVI, nenhum estabelecimento português foi fundado naquelas partes, sendo os contactos puramente comerciais. Foram os missionários dominicanos que se estabeleceram como primeiros em Solor, com acesso fácil ao vizinho Timor. A primeira fortaleza portuguesa em Solor construiu-se em 1566, protegendo a comunidade dos ataques dos javaneses e macassáres. A partir dessa fortaleza, os portugueses comerciavam com a ilha de Timor. A fortificação foi abandonada em 1636 como resultado das lutas contra os holandeses.
[5] A presença portuguesa em Timor começa a crescer de forma relevante desde 1640. Durante o período português, a ilha era habitada pelos povos nativos, pelos portugueses eleitos para cargos administrativos ou militares, por uma minoria chinesa e por outra minoria árabe de Hadramaut. Os portugueses eram encorajados para casarem com mulheres nativas, sobretudo as liurai, da realeza local, que se converteram ao cristianismo e começaram a adotar nomes portugueses. Os filhos dessas uniões, de sangue mista, administravam a ilha sendo conhecidos como “portugueses pretos” (Zwarte Portugezen, nome atribuído pelos holandeses) ou topazes, eram educados em português e podiam continuar a sua educação em Portugal. Como pessoas bilingues, eram conhecidos como comerciantes, aventureiros e mercenários. No entanto, do mesmo modo como em África, os manuais usados em Timor não correspondiam à realidade da ilha, o que confirma Luís Cardoso no seu romance Crónica de uma travessia (1997). Os pais do autor falavam duas línguas nativas distintas e na sua comunicação do dia-a-dia aproveitavam o tétum-praça como língua comum. Assim, o português nessa sociedade crioula era sobretudo a língua da elite colonial e da minoria chamada de assimilados, pessoas educadas incorporadas na administração do país. Cf. as opiniões dos timorenses citadas em Albarran de Carvalho (2001: 71): “Português é uma língua que os nossos antepassados também conheceram, através da qual do mar nos chegou a religião.”
[6] No entanto, os tributos elevados que os reis indígenas tinham de pagar ao rei português originaram uma série de levantamentos contra o domínio português entre os anos 1722 e 1731.
[7] A fronteira oficial entre os territórios sob o domínio português e holandês fixou-se só em 1915. Os holandeses anexaram os enclaves portugueses em Timor-Oeste, menos o de Oecússi. Umas informações sobre as relações luso-holandesas na ilha no século XVIII podem ser encontradas em Thomaz (2001: 118-124).
[8] Borges de Albuquerque (2012) aproveita aqui os critérios da ecolinguística, ou seja, trata a língua “não apenas como um sistema de fatores internos, mas também fatores ambientais mais amplos: [...] é o todo formado pela população e as inter-relações de linguagem entre seus membros com o território [...] que formam o chamado Ecossistema Fundamental da Língua”. No território timorense, entraram em contacto, ao longo dos séculos, entre outros, os malaios, melanésios, indianos de Goa, chineses, habitantes de Macau, soldados africanos de Angola e Moçambique, portugueses e indonésios, contribuindo à formação de um sistema de três níveis: o das línguas locais, da língua veicular e da língua de administração e cultura (Thomaz, 1985: 323).
[9] Gunn (2001), Borges de Albuquerque (2012) e Golden (2004) mencionam cerca de 16 línguas, algumas com uma ampla variação dialetal; Hull (1999), Esperança (1997) e Costa (2001) 15, Albarran de Carvalho (2001) 18, Taur Matan Ruak (2001) mais de 30 dialetos e Taylor-Leech (2008) 32 variedades linguísticas indígenas em uso, 5 das quais se desenvolveram originalmente entre as populações mais antigas da ilha. As outras, incluído o tétum, foram trazidas pelos imigrantes proto-malaios por volta de 2500 A.C. Lipscomb (s.d.: 28-29) sublinha que esta situação se reflete na literatura timorense, sobretudo na poesia, já que a maioria dos poetas compõe em mais do que uma língua e não é raro misturarem idiomas dentro de uma obra poética. Das línguas nativas de Timor-Leste, as mais populares na poesia são o tétum, o fataluku e o makassae, apesar de serem ainda línguas de reduzida tradição escrita. No caso do tétum, por exemplo, a história como língua escrita reduzia-se antigamente a materiais religiosos e alguns artigos nos jornais e revistas timorenses.
[10] Para informações mais pormenorizadas sobre as áreas de uso das línguas de Timor-Leste veja-se Castro (1996: 91-94).
[11] O papel da ainda mais antiga língua franca da zona do Pacífico e Índico atribui-se ao malaio. Como resultado disso, muitas palavras malaias entraram no português e no tétum-térique já no século XV (ex. barlaque, tuaca, palapa, etc.). O nome Malai era dado pelos timorenses a todo tipo de estrangeiro. Entre os séculos XVI e XIX, um crioulo malaio-português, chamado de bahasa panteij, foi de uso estendido entre Madagáscar e as Filipinas.
[12] Os linguistas distinguem ainda a terceira variedade, o tétum-Belu, falado dos dois lados da fronteira com o Timor-Oeste (Taylor-Leech, 2008: 155). Albarran de Carvalho (2001: 65) adiciona dois dialetos de tétum: Bekais e Habu. O tétum-térique, falado no sul do país, pelo seu carácter tradicional, não tem a flexibilidade de adotar novos vocábulos abstratos e técnicos, como o faz o tétum-praça. Do ponto de vista histórico, as duas variedades desenvolveram-se após a divisão do antigo reino Welulik em dois reinos: Wehali, no oeste, com o tétum-Belu e Webiku, no sudeste, com o tétum-térique.
[13] Bloomfield, citado por Honório do Couto (2000: 39), identifica o termo ‘língua crioulizada’ com o ‘crioulo’: “Quando o jargão se torna a única língua do grupo dominado, ele é uma língua crioulizada”. A maior influência do português sobre o tétum-praça efetuou-se após a mudança da capital para Díli em 1769. Cf. Gunn (2001: 18), apoiando-se nos resultados das pesquisas de Raphael das Dores e outros lexicógrafos, observa que, a meados do século XIX, muitas centenas de palavras portuguesas entraram no tétum-praça. Assim, uma característica que difere o tétum-praça do tétum-térique é o uso abundante de nomes abstratos emprestados. Os primeiros dicionários com estes empréstimos registrados foram o dicionário português-tétum de 1889 de Sebastião Maria Aparício Silva e, precisamente, o dicionário tétum-português de 1891 de Raphael de Dores, um purista que criticava o uso corrente dos empréstimos, proporcionando uma lista de palavras nativas para substituí-los. Costa (2001: 64) proporciona o número de 450 palavras portuguesas no dicionário tétum-português. Hull (2001b: 87) afirma que, atualmente, nessa língua híbrida, os elementos neolatinos predominam sobre os indígenas. Cf. Costa (2001: 6) constata que a posição do tétum como língua franca foi consolidada pelos missionários que, aceitando a conversão ao catolicismo dos reinos falantes do tétum, o adaptaram como língua de missionação, de oração e de catequese, promovendo, ao mesmo tempo a escrita com a publicação de Catecismo Badak (1907), Catecismo badak na oração ba loro-loron (1907), Resumo da História Sagrada Português e Tétum (1908), Dicionários Teto-Português (1900) e Português -Teto (1889) ou Cartilha Tétum-Português (1916).
[14] Em finais do século XIX, os jesuítas traduziram para tétum uma parte da Bíblia e em 1981 o tétum foi adotado na liturgia, já que o português tinha sido banido pelo regime indonésio. Atualmente, as línguas oficiais de Timor Leste são o português e o tétum, sendo o inglês e o bahasa indonésio aceites como línguas de trabalho e as outras línguas indígenas protegidas como línguas nacionais. Osório de Castro menciona ainda um crioulo de base portuguesa de Bidau, o chamado broken portuguese, falado como língua própria no extremo ocidental de Díli, aonde deve ter chegado quando a capital foi transferida de Lifau e onde deve ter influenciado a formação do tétum-Díli. Para mais informações sobre a polémica na imprensa australiana e indonésia sobre a escolha do português e tétum como línguas oficiais de Timor-Leste veja Golden (2004) e Taylor-Leech (2008). A primeira autora realça que o tétum ainda não dispõe de estruturas linguísticas para funcionar como língua de governo, comércio moderno, educação ou lei. No entanto, Esperança (2001: 166) defende que cada língua esta perfeitamente equipada para as necessidades comunicativas da comunidade a que pertence. Observem-se também as considerações valiosas sobre a situação linguística atual de Timor-Leste em Hull (1999: 1-7).
[15] A espinha dorsal do movimento de resistência eram os maubere, campesinos não educados em português, que falavam as suas línguas nativas. Assim, o tétum-praça, como língua veicular, facilitou a comunicação entre eles. O jornal da Fretilin era impresso em português e, pela primeira vez fora do contexto religioso, em tétum romanizado. Taur Matan Ruak (2001:41) enumera dois fatores pelos quais o português se tornou a língua de resistência: a presença da classe dirigente lusófona e o facto de ser a única língua ortograficamente desenvolvida, o idioma oficial definido desde sempre e uma das armas para contrapor ao malaio no âmbito da luta cultural. Declarada a independência em 1975, a Fretilin proclamou o português a língua oficial de Timor. No entanto, durante a ocupação indonésia que começou dez dias mais tarde, o seu uso foi proibido. Pessoas ouvidas a falarem português eram acusadas de serem espias e simpatizantes com o movimento de resistência. A dita proibição precipitou a evolução do tétum no símbolo da identidade nacional.
[16] De acordo com um dos princípios do Instituto Nacional de Linguística, os empréstimos malaio-indonésios que se podem ainda encontrar no tétum coloquial das pessoas de formação indonésia devem ser excluídos da língua padrão a favor dos termos nativos ou portugueses.
[17] Trata-se aqui tanto do hibridismo linguístico, como do sincretismo religioso (religião cristã e animista) e cultural (cultura mítica insular e racional europeia, música, cozinha, etc.). Cf. também as opiniões dos falantes nativos de tétum sobre a natureza híbrida da sua língua, citadas por Taylor-Leech (2008: 166-173), de acordo com as quais o tétum ganhou uma certa vida com a entrada dos empréstimos portugueses que são a alma do tétum, que o enriquecem de modo que evolua numa língua completa, posto que ainda é visto por muitos como uma língua deficiente, que precisa de ser modernizada para funcionar no mundo moderno.
[18] Trata-se dos ai knanoik titulados Manumatadador, Buibabukulasak, O macaco e o rato, O macaco e o crocodilo e O cachorro e o macaco, sendo os primeiros dois antropónimos.
[19] Cf. por exemplo belun/amigu; tulun/ajuda; hatais/ropa; bainhira/kuandu; tobafatin/kama; hahú/komesa; maka’as/forte, etc.
[20] Cf. o uso oras ne’e, daudaun e agora (tempu) dos textos anteriores.
[21] Hull (1999) sublinha que, apesar do carácter fonémico e inclusivo da ortografia padronizada, podem-se ainda encontrar vários exemplos de ortografia não estandardizada, macarronista, não assimilada aos padrões do tétum, que é mais uma prova do seu hibridismo, de uma certa arbitrariedade e da índole crioulizada.
[22] Cf. Costa (2000: 297): o vocábulo é adotado como substantivo mas, em alguns contextos, passa a ser usado como verbo com significado de ‘acautelar-se’, ‘ter cuidado’, ‘tomar sentido’.
[23] Por outro lado, os substantivos de origem portuguesa sofrem sufixação tétum, como no caso do sufixo–teen que denota características negativas (espertu-teen - espertalhão).
[24] Cf. Albarran de Carvalho (2001: 73): Mais uma prova do hibridismo da cultura tétum é a antroponímia. A maioria esmagadora dos nomes e apelidos têm origem portuguesa e ficam oficialmente registados, mas há um sistema paralelo de nomes nas diferentes línguas nacionais, nem sempre esquecidos na família. No entanto, os nomes são diferentes dos de outros países da CLP: usam-se nomes comuns na Idade Média ou no Renascimento (Sancha, Urraca, Alarico, Eleutério, etc.); diminutivos registados como nomes (Anita, Tó Zé, etc.); apelidos promovidos a nomes (Guimarães); rareiam os patronímicos, sendo o Soares e o Gonçalves os mais comuns, notam-se os processos de cruzamento ou siglação (Nelida, Agusmanto, etc.).
[25] Cf. Hull, Eccles (2001: 18-20): A forma do marcador foi assimilada ao pronome pessoal nia (ele/ela) mas provém do verbo malaio punya (possui). A ordem dos elementos é sekretária nia telefone (secretária seu telefone) ou telefone sekretária nian (telefone secretária dela). Numa série de substantivos com significado de possessão, o marcador aparece posposto a todos os elementos da série.
[26] No caso de justaposição de substantivos, o segundo deles adquire o significado adjetival.
[27] Cf. Morgado Choupina (2011: 65-68). No português, nem todos os nomes admitem contraste do género, mas todos têm um género sintático, ou implícito. Sendo assim, o género é uma categoria arbitrária, não relacionada intrinsecamente com a noção do sexo. Como exemplo podem servir os nomes sobrecomuns, comuns de dois géneros ou pares como a mulher/o mulherão. No caso dos nomes epicenos, porém, pode-se falar da variação do sexo e não do género.
Os diminutivos no português europeu e no português do Brasil. Um estudo quantitativo
Przemysław Dębowiak
Universidade Jaguelónica de Cracóvia
(Polónia)
1. Introdução
O objetivo do presente estudo é analisar e comparar os diminutivos no português europeu (PE) e no português do Brasil (PB). Em termos gerais, a formação e as diferentes funções dos diminutivos na língua portuguesa já se encontram pormenorizadamente descritas nas gramáticas (Cunha & Lindley Cintra, 1984: 92–95, 199–200; Villalva, 2003: 958–962) e em trabalhos particulares (p.ex. Wagner, 1952; Pottier, 1953; Hasselrot, 1957: 273–279; Skorge, 1956–1957, 1958; Ettinger, 1974: 184–232, 1980: 92–99; Soares da Silva, 2003–2006). Dentro da família das línguas românicas, o português passa por um idioma em que o emprego dos diminutivos é abundante, ou até abusivo em alguns registos, p.ex. na linguagem corrente e familiar. Além disso, há estudos que apontam para uma maior frequência de diminutivos no PB, bem como nos dialetos setentrionais do PE (cf. Hasselrot, 1957: 277). Contudo, essas opiniões costumam formular-se sem o apoio de dados numéricos.
Quanto à formação, é sabido que em português prevalecem os diminutivos sintéticos, criados com sufixos diminutivos, entre os quais predomina decididamente -inho, junto com a sua variante contextual -zinho[1]. Funcionam também, embora muito mais escassos, os diminutivos analíticos criados com adjetivos-atributos (pequeno e sinónimos). A estatística e as observações de Hasselrot (1957: 274–276) são instrutivas a esse respeito.
Porém, dois problemas que nos interessam ainda não foram abordados ou suficientemente desenvolvidos na literatura:
Essas questões constituem o ponto de partida do presente trabalho.
2. Metodologia
Como material de pesquisa, foram selecionados seis textos paralelos de meados do século XX, a saber, as traduções diretas para ambas as variantes do português de um texto francês e de dois romances polacos. São[2]:
De todos os seis textos foram extraídos vários tipos formais de diminutivos:
Por sua vez, foram excluídos da análise:
A análise do material consistiu em reunir os dados numéricos em tabelas, definir algumas variáveis[3] e, com base nisso, elaborar estatísticas. Todas as contagens foram feitas manualmente.
Em primeiro lugar, deu-se o número absoluto de todos os diminutivos que se apresentam em cada variante, incluindo as repetições. São somas independentes uma da outra, contadas separadamente para o PE [PE] e o PB [PB]. Elas serviram sobretudo para contar a frequência com a qual os diminutivos ocorrem nos textos analisados: [FPE], [FPB]. A medida de frequência é o número de diminutivos por 10 000 unidades tipográficas, isto é, porções do texto contidas entre dois espaços. O número total de unidades tipográficas em cada um dos textos foi estimado a partir do número médio de unidades tipográficas [U] por uma página completa [P] do texto respetivo. Por sua vez, o número de unidades tipográficas numa página completa de texto é a média das somas de unidades tipográficas em cinco páginas consideradas como representativas para o texto dado.
Em segundo lugar, estabeleceu-se o número global das ocorrências dos diminutivos [O] em ambas as traduções de cada texto. Por uma ocorrência do diminutivo percebe-se a situação em que numa das traduções (seja para o PE ou PB) figura um diminutivo ao qual pode – mas não deve – corresponder um diminutivo na outra tradução. No exemplo da Tabela 1, o número global de ocorrências de diminutivos [O] é quatro, ao passo que na estatística para o PB se levam em conta também quatro ocorrências, e para o PE – só duas (pequeno quarto, pequeno compartimento); por outras palavras, [O] = 4, [PB] = 4 e [PE] = 2. A taxa [O] permite estabelecer a proporção entre o número absoluto dos diminutivos no PE e PB.
PE |
PB |
|
1 |
pequeno quarto |
quartinho |
2 |
pequeno compartimento |
quartinho |
3 |
compartimento |
quartinho |
4 |
quarto |
quartinho |
Tabela 1. Exemplo de um diminutivo no PB e os seus vários equivalentes no PE.
As estatísticas elaboradas assim dão conta do número absoluto dos diminutivos nos textos estudados. No entanto, a fim de determinar o grau de criatividade das duas variantes do português na formação dos diminutivos, é preciso recorrer a uma análise qualitativa, isto é, àquela na qual os diminutivos que se repetem, abundantes nas traduções estudadas, são tratados como um só exemplo de ocorrência.
Portanto, tendo eliminado todas as repetições, obteve-se as taxas [PE-r] (número de diminutivos diferentes que aparecem na tradução para o PE) e [PB-r] (número de diminutivos diferentes que aparecem na tradução para o PB). Além disso, contou-se o número de ocorrências diferentes [O-r] em ambas as traduções, onde uma ocorrência do diminutivo é a situação em que a um e ao mesmo diminutivo numa das traduções (seja para o PE ou PB) corresponde um e o mesmo equivalente, não forçosamente um diminutivo, na outra tradução. Então, como ocorrências independentes de diminutivos são levadas em conta por exemplo todas as quatro equivalências da Tabela 1, embora na estatística para o PE sejam contados dois diminutivos (pequeno quarto e pequeno compartimento), e para o PB – só um (quartinho); por outras palavras, [O-r] = 4, [PB-r = 1] e [PE-r] = 2.
Para cada variante, dá-se a percentagem que representam os tipos particulares de diminutivos, nomeadamente, sintéticos, analíticos e mistos.
O lado semântico do material estudado desempenhou um papel secundário na análise.
3. Análise do material
Os dados numéricos, incluindo os diminutivos repetidos, vêm apresentados na Tabela 2 (O Principezinho / O Pequeno Príncipe), Tabela 3 (Pornografia) e Tabela 4 (Ferdydurke).
PE |
PB |
|||
número total de diminutivos em ambas as traduções |
[O] = 54 |
|||
número total de diminutivos na tradução, incluindo: |
[PE] = 40 74,1% [O] |
[PB] = 32 59,3% [O] |
||
|
36 |
90,0% |
27 |
84,4% |
|
1 |
2,5% |
5 |
15,6% |
|
3 |
7,5% |
0 |
0,0% |
número de páginas de texto completas [P] |
61 |
27 |
||
número médio de unidades tipográficas numa página [U] |
242 |
482 |
||
número médio de unidades tipográficas no texto inteiro [P×U] |
14 762 |
13 014 |
||
frequência média da ocorrência de diminutivos no texto: número de diminutivos por 10 000 unidades tipográficas |
[FPE] = 27,1 |
[FPB] = 24,6 |
Tabela 2. Número absoluto de diminutivos (O Principezinho / O Pequeno Príncipe).
PE |
PB |
|||
número total de diminutivos em ambas as traduções |
[O] = 147 |
|||
número total de diminutivos na tradução, incluindo: |
[PE] = 95 64,6% [O] |
[PB] = 102 69,4% [O] |
||
|
83 |
87,4% |
89 |
87,3% |
|
9 |
9,5% |
13 |
12,7% |
|
3 |
3,1% |
0 |
0,0% |
número de páginas de texto completas [P] |
165 |
181 |
||
número médio de unidades tipográficas numa página [U] |
357 |
319 |
||
número médio de unidades tipográficas no texto inteiro [P×U] |
58 905 |
57 739 |
||
frequência média da ocorrência de diminutivos no texto: número de diminutivos por 10 000 unidades tipográficas |
[FPE] = 16,1 |
[FPB] = 17,7 |
Tabela 3. Número absoluto de diminutivos (Pornografia).
PE |
PB |
|||
número total de diminutivos em ambas as traduções |
[O] = 561 |
|||
número total de diminutivos na tradução, incluindo: |
[PE] = 503 89,7% [O] |
[PB] = 428 76,3% [O] |
||
|
482 |
95,8% |
397 |
92,8% |
|
17 |
3,4% |
27 |
6,3% |
|
4 |
0,8% |
4 |
0,9% |
número de páginas de texto completas [P] |
252 |
313 |
||
número médio de unidades tipográficas numa página [U] |
411 |
313 |
||
número médio de unidades tipográficas no texto inteiro [P×U] |
103 572 |
97 969 |
||
frequência média da ocorrência de diminutivos no texto: número de diminutivos por 10 000 unidades tipográficas |
[FPE] = 48,6 |
[FPB] = 43,7 |
Tabela 4. Número absoluto de diminutivos (Ferdydurke).
Os dados numéricos que não levam em conta os diminutivos repetidos vêm apresentados na Tabela 5 (O Principezinho / O Pequeno Príncipe), Tabela 6 (Pornografia) e Tabela 7 (Ferdydurke).
PE |
PB |
|||
número total de diminutivos em ambas as traduções |
[O-r] = 42 |
|||
número total de diminutivos na tradução, incluindo: |
[PE-r] = 22 52,4% [O-r] |
[PB-r] = 27 64,3% [O-r] |
||
|
18 |
81,8% |
22 |
81,5% |
|
1 |
4,5% |
5 |
18,5% |
|
3 |
13,6% |
0 |
0,0% |
Tabela 5. Número de diminutivos diferentes (O Principezinho / O Pequeno Príncipe).
PE |
PB |
|||
número total de diminutivos em ambas as traduções |
[O-r] = 118 |
|||
número total de diminutivos na tradução, incluindo: |
[PE-r] = 66 55,9% [O-r] |
[PB-r] = 57 48,3% [O-r] |
||
|
54 |
81,8% |
44 |
77,2% |
|
9 |
13,6% |
13 |
22,8% |
|
3 |
4,5% |
0 |
0,0% |
Tabela 6. Número de diminutivos diferentes (Pornografia).
PE |
PB |
|||
número total de diminutivos em ambas as traduções |
[O-r] = 319 |
|||
número total de diminutivos na tradução, incluindo: |
[PE-r] = 222 69,6% [O-r] |
[PB-r] = 165 51,7% [O-r] |
||
|
201 |
90,5% |
134 |
81,2% |
|
17 |
7,7% |
27 |
16,4% |
|
4 |
1,8% |
4 |
2,4% |
Tabela 7. Número de diminutivos diferentes (Ferdydurke).
Os sufixos diminutivos empregados nos diminutivos sintéticos e mistos estudados, incluindo todas as traduções para cada variante do português, estão apresentados na ordem alfabética na Tabela 8 (em números absolutos – com repetições) e Tabela 9 (em números relativos – sem repetições).
sufixo diminutivo |
número absoluto (com repetições) |
|||
PE |
PB |
|||
Q |
% |
Q |
% |
|
-acho |
3 |
0,5 |
2 |
0,4 |
-ebre |
3 |
0,5 |
0 |
0,0 |
-(z)eco |
15 |
2,4 |
2 |
0,4 |
-ejo |
11 |
1,8 |
30 |
5,8 |
-elho |
2 |
0,3 |
0 |
0,0 |
-elo |
2 |
0,3 |
0 |
0,0 |
-ete |
3 |
0,5 |
1 |
0,2 |
-eto |
13 |
2,1 |
9 |
1,7 |
-icho |
3 |
0,5 |
3 |
0,6 |
-ico |
13 |
2,1 |
6 |
1,2 |
-iço |
1 |
0,2 |
1 |
0,2 |
-im |
2 |
0,3 |
2 |
0,4 |
-(z)inho |
429 |
69,8 |
383 |
73,8 |
-ino |
18 |
2,9 |
9 |
1,7 |
-isco |
8 |
1,3 |
4 |
0,8 |
-(z)ito |
30 |
4,9 |
16 |
3,1 |
-oco |
1 |
0,2 |
1 |
0,2 |
-oilo |
1 |
0,2 |
0 |
0,0 |
-ola |
23 |
3,7 |
23 |
4,4 |
-(z)ote |
23 |
3,7 |
21 |
4,0 |
-ucho |
11 |
1,8 |
6 |
1,2 |
total |
615 |
100 |
519 |
100 |
Tabela 8. Sufixos diminutivos portugueses (repetições incluídas).
sufixo diminutivo |
número relativo (sem repetições) |
|||
PE |
PB |
|||
Q |
% |
Q |
% |
|
-acho |
1 |
0,4 |
1 |
0,6 |
-ebre |
1 |
0,4 |
0 |
0,0 |
-(z)eco |
7 |
2,9 |
2 |
1,1 |
-ejo |
2 |
0,8 |
1 |
0,6 |
-elho |
1 |
0,4 |
0 |
0,0 |
-elo |
2 |
0,8 |
0 |
0,0 |
-ete |
2 |
0,8 |
1 |
0,6 |
-eto |
5 |
2,0 |
5 |
2,9 |
-icho |
2 |
0,8 |
2 |
1,1 |
-ico |
6 |
2,4 |
3 |
1,7 |
-iço |
1 |
0,4 |
1 |
0,6 |
-im |
1 |
0,4 |
1 |
0,6 |
-(z)inho |
185 |
75,5 |
139 |
79,4 |
-ino |
1 |
0,4 |
1 |
0,6 |
-isco |
3 |
1,2 |
1 |
0,6 |
-(z)ito |
8 |
3,3 |
2 |
1,1 |
-oco |
1 |
0,4 |
1 |
0,6 |
-oilo |
1 |
0,4 |
0 |
0,0 |
-ola |
4 |
1,6 |
5 |
2,9 |
-(z)ote |
8 |
3,3 |
7 |
4,0 |
-ucho |
3 |
1,2 |
2 |
1,1 |
total |
245 |
100 |
175 |
100 |
Tabela 9. Sufixos diminutivos portugueses (repetições excluídas).
Contam-se em soma 21 sufixos diminutivos, dos quais quatro (-ebre, -elho, -elo, -oilo) não aparecem nas traduções para o PB. Por um lado, isso demonstra a riqueza e a diversidade dos ditos sufixos na língua portuguesa. Por outro lado, porém, é de notar que a maioria deles só se apresenta ocasionalmente no corpus. Em ambas as tabelas foram colocados em negrito os números que confirmam a presença de um determinado sufixo em pelo menos 2,0% da totalidade das palavras reunidas para cada variante do português.
A Tabela 8 aponta para a frequência com a qual aparecem os sufixos no PE e PB nos textos analisados. Em ambos domina claramente -(z)inho, estando presente em por volta de 70% dos exemplos. Depois os resultados variam, mas nem sequer se podem comparar com o precedente. No que diz respeito ao PE, o segundo lugar é ocupado por -(z)ito (4,9%), o terceiro ex aequo por -ola e -(z)ote (3,7%). Além disso, apenas -ino (2,9%), -(z)eco (2,4%), -eto e -ico (2,1%) excedem o limiar de 2,0%. Quanto ao PB, o segundo lugar é ocupado por -ejo (5,8%) e o terceiro por -ola (4,4%). Ultrapassam os 2,0% mais dois sufixos: -(z)ote (4,0%) e -(z)ito (3,1%). Neste ranking, o PE mostra-se mais diversificado, com uma hegemonia ligeiramente menos acentuada de -(z)inho.
A Tabela 9 dá conta da produtividade e da vitalidade de cada sufixo no PE e PB. A predominância de -(z)inho está evidenciada novamente, mas desta vez de uma forma ainda mais aguda (mais de três quartos dos exemplos). No PE, os sufixos que estão presentes em pelo menos 2,0% das palavras, são: -(z)ito (3,3%), -(z)ote (3,3%), -(z)eco (2,9%), -ico (2,4%) e -eto (2,0%). É curioso observar que apenas os sufixos mais frequentemente empregados no PE têm variantes com o interfixo -[z]-. No que toca ao PB, além de -(z)inho, mais três sufixos incluem-se no grupo dos mais usados: -(z)ote (4,0%), -eto (2,9%) e -ola (também 2,9%). Esses dados indicam que, a fim de formar os diminutivos, tanto em Portugal como no Brasil recorre-se com a maior frequência a -(z)inho que ultrapassa de longe os restantes sufixos. Comprovam também uma maior diversificação dos sufixos que ainda apresentam alguma vitalidade no PE; no PB, o repertório deles parece menos rico, ou, no mínimo, menos explorado.
A discrepância entre os dados das duas tabelas (8 e 9) mostra igualmente a universalidade de alguns e a especialização de outros sufixos. Aos primeiros pertencem aqueles que são os mais produtivos e figuram em vocábulos diferentes; os demais só formam uma ou duas palavras do corpus que, no entanto, podem ser frequentes no texto. Tal é o caso de -ino no PE e -ejo no PB: não são produtivos, pois cada um só aparece numa palavra (pequenino e vilarejo, respetivamente), mas estas, por seu turno, figuram numerosas vezes nos textos analisados (18 e 30). Isso faz com que os sufixos -ino e -ejo também sejam considerados, em números absolutos, como frequentes.
Observe-se que a maioria dos sufixos enumerados forma substantivos. Dentro do corpus, excetuam-se os sufixos:
Além de formar substantivos, alguns sufixos servem para derivar igualmente:
Escusado será dizer que o sufixo -(z)inho é universal, formando substantivos (concretos e abstratos), adjetivos, advérbios, verbos e pronomes diminutivos, p.ex. mesinha, traiçãozinha, levezinha, pertinho, passarinhar, nadinha.
Os diminutivos analíticos formam-se através de meios externos à palavra sujeita à diminuição. São sobretudo os adjetivos tais como: pequeno, ínfimo, miúdo, minúsculo, diminuto, exíguo, tênue, mas também o morfema de composição mini-. Os dados relativos a esse respeito, resumidos para os diminutivos analíticos e mistos na ordem alfabética, figuram na Tabela 10.
marca de diminutivo |
número absoluto (com repetições) |
número relativo (sem repetições) |
||
q |
% |
q |
% |
|
diminuto |
1 |
1,2 |
1 |
1,6 |
exíguo |
1 |
1,2 |
1 |
1,6 |
ínfimo |
1 |
1,2 |
1 |
1,6 |
mini- |
1 |
1,2 |
1 |
1,6 |
minúsculo |
2 |
2,3 |
1 |
1,6 |
miúdo |
3 |
3,5 |
1 |
1,6 |
pequeno |
76 |
88,4 |
56 |
88,9 |
tênue |
1 |
1,2 |
1 |
1,6 |
total |
86 |
100 |
63 |
100 |
Tabela 10. Marcas do diminutivo analítico (incluindo todas as traduções para ambas as variantes do português).
Como se verifica, em português, é o adjetivo pequeno que desempenha o papel da marca de diminutivo analítico mais produtiva e empregada com a maior frequência. Os lusofalantes recorrem a outros vocábulos mais raramente.
4. Conclusões
O número de ocorrências dos diminutivos, junto com a sua frequência, dependem claramente do caráter do texto, tanto na tradução portuguesa como na brasileira. As duas taxas são as mais altas no romance Ferdydurke que apresenta uma linguagem um tanto excêntrica. Segue-se o texto de Saint-Exupéry que tem uma linguagem suscetível de aparecer em livros para crianças. O estilo mais neutral de Pornografia reflete-se bem num número relativamente pequeno de diminutivos[4].
Mas concentremo-nos nas diferenças entre as duas variantes do português. O número absoluto de ocorrências de diminutivos ([PE] versus [PB]) é maior para o PE em dois textos: de 17,5% em Ferdydurke e 25,0% em Le Petit Prince. Por outro lado, quantitativamente há 7,4% mais diminutivos no PB em Pornografia. Em suma, são as traduções para o PE que contam mais diminutivos do que as para o PB.
Se não se levarem em conta os diminutivos repetidos, ou seja, se se olhar do ponto de vista da criatividade da língua na formação diminutiva ([PE-r] versus [PB-r]), os resultados invertem-se, pelo menos parcialmente: notam-se mais diminutivos diferentes no PE nos dois romances de Gombrowicz (com a predominância de 15,8% em Pornografia e 34,5% em Ferdydurke) e, desta vez, mais palavras diminutivas em Le Petit Prince na versão brasileira (22,7%). As traduções para o PE contêm de novo mais diminutivos do que as para o PB.
No que diz respeito à frequência de diminutivos ([FPE] versus [FPB]), ela concorda com o número absoluto deles nos textos analisados, mas a distância entre as duas variantes do português reduz-se. Quer isso dizer que a dita frequência é maior – por um lado – no PE em Ferdydurke (de 11,2%) e em Le Petit Prince (de 10,2%) e – por outro lado – no PB em Pornografia (de 9,9%). Tirando uma média global de todas as frequências ([FPE] = 30,6 versus [FPB] = 28,7), pode constatar-se que os diminutivos aparecem 6,6% mais frequentemente no PE do que no PB. É uma taxa pequena, mas surpreendente, dado que geralmente se acha que o PB usa mais diminutivos do que o PE.
A percentagem dos diminutivos sintéticos, analíticos e mistos é semelhante em todas as três traduções para cada variante do português separadamente, independentemente de se incluírem ou excluírem as repetições. Os resultados médios estabelecidos a partir dos três textos figuram na Tabela 11 e Tabela 12.
PE |
PB |
|
diminutivos sintéticos |
91,1% |
88,2% |
diminutivos analíticos |
5,1% |
11,5% |
diminutivos mistos |
3,8% |
0,3% |
Tabela 11. Percentagem de diminutivos, tendo em conta as repetições.
PE |
PB |
|
diminutivos sintéticos |
84,7% |
80,0% |
diminutivos analíticos |
8,5% |
19,2% |
diminutivos mistos |
6,6% |
0,8% |
Tabela 12. Percentagem de diminutivos, as repetições excluídas.
Tanto no PE como no PB reinam os diminutivos sintéticos. Há consideravelmente menos diminutivos analíticos e mistos e acrescente-se que no PB estes últimos são extremamente raros em favor dos diminutivos puramente analíticos. Como se comprova, a língua portuguesa não costuma recorrer às formações diminutivas analíticas porque os sufixos são muito eficazes, sobretudo no PE. Aliás, as taxas aqui estabelecidas parecem-se com as estatísticas de Hasselrot (1957: 274, 280–281) segundo o qual os diminutivos sintéticos constituem em português cerca de quatro quintos da totalidade dos diminutivos (86% em textos portugueses, 77% em traduções para português).
Em ambas as variantes do português, submetem-se à diminuição sobretudo os substantivos. Também o fazem os adjetivos e os advérbios (geralmente reforçando o seu sentido), os verbos (tornando-se assim iterativos) e, raramente, os pronomes.
Em conclusão, os dados obtidos permitem afirmar que os diminutivos aparecem ligeiramente mais frequentemente no PE do que no PB; a sua frequência é de 6,6% mais alta na primeira variante. Embora essa taxa se refira a três textos literários selecionados que não têm de ter forçosamente correspondência na linguagem corrente e familiar dos lusofalantes de Portugal e do Brasil, é bastante instrutiva acerca do sujeito tratado. Além disso, os mesmos dados ilustram a hierarquia dos meios formais que ambas as variantes do português utilizam para formar diminutivos, desvendando assim uma maior diversificação desses meios no PE.
5. Textos estudados
Gombrowicz, Witold. Ferdydurke. Trad. Tomasz Barcinski. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Gombrowicz, Witold. Ferdydurke. Trad. Maja Marek e Júlio do Carmo Gomes. Porto: 7 Nós, 2011.
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[1] Os sufixos com o interfixo -[z]- (-zinho, -zito, -zeco e outros) juntam-se geralmente às palavras terminadas em sons nasais (irmão), vogais acentuadas (café), consoantes (par), etc. Vejam-se os detalhes em: Skorge, 1956–1957: 68–87; Ettinger, 1972: 107–108, 114 e 1974: 201–202; Villalva, 2010: 790–792.No entanto, não se encontrando em distribuição complementar, as formas -inho e -zinho são consideradas por alguns pesquisadores como sufixos independentes, devido à sua especialização semântica: -inho seria mais afetivo e menos pejorativo, ao passo que -zinho tenderia a exprimir o sentido pejorativo com menor afetividade, pelo menos no PB (Oliveira, 2010: 12–13, 19). Não tencionamos abordar essa questão no presente estudo.
[2] Citam-se, entre parênteses, as datas da primeira publicação dos textos originais.
[3] Os nomes das variáveis colocam-se entre colchetes.
[4] Não se deve esquecer que a forma definitiva dos textos analisados resulta também das escolhas subjetivas dos tradutores.
Compreensão lexical no PLE: transferência vs. interferência
no reconhecimento de palavras próximas no caso dos falantes de espanhol.
Rocío Alonso Rey
Universidade de Salamanca
(Espanha)
1. Introdução
A transferência, definida como a influência da L1 na aprendizagem e uso da L2 (Gass e Selinker, 1983: 20), é um dos fenómenos mais estudados da aquisição de segundas línguas (ASL) (Ringbom, 1987; Odlin, 1989; Arabski, 2006; Jarvis e Pavlenko, 2008) mas também um dos mais complexos e elusivos, tanto no que diz respeito à própria definição do fenómeno como ao seu funcionamento, limites e condições (Jarvis, 2000). Este fenómeno tem especial relevo num dos campos de pesquisa do Português como Língua Estrangeira ou como Segunda Língua[1], nomeadamente, na especialidade de Português para Falantes de Espanhol (PFE). Esta subárea de conhecimento é constituída por um conjunto de estudos que, desde diferentes perspetivas tais como a didática, a ASL ou a linguística contrastiva, contribuem para o ensino de português a este conjunto de falantes (Carvalho, 2002; Simões, Carvalho e Wiedemann, 2004; Wiedemann e Scaramucci, 2008; Alonso Rey, 2012).
Dentro PFE o fenómeno da influência da L1 é considerado como um “processo cognitivo e criativo tanto inevitável como inegável” (Simões, Carvalho e Wiedemann, 2004: 21), com um grau de incidência que torna o PFE um balão de ensaio privilegiado para a ampliação de conhecimentos sobre a transferência (Wiedemann e Scaramucci, 2008: 20). Por outro lado, desde os trabalhos iniciais no campo do PFE, é assumida a existência de uma relação estreita entre a proximidade linguística e o fenómeno da interferência na produção e na aprendizagem (Lombello, 1983; Almeida, 1995; Ferreira, 1995, 1997; Santos, 1998). Esta proximidade atuaria como causa material da influência da L1, diferente do mecanismo ou mecanismos de transferência que operam como causa efetiva dessa influência (Alonso Rey, 2014), .
Os estudos recentes sobre a transferência lexical no PFE são escassos e estão relacionados em geral com a produção: Dias (2011) com uma classificação linguística de erros que distingue entre erros de transferência e erros de desenvolvimento ou Alonso Rey (2013) com uma classificação psicolinguística de diferentes classes de erros de interferência. A maioria dos dados disponíveis sobre o léxico decorrem de análises de erros da produção em geral (Jensen, 2004; Carinha, 2011; Grannier e Carvalho 2001; Carrasco 2011). No que diz respeito à compreensão lexical, os estudos são ainda mais escassos, destacando Henriques (2000) e a sua análise do grau de intercompreensão no texto escrito.
Dentro do domínio da aquisição de segundas línguas, na última década, diversos especialistas apontam para a existência de diferentes perspetivas sobre o fenómeno da transferência. Assim é possível falar de diferentes mecanismos ou processos de influência da L1 (Alonso Alonso, 2002; Jarvis, 2009; Agustín, 2010), isto é, diferentes classes ou modos de transferência. No entanto, nos estudos realizados tanto no campo da ASL como no campo do bilinguismo, essa distinção não tem sido aplicada no momento de analisar as produções dos falantes. Neste sentido, Grosjean (2011) faz um apelo para o desenvolvimento desta linha de trabalho, apresenta transferência e interferência como fenómenos diferentes e aponta para a necessidade de isolá-los, reconhecendo a dificuldade que na prática supõe fazer essa distinção. No âmbito do PFE, Alonso Rey (2012) utiliza esta distinção na classificação dos erros de produção de aprendentes de nível inicial na categoria verbal. Essa classificação é revisada atendendo ao fenómeno da interferência do ponto de vista da produção em Alonso Rey (2013). Neste trabalho é apresentada uma prova experimental piloto que foi desenvolvida como estudo preliminar para verificar se há evidências da ocorrência de transferência e de interferência na compreensão e se é possível estabelecer as bases para contrastar e quantificar a incidência destes fenómenos.
Este assunto é de especial importância no PFE, dado que grande parte das propostas pedagógicas e estudos sobre o processo da aprendizagem deste campo estão baseadas no que se denomina como modelo de interferência (Carvalho, 2002). Um modelo ou perspetiva que se revela insuficiente para a compreensão do fenómeno da influência da L1 desde o momento em que considera a transferência como fenómeno homogéneo. Um modelo que deve ser ultrapassado optando por um modelo “de construção ligada” à L1[2], no positivo e no negativo, que contemple a existência de diferentes mecanismos psicolinguísticos por trás dessa influência da L1 na construção e uso da L2.
2. Fundamentos teóricos.
2.1. Transferência vs. interferência.
A distinção teórica entre dois fenómenos de influência de L1 como processos diferenciados encontra-se nos próprios inícios da ASL como campo de investigação vinculada à teoria da interlíngua e ao desenvolvimento de uma visão postconductista da transferência. Corder (1983) distingue entre (i) empréstimo, como uma estratégia comunicativa mediante a qual o aprendente, quando o conhecimento da L2 é insuficiente, toma emprestados elementos da L1 para construir a mensagem e (ii) transferência estrutural, um fenómeno de aprendizagem relacionado com a construção do conhecimento L2. Também desde muito cedo, estes dois fenómenos foram postos em relação com a noção de competência e performance chomskiana, por exemplo Sharwood-Smith (1983). Kohn (1986) considera que a influência da L1 pode apresentar-se sob duas formas, como processo de aprendizagem ou como processo de produção. Assim a transferência como processo de aprendizagem estaria relacionada com o input, nomeadamente com a transformação criativa do input em conhecimento e como processo consistiria no uso do conhecimento L1 na produção.
Faerch e Kasper (1987) distinguem entre transferência na comunicação e transferência na aprendizagem. A transferência na comunicação manifesta-se (i) como production procedure que consiste na ativação do conhecimento L1 na planificação da mensagem em diferentes níveis linguísticos e com diferentes graus de controlo cognitivo (ii) como reception procedure, segundo o qual o aprendente interpreta os enunciados L2 em base ao seu conhecimento L1, nomeadamente falam em “inferência interlingual” (Faerch e Kasper, 1987: 113). Pela sua vez, a transferência na aprendizagem é interpretada como uma forma de fazer hipóteses sobre as regras e itens da L2, a partir dos conhecimentos da L1 ou como resultado da interação entre esses conhecimentos e o input que recebe.
Ecke (2001) considera também que os erros podem resultar de problemas de competência ou de performance que, em termos psicolinguísticos, corresponderiam a erros de representação e erros de processamento respetivamente. Em relação com os primeiros defende a hipótese da estratégia parasitaria do desenvolvimento léxico, segundo a qual o primeiro passo é estabelecer a forma de representação e, a seguir, identificar um equivalente de tradução.
Grosjean (2011) distingue entre transferência como fenómeno estático, que reflete traços permanentes de uma língua na outra, e transferência como fenómeno dinâmico, que consiste em intrusões efêmeras de uma língua na outra. As interferências estáticas estão ligadas à competência em L2 e podem aparecer em todos os níveis do conhecimento linguístico. As interferências dinâmicas, pela sua vez, estariam relacionadas com o processamento e seriam explicadas por mecanismos de codificação.
No presente trabalho, no domínio formal lexical, os termos transferência e interferência são interpretados tomando como base esta distinção geral. No entanto, tendo em conta que a transferência como fenómeno da aprendizagem, do desenvolvimento da competência, está ligada ao processamento do input de novos elementos na compreensão, será utilizado o termo transferência, por extensão, como forma de tratamento do input novo (diferente da forma de tratamento do input conhecido que se corresponde com a interferência).
Gráfico 1. Transferência e interferência em relação com a compreensão no domínio lexical formal.
Assumindo que na compreensão o reconhecimento dos itens L2 pode sofrer a influência da L1, a hipótese é que essa influência pode operar sobre (i) elementos conhecidos com input prévio ou (ii) elementos desconhecidos sem input prévio. A influência da L1 sobre os elementos desconhecidos consistiria no uso dos conhecimentos L1 na interpretação do enunciado, o que Faerch e Kasper (1987) denominam “inferência interlingual” e seria o primeiro passo para a transferência como processo de aprendizagem. No entanto, durante a compreensão, o aprendente encontra também no input unidades conhecidas da L2, unidades com input prévio que podem sofrer também a influência da L1. Este é um problema no uso de unidades L2 que já fazem parte da interlíngua. Os conhecimentos não são estáveis e, da mesma forma que ocorre na produção (salvando as distâncias), essas unidades conhecidas podem sofrer a influência da L1.
A transferência, portanto, é considerada como um fenómeno da aprendizagem pelo qual algumas unidades ou elementos armazenados como conhecimento L2 apresentam traços L1. Esse fenómeno está ligado na compreensão com um modo de processamento para o reconhecimento de palavras desconhecidas ou sem input prévio da L2 que se baseia nos conhecimentos existentes de L1. Esse modo ou fenómeno de influência da L1 é denominado, por extensão, transferência. Pela sua vez, a interferência está ligada com o reconhecimento de palavras conhecidas e a influência da L1 consiste na intrusão de elementos dessa língua no processamento das unidades L2.
2.2. Processamento lexical.
Relativamente à natureza desses modos de processamento diferente, nomeadamente no que diz respeito ao processamento dos novos itens lexicais (relacionado com a transferência), é assumido aqui que o léxicon L2 é fortemente dependente do léxicon L1 nos estádios iniciais da aprendizagem (Jiang, 2002; Hall, 2002 ou o modelo de competição[3]). Na construção do léxicon da LO, inicialmente os itens da L2 são apenas formas lexicais ou lexemas (Jiang, 2000) e a aquisição da forma, na que se centra este trabalho, precede à aquisição do lema. Perante o novo vocabulário, a informação existente é utilizada para fazer hipóteses sobre o significado, assim os novos lexemas são associados com os equivalentes de tradução L1 (fase I no Gráfico 2). Só depois (fase II no Gráfico 2) são estabelecidos enlaces diretos entre forma e conceito (Hall, 2000; Ringbom, 1987; Hernández et al. 2005) . Com o aumento da proficiência, a ativação das palavras L2 será feita sem mediação da L1, a partir dos conceitos, como defendem, por exemplo, de Bot (2004), o RHM[4] ou o modelo de competição[5].
Gráfico 2. Fases na aquisição das unidades lexicais baseado em Hernández et al. 2005
Alguns dos itens que o aprendente recebe como input apresentam coincidências ou parecenças formais entre L1 e L2, é o caso dos cognados. Essas coincidências com formas existentes da L1 são detectadas automaticamente pelo processador linguístico e as novas formas L2 são postas em relação com as formas conhecidas da L1 (Hall, 2000; Sunderman y Kroll, 2006; Djikstra et al. 1999): a coincidência formal facilitaria o reconhecimento e a aprendizagem da palavra (Agustín, 2010; Ringbom, 1987, 2006). Dentro dos cognatos, simplificando a classificação de Jarvis (2008), estes pares lexicais podem ter um significado semelhante (total ou parcialmente coincidente) ou um significado diferente (falsos amigos). No caso dos primeiros, nos que é centrado este trabalho, quando os significados são equivalentes no contexto e apresentam formas muito próximas podem surgir problemas formais no reconhecimento do item.
A hipótese da transferência formal, defendida aqui, estabelece que é possível que as diferenças formais não sejam percebidas ou sejam ignoradas pelo processador atribuindo-lhe ao input L2 a forma da L1, isto é, o sistema assume que se trata da mesma forma lexical. A condição seria a proximidade formal, ficando de fora do escopo deste estudo a interação com o significado.
No que diz respeito ao fenómeno de interferência, do ponto de vista do processamento lexical, é assumido que as palavras de várias línguas concorrem entre elas, em termos de ativação, para obter saída ou ser escolhidas, tanto na produção como na compreensão (de Bot, 2004; modelo RHM[6]; modelo BIA[7] e modelo de competição[8]). O processamento não é seletivo do ponto de vista da língua e os candidatos das duas línguas estão ativados em paralelo. Esta ativação ocorre quando o input apresenta traços partilhados pelas formas de ambas as línguas.
A hipótese da interferência estabelece que, do ponto de vista do processamento, os elementos formalmente próximos de L1 e L2 concorrem entre eles, por causa da ativação recebida, e a forma da L1 pode ser finalmente escolhida. Assim, a diferença entre transferência e interferência se corresponderia com diferentes configurações de IL que determinam diferentes condições de processamento ou diferentes procedimentos, embora o resultado seja em ambos os casos o recurso à L1.
3. Objetivos.
O objetivo geral deste estudo é, partindo do pressuposto da existência de dois fenómenos diferentes de influência da L1, transferência e interferência, verificar se estes dois fenómenos se produzem na compreensão, observar como se manifestam e em que medida, e se há indícios de uma incidência diferente destes fenómenos no reconhecimento das palavras.
As questões que se levantam são: (i) há influência lexical da L1 nas palavras conhecidas (interferência) e desconhecidas (transferência)? (ii) há diferenças entre os resultados dos dois fenómenos?
No que diz respeito à primeira questão, a partir da hipótese da transferência lexical formal, que estabelece que o conhecimento lexical L1 pode ser utilizado no reconhecimento de palavras L2, a predição é que a unidade L1 pode condicionar o processamento que o sistema faz das novas unidades: o input novo da L2 pode ativar uma unidade L1 formalmente próxima que poderá ser selecionada para o reconhecimento. A hipótese de trabalho é que, perante uma unidade desconhecida, se o processador consegue isolar o significante, pode ocorrer que a diferença entre o input e a forma do léxicon seja ignorada e a unidade seja lexicalizada com o formato da L1, isto é, pode haver transferência. Se a hipótese for certa, a tendência no teste será para reproduzir a palavra L2 com a forma L1, quando reconhecida.
A hipótese de interferência lexical estabelece que este é um fenómeno de processamento em que estão ativadas e entram em concorrência a unidade da L1 e a unidade da L2. Perante uma palavra conhecida, quando uma unidade L1 e uma unidade L2 são próximas, o processador pode selecionar para esse input a forma L1 em vez da forma certa L2. O facto de que a forma tenha recebido input prévio, se tenha trabalhado na sala de aulas e faça parte do conhecimento do aprendente não garante a produção correta. A hipótese de trabalho é que no processamento das palavras L2 próximas formalmente da L1, mesmo quando fazem parte da IL, pode ocorrer a influência da L1 e poderá haver resultados desviados com formato L1 dependendo do grau de automatização ou fixação da forma lexical.
No que diz respeito à segunda questão, dado que são modos de processamento ou procedimentos diferentes, que operam com a configurações de IL diferentes, os resultados do tratamento de unidades desconhecidas (suscetíveis de transferência) e as unidades conhecidas (suscetíveis de interferência) poderiam ser diferentes. Nomeadamente, dado que a transferência é relacionada com uma primeira fase de aprendizagem em que a forma L2 é desconhecida e é lexicalizada com a forma L1, os resultados esperados seriam, dentro do grupo, de uma tendência forte para o uso da forma L1. No entanto, no caso da interferência, dado que se corresponde com uma segunda fase na aprendizagem em que o estudante já recebeu input da unidade, caberia esperar menos erros em conjunto desde o momento em que se trataria de uma fase de variabilidade, em que está em curso a automatização das ligações formais das unidades L2 e alguns aprendentes estariam em condições de produzir corretamente a unidade.
4. Participantes.
O participantes na prova piloto foram 18 estudantes da Universidade de Salamanca (USAL) que estudam Língua Portuguesa I como matéria de livre escolha. Trata-se de uma disciplina de iniciação à língua portuguesa, dirigida a aprendentes sem conhecimentos prévios de português que é lecionada no primeiro semestre do ano três horas por semana. Estes 18 informantes foram escolhidos a partir de uma ficha de perfil que foi preenchida pelos estudantes da matéria no início do curso. Nessa ficha eram pedidas informações relativas a: o local de origem, a idade, a língua ou línguas maternas, os estudos que cursam na USAL, os conhecimentos prévios de português (por contacto, parentesco ou por formação) e os conhecimentos de outras L2. Como critérios de escolha foram tidos em conta os conhecimentos prévios e a língua materna e foram descartados os estudantes que tinham conhecimentos prévios de português e/ou que tinham outra língua materna para além do espanhol. A aplicação do critério da língua materna tem como finalidade o estabelecimento de um grupo homogéneo no que diz respeito a esta variável, controlando assim que, caso houver transferência, esta se produz pela influência do espanhol e não pela influência de uma outra língua materna. No que diz respeito ao critério de conhecimentos prévios, a finalidade é assegurar o controlo do input novo, isto é, que o aprendente está efetivamente ante uma palavra desconhecida.
Trata-se, portanto, de um grupo homogéneo no que diz respeito ao perfil linguístico composto de 18 falantes monolingues de espanhol como língua materna que não possuem conhecimentos prévios de português, de idades compreendidas entre os 21 e os 28 anos, que procedem de diferentes pontos da geografia espanhola, que estudam diferentes cursos e especialidades na universidade e que possuem conhecimentos de outras L2 (um mínimo de duas).
5. Materiais e procedimento.
Para verificar a influência da L1 no tratamento das unidades com e sem input prévio foi desenhado um teste de reconhecimento lexical (v. Anexo). Os estudantes tinham de identificar durante uma audição um conjunto de palavras e preencher os espaços em branco na transcrição desse texto. Os espaços em branco correspondiam a uma unidade lexical desconhecida e várias unidades lexicais conhecidas, além de outras unidades que funcionaram como distratores. Foi escolhido este tipo de atividade de reconhecimento lexical porque (i) permite a elicitação de dados da compreensão mesmo no momento de ser desenvolvido o processo (ii) era uma atividade com a que os aprendentes estavam familiarizados, os textos lacunares foram utilizados com anterioridade na sala de aulas e (iii) podia ser feita na sala de aulas como uma atividade mais da matéria minimizando o impacto do facto de estar a ser objeto de estudo.
O texto que foi utilizado no teste é um diálogo pertencente ao manual de Oliveira et al. (2006, p. 62-63) Aprender português 1, com as correspondentes faixas de áudio (duas) do CD que acompanha o manual. Nesse diálogo entre um vendedor, um comprador e um acompanhante é desenvolvida uma situação comunicativa de compras numa loja de roupa. A escolha de um texto (face a um conjunto isolado de palavras o frases) justifica-se por ser representativo da forma em que se produz o contacto com o léxico tanto fora como, também em grande medida, dentro da sala de aulas. As palavras não se apresentam -e, portanto, não são processadas- isoladamente, mas como parte de um discurso significativo, relacionadas com outras unidades e obedecendo a umas intenções comunicativas. É óbvio que uma voz gravada eletrónicamente não é o caso ideal para reproduzir uma situação real de comunicação mas no mínimo garante a adequação nos pontos anteriores.
A escolha deste texto em particular é justificada por cumprir o requisito de conter palavras com e sem input prévio e corresponder aos conteúdos, objetivos e progressão de aprendizagem da unidade correspondente do programa. No que diz respeito às palavras que foram escolhidas como lacunas do texto, correspondem a um conjunto de itens lexicais que se constituem como palavras-chave para a compreensão das informações relevantes nessa situação comunicativa. As palavras objeto de análise são: (i) Classe T: a forma <apertadas> como uma unidade sem input prévio ou desconhecida; (ii) Classe I: as formas <escura> e <curtas> como unidades com input prévio ou conhecidas.
O critério de distinção entre a classe T (suscetível de transferência) e a classe I (suscetível de interferência) é a existência ou não de input prévio. Esta variável foi controlada pelo investigador no seu papel de docente da matéria, papel que lhe permitiu determinar os dados de input que receberam os aprendentes. Os materiais utilizados na sala de aulas foram cuidadosamente revisados e, ao longo do curso, o trabalho não presencial fora da sala de aulas foi canalizado através de um conjunto de atividades complementares disponibilizadas no Studium, a plataforma Moodle da USAL, também sob o controlo do docente.
Dentro da classe T, a forma L2 <apertadas> apresenta uma contrapartida L1 <apretadas>. Do ponto de vista linguístico/formal, é um cognado, atendendo às definições de Jarvis (2008) e Ringbom (2007). Esta palavra foi escolhida porque (i) cumpre o requisito de input zero, já que não aparecia previamente nos materiais de ensino; (ii) é uma unidade com proximidade formal mas não é idêntica na sequência de fonemas/grafemas e possui um significado coincidente neste contexto, de maneira que a forma é suscetível de transferência formal e o significado não evitaria o reconhecimento do item como unidade lexical, (iii) o item L2 não tem fonemas consonânticos que obscureçam o reconhecimento da sequência e dificultem a lexicalização e (iv) a diferença entre L1 e L2 é mínima, está apenas na ordem das unidades.
Na classe I, são analisados os resultados dos cognatos <escuro> e <curto>. Estas palavras foram escolhidas porque (i) cumprem o requisito de ter recebido input prévio, foram apresentadas e trabalhadas na sala de aulas e nas atividades complementares na unidade anterior (ii) são unidades com proximidade formal mas não idênticas na sequência de fonemas/grafemas (iii) não há fonémas consonânticos que obscureçam o reconhecimento da sequência (tirando o -s de <escuro>) e dificultem a lexicalização e (iv) a diferença entre L1 e L2 é mínima, uma diferença fonológico/grafemática na vogal átona inicial e na vogal tónica respetivamente .
O teste foi feito após 11 semanas de formação como atividade da unidade 4 dedicada às roupas e às compras. Os estudantes receberam o texto com as lacunas e uma folha de resposta com os itens numerados. Em primeiro lugar, foi contextualizada a tarefa na sequência das lições, foi explicado em que consistia a atividade e foram dadas as instruções de preenchimento dos materiais. A seguir, foram feitas duas audições das faixas do CD, a primeira com o foco na compreensão global, a segunda com o foco no preenchimento das lacunas. Finalmente foram recolhidas as folhas de resposta e a atividade foi revisada na sala de aulas.
Na classificação dos erros, as formas de superfície são interpretadas em termos do processamento lexical considerando as seguintes categorias e subcategorias:
(A) Não reconhecimento da unidade (NR): o processador não conseguiu encontrar uma unidade lexical (seja porque não isolou uma sequência de fonemas, seja porque a sequência não é reconhecível para o processador lexical, isto é, porque não encontrou uma forma e um conteúdo que atribuir ao input) e não se produz compreensão. O aprendente não responde dado que não houve identificação da unidade.
(B) Reconhecimento da unidade (R) com três opções (i) reconhecimento a partir do input da palavra objeto, com a forma da L2 (ii) reconhecimento de equivalente formal L1: o processador consegue isolar uma sequência que identifica como o equivalente formal L1 da palavra objeto e (iii) reconhecimento de uma forma diferente: o processador consegue isolar uma sequência que identifica como uma unidade diferente da palavra objeto (excluído o equivalente formal L1), estas respostas são inseridas na categoria “outros”.
6. Resultados e discussão.
O número de respostas (v. Tabela 1) dentro da categoria R foi de 43 e houve 10 casos em que o espaço foi deixado em branco, que correspondem à categoria NR. Das 43 respostas com reconhecimento, 11 são respostas corretas, isto é, o aprendente reproduziu corretamente a palavra objeto de input da L2. O número de respostas erradas, casos em que a forma reproduzida não se corresponde com a forma esperada da língua objeto, é de 32.
Classe T |
Classe I |
|||||||
APERTADAS |
ESCURA |
CURTAS |
||||||
Forma |
Freq |
Forma |
Freq |
Forma |
Freq |
|||
R |
Respostas certas |
apertadas |
0 |
escura |
4 |
curtas |
7 |
11 |
Respostas desviadas |
apretadas |
10 |
oscura |
11 |
cortas |
7 |
32 |
|
apretas |
1 |
|||||||
cortadas |
1 |
segura |
1 |
courtas |
1 |
|||
NR |
Não responde |
- |
5 |
- |
2 |
- |
3 |
10 |
Tabela 1. Respostas.
6.1. Resultados da classe T
Os resultados no processo de reconhecimento de palavras sem input prévio segundo do ponto de vista do processamento lexical são recolhidos na tabela 2.
APERTADAS |
|||
Categoria |
Forma |
Freq. |
Per. |
L2 |
apertadas |
0 |
0 |
L1 |
apretadas apretas |
11 1 |
92 |
Outras |
cortadas |
1 |
8 |
Tabela 2. Resultados classe T.
A palavra reproduzida com maior frequência pelos aprendentes foi a palavra L1 <apretadas>, de forma que a transferência lexical está por cima de 90%. Nesta classe foi incluído o resultado <apretas>, que foi interpretado como L1 porque a aprendente fala a variedade andaluza do espanhol[9]. Essa sequencia poderia ter sido identificada fonologicamente com a forma /a.pre.´tas/ dessa variedade (embora na escrita deveria ser reproduzida com a mesma forma que na norma castelhana) e, em último termo, apresenta a sequência <pre> caraterística da L1 frente a sequência própria da LO <per>. A forma correta <apertadas> não se verificou em nenhum dos participantes. Por último, dentro deste grupo, há um caso em que a sequência foi identificada como correspondente a uma outra palavra: <cortadas>. Este resultado não invalida a hipótese de transferência L1, ao contrário, apoia a visão geral da aprendizagem e uso da L2 como um processo dinâmico de construção ligada aos conhecimentos existentes no léxicon: todos os conhecimentos, sejam L1, L2 ou de uma outra L2 estão disponíveis e guiam o reconhecimento. Quando se produz apenas um reconhecimento parcial de uma sequência, o léxicon oferece soluções possíveis tiradas de todos esses conhecimentos disponíveis. Neste caso particular, esse reconhecimento parcial seria de uma sequência <--rtadas> e é muito revelador porque na forma selecionada <cortadas> o <r> ocupa o lugar próprio que tem na sequência de input. Isto indica que o <r> é reconhecido no lugar correspondente da sequência mas nos casos de transferência essa posição é ignorada pela imposição da forma L1.
Verifica-se, portanto, nos casos estudados, a transferência com uma tendência muito forte que ultrapassa 90%. Um outro facto a destacar é que não se encontra em nenhum caso a forma certa da L2.
6.2. Resultados da classe I
Os resultados no processo de reconhecimento das palavras com input prévio segundo o ponto de vista do processamento lexical são indicadas na tabela 4.
ESCURA |
CURTAS |
|||||
Classe |
Forma |
Freq. |
Per. |
Freq. |
Per. |
|
L2 |
escura |
4 |
25 |
Curtas |
7 |
47 |
L1 |
oscura |
11 |
69 |
Cortas Courtas |
8 |
53 |
Outras |
segura |
1 |
6 |
Tabela 3. Resultados classe I.
Na palavra <escura> o resultado mais frequente é a forma desviada L1 <oscura> com uma percentagem de 69%, enquanto a produção correta corresponde a um 25%. O resultado <segura> é considerado como um caso de reconhecimento desviado. Trata-se de um lexema que não se corresponde com o cognato L1 e obedeceria a um reconhecimento parcial da sequência (como no caso de <cortadas>) que permite ao léxicon disponibilizar uma unidade.
Na palavra <curtas> as percentagens tanto de respostas certas como de respostas desviadas estão próximas de 50%. O resultado desviado <courtas>, que é considerado como lexema L1, teria duas possíveis interpretações: poderia ser (i) um híbrido lexical, segundo a classificação de Alonso (2013), em que a ativação em paralelo dos dois lexemas é resolvida no nível de codificação fonológico/grafemática com a inserção dos dois elementos em conflito; ou pode ser interpretada como (ii) uma adaptação lexical a partir do lexema L1 com o reconhecimento das alternativas <o>/ <ou> para /o/ na L2. Em ambos os dois casos há interferência do lexema L1, embora pertençam a classes diferentes. Na primeira interpretação seria um caso de interferência de hibridação (que não pertence ao nível de escolha de lexema ou empréstimo mas implica a ativação do lexema L1 que causa o desvio) e no segundo caso seria um caso de interferência de adaptação (que implica um erro na escolha de lexema ou empréstimo).
Os dados indicam, portanto, que a interferência é um fenómeno que está a desviar a produção e a frequência de ocorrência indica uma incidência notável desta na compreensão (entre 53% e 69%) mas com casos de reconhecimento correto.
6.3. Contraste classe T e classe I.
Quando contrastados os resultados entre as duas classes de palavras, é observada uma percentagem maior de erros no caso da transferência, de 92% , face aos casos de interferência, que variam entre 69% e 53%. A transferência apresenta uma incidência mais alta na compreensão do que a interferência, que indica que as palavras desconhecidas ou sem input prévio parecem mais suscetíveis de sofrer a influência lexical da L1.
Reconhecimento de forma |
||||
Classe |
Caso |
Forma L2 |
Forma L1 |
Outras |
T |
apertadas |
0 (0%) |
12 (92%) |
1 |
I |
escura |
4 (25%) |
11 (69%) |
1 |
curtas |
7 (47%) |
8 (53%) |
0 |
Tabela 5. Contraste classe T e classe I
Por outro lado, nos casos de interferência, como apontava a hipótese, aparecem indícios de reconhecimento correto que indicam a presença do elemento no léxicon: entre 25% e 47% são respostas certas L2. Pelo contrário, nos casos de transferência é observada uma tendência muito forte para a não identificação correta da forma L2, com 0% de respostas certas. A ativação da forma L1 em paralelo parece que estaria a dificultar em grande medida o reconhecimento correto do item.
7. Conclusões.
Os resultados do teste de compreensão indicam que há influência da L1 no reconhecimento das formas lexicais muito próximas. Estas unidades podem ser interpretadas pelo processador como unidades com forma L1, tanto se a unidade é conhecida como desconhecida. Por outro lado, há indícios de que esta influência se reflecte de forma diferente em termos quantitativos nessas duas classes de unidades (com e sem input prévio), o que implica que poderiam ser considerados como dois fenómenos distintos do ponto de vista do processamento, denominados aqui como transferência e interferência. A influência da L1 como processo de transferência que opera sobre unidades próximas sem input prévio verificou-se com a escolha da forma equivalente L1 em mais de 90% das ocorrências destes aprendentes de nível inicial, com um 0% de reconhecimento correto. A influência da L1 como processo de interferência atingiu entre 69% e 53% e apresentou umas percentagens de reconhecimento correto que variam entre 25% e 47%. A pesar das limitações deste estudo, em que a prova piloto é aplicada a um grupo reduzido de participantes e com um número reduzido de palavras objeto, há indícios de que se trata de dois fenómenos diferentes. A aplicação a mais larga escala deste tipo de testes na compreensão poderia servir para apresentar evidências sólidas da distinção. Por outro lado, a ampliação do número das palavras objeto permitiria aprofundar no grau de parecença e nos limites da proximidade para a intervenção da influência da L1.
Finalmente, a existência de fenómenos distintos de influência L1 tem fortes implicações do ponto de vista pedagógico: dado que as unidades respondem a diferentes configurações de interlíngua e são processadas de forma diferente, as estratégias de melhora ou recondução do processamento também serão diferentes. Esta possibilidade tem especial relevo no PFE por causa da atenção que se tem dado à interferência nas propostas para uma metodologia específica ou com especificidades (Almeida, 1995; Carvalho, 2002; Grannier, 2014). Assim se um erro de transferência está relacionado com o desconhecimento de uma unidade, requer de estratégias e atividades orientadas para a construção de novos conhecimentos, nomeadamente com foco na forma, que permitam que o processador registe a existência de uma diferença entre os itens L1 e L2. No caso dos erros de interferência, as diferenças entre L1 e L2 fazem parte do conhecimento e o problema está na fixação no uso de formas L2 com as que estão a concorrer os cognatos L1. Não se trata de utilizar, portanto, estratégias de construção ou registo de novos conhecimentos mas de estratégias e atividades de automatização ou reforço das ligações L2.
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Anexo
Atividade utilizada como teste de compreensão
[1] Os termos língua estrangeira (LE) e língua segunda (L2) são utilizados aqui indistintamente.
[2] Mas ligado também a todo o conhecimento linguístico armazenado, tanto L1 como de outras L2, e em interação com os dados da L2.
[3] MacWhinney (1988, 1989, 2008)
[4] Revised Hierarquical Model (Kroll et al., 2002; Sunderman e Kroll, 2006)
[5] V. nota 1
[6] V. nota 2
[7] Bilingual Interactive Activation Model (Djikstra et al., 1999)
[8] V. nota 1
[9] Dado que foi verificado na ficha de perfil do participante.
Folha de respostas
Respostas
Texto 1: camisola, camisolas, preta, 38, azul escura, experimentar
Texto 2: camisola, castanhas, baratas, cinzentas, apertadas, curtas, maior
Ensino de vocabulário na aula de Português Língua Estrangeira
Sofia Oliveira Dias
Universidade de Salamanca
(Espanha)
1. Introdução
No âmbito do ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras (LE), o ensino do léxico foi, durante muito tempo, relegado para um segundo plano. Em palavras de Bartol Hernández (2010: 85): “Hasta hace muy poco el léxico ha sido considerado el hermano pobre de la gramática, que era la que concitaba la máxima atención por parte de los docentes”. Neste sentido, professores e alunos não partilham uma visão comum. Para os primeiros, o problema centra-se na gramática; para os segundos, as palavras são muito importantes. Desta forma, os docentes não são partidários de ensinar palavras, enquanto que os alunos sentem a necessidade de aprendê-las (Bartol Hernández, 2010).
Folse (2004) refere que a aprendizagem de uma língua envolve numerosos aspetos, como, por exemplo, a pronúncia, a escrita, a sintaxe e a pragmática, sendo o mais importante o estudo do seu vocabulário. E este foi o aspeto mais negligenciado no ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira (Meara, 1980).
No entanto, nas últimas décadas, são vários os autores que reivindicam o papel central do vocabulário no processo de aprendizagem de uma língua.
E este é também o objetivo deste artigo. Nas linhas que se seguem caracterizar-se-á o papel do vocabulário ao longo dos diferentes métodos de ensino, seguindo-se a apresentação das características necessárias, segundo Appel (1996), a qualquer método para o ensino de vocabulário. Para finalizar, apresentar-se-ão algumas propostas para o ensino do mesmo na sala de aula.
2. O vocabulário ao longo dos métodos[1] de ensino
2.1. Do método gramática-tradução ao método audiolingual
O primeiro método a ser aplicado ao ensino de línguas modernas foi o método gramática-tradução. Surge a finais do século XVIII na Prússia e segue o modelo usado para o ensino de línguas clássicas, como o latim e o grego (Zimmerman, 1997). Desenvolve-se durante o século XIX e dominou o ensino de línguas até meados do século XX (Melero Abadía, 2000).
Para este método, a língua é um sistema de regras, que devem ser ensinadas de forma dedutiva a partir de textos escritos. O ensino da língua baseia-se na aplicação de regras gramaticais e na tradução da língua materna (L1) à língua estrangeira (LE). Os materiais utilizados na sala de aula reduzem-se ao livro de texto e ao dicionário bilingue. Desta forma, dá-se ênfase à leitura e à escrita.
As atividades principais dos alunos são exercícios de compreensão escrita, ditados sobre um tema gramatical, tradução e memorização de regras.
O vocabulário é visto como um elemento secundário e a sua aprendizagem consiste na memorização de palavras em quantidade suficiente para poder praticar as estruturas sintáticas. Este apresenta-se em listas de palavras, em ditados populares e frases idiomáticas. Na sua aprendizagem, põe-se especial ênfase na correção da gramática.
O professor assume um papel de protagonista, cuja função é proporcionar conhecimentos linguísticos e corrigir os erros. O aluno, por sua vez, desempenha um papel pouco participativo, limitando-se a executar as instruções dadas pelo professor, a memorizar as regras gramaticais e o vocabulário, a ler e a traduzir.
Com o movimento da Reforma, surgem novas propostas para o ensino das línguas e, com elas, críticas ao método vigente. Melero Abadía (2000) diz que um dos principais representantes deste movimento, Wilhelm Viëtor,
criticaba que se enseñara una lengua viva con la que se comunicaba la gente, con medios y reglas de una lengua muerta. En su opinión, ninguna lengua moderna debería ser enseñada con este método. [...] criticaba también que se desmenuzara una lengua en componentes aislados sin sentido, en tanto argumentaba que una lengua no se compone de palabras aisladas yuxtapuestas, sino de frases (Melero Abadía, 2000: 40).
Este movimento, apesar de não dar origem a um método propriamente dito, apresenta várias propostas metodológicas e é a base para o desenvolvimento de novas formas de ensino, das quais o método direto é o principal representante.
O método direto rompe com os moldes anteriores, dando ênfase à língua oral e à presença exclusiva da língua estrangeira na sala de aula, isto é, o ensino da língua realizava-se “diretamente” na língua alvo, rejeitando, assim, a constante dependência da língua materna, tão presente no método anterior.
O método direto surge em finais do século XIX, alcançando maior difusão na primeira metade do século XX, tendo substituído o método gramatical e dado origem ao método audiolingual.
Este método caracteriza-se pelo predomínio da oralidade (contrastando com o tradicional predomínio dos textos escritos), pelo uso da fonética para conseguir uma boa pronúncia, pelo ensino da gramática de forma indutiva e pelo ensino do vocabulário na própria LE por meio de associações e nunca recorrendo à língua materna do aluno.
Desta forma, “la enseñanza se realiza por medio de la conversación en la lengua meta. Aprender la lengua extranjera debe “ocurrir”, como en la lengua materna, esencialmente por el oído, el órgano receptivo de la lengua” (Melero Abadía, 2000: 48).
O professor, que devia ser nativo, continua a ser o protagonista da sala de aula. Para além de servir de modelo linguístico, que o aluno deve imitar, o docente deve possuir uma boa formação linguística, ter iniciativa e dinamismo. O aluno ouve e repete aquilo que é dito pelo professor. A língua estrangeira aprende-se pelo recurso a exercícios orais, do tipo pergunta-resposta, sendo a pergunta, através da qual as palavras são aprendidas, a ferramenta principal deste método. O único manual a que se recorre na sala de aula é o manual do professor onde se encontra a programação didática. Este contém informação sobre as palavras e as construções que se devem ensinar, assim como indicações sobre a forma de as introduzir e praticar (Melero Abadía, 2000).
O método direto, apesar de surgir em reação ao método anterior, não contribuiu com fundamentos concretos sobre as estratégias a utilizar na aprendizagem do léxico. Neste, o vocabulário é selecionado segundo o seu uso em situações reais, sendo o vocabulário concreto explicado através de imagens ou demonstrações e o abstrato através de exercícios de associação de ideias.
Melero Abadía (2000) refere que o método direto, para além de contribuir com importantes inovações, trouxe à luz os problemas que existiam no ensino e no processo de aprendizagem e abriu caminho em direção à didática das línguas estrangeiras. No entanto, também este foi alvo de críticas: a aprendizagem de uma LE é muito diferente da aquisição da língua materna; as suas propostas resultam de difícil aplicação a grupos numerosos ou em escolas públicas; a sua estrita exigência em não recorrer à língua materna originava complicadas, longas e vagas explicações que dificultavam a compreensão. Por último, não promove uma aprendizagem sistemática e estruturada da língua, antes pelo contrário.
Dadas estas críticas e dada a proeminente necessidade de comunicação em línguas estrangeiras durante a segunda guerra mundial, surge, nos Estados Unidos, no período do pós-guerra, o método audiolingual, seguindo-se variantes europeias como o método audiovisual na França. Desta forma, entre 1942 e 1943, a pedido do exército norte-americano, desenvolveram-se vários programas e métodos para o ensino-aprendizagem de línguas, que muito contribuíram para a nova tendência metodológica. Os chamados “Army Methods” eram cursos intensivos orientados para a compreensão auditiva e expressão oral e tinham como objetivo formar intérpretes militares.
Neste método, a prioridade é dada à audição de estruturas sintáticas presentes em diálogos, estando a sua prática relegada à repetição de exercícios orais (drills). O objetivo de aprendizagem é a fixação do sistema da língua mediante hábitos linguísticos, onde as palavras devem ser memorizadas aquando da apresentação das estruturas sintáticas descontextualizadas. Ou seja, o conhecimento do vocabulário é visto como o resultado da construção de bons hábitos linguísticos, não contemplando as necessidades do aluno: “It was assumed that good language habits, and exposure to the language itself, would eventually lead to an increased vocabulary” (Coady, 1995: 4).
As principais críticas recebidas são realizadas por alguns dos seguidores do próprio método, os quais comprovavam que os conteúdos aprendidos na aula eram de difícil aplicação em situações concretas de comunicação real.
Desde o método tradicional, passando pelo método direto até ao método audiolingual, o papel do vocabulário[2] pode ser resumido nos seguintes pontos:
Gramática-tradução |
O ensino do vocabulário gira em torno dos conteúdos gramaticais: - apresentação de grande quantidade de vocabulário literário selecionado em função das regras gramaticais; - construção e memorização de listas de palavras acompanhadas pela sua tradução na L1; - o vocabulário trabalha-se em atividades que giram em torno a questões gramaticais (exemplo: diferenças entre “ser” e “estar”, formação de palavras, etc.) ou em traduções diretas e inversas; |
Método direto |
Preocupação em relacionar significados com as palavras da língua meta: - seleção de vocabulário segundo o uso em situações da vida quotidiana; - não se recorre à tradução; - o vocabulário concreto é explicado através de imagens ou demonstrações; - o vocabulário abstrato é explicado através de exercícios de associação de ideias; - o vocabulário aprende-se por repetição e imitação. |
Método audiolingual |
Predomínio das competências orais através de bons hábitos de uso da língua: - seleção de vocabulário segundo a frequência de uso; - a aprendizagem de uma L2 inicia-se com um vocabulário reduzido até que se dominam os padrões estruturais; - o vocabulário é apresentado e praticado através de esquemas estruturais graduados segundo a complexidade gramatical. As palavras contextualizam-se em frases, as quais são acompanhadas de apoios auditivos ou visuais, prática de exercícios de carácter mecânico com controlo total da resposta (drills); - considera-se que uma demasiada preocupação com o vocabulário provoca a sensação de que aprender uma língua consiste na simples acumulação de palavras. |
2.2. A abordagem[3] comunicativa e a abordagem natural[4]
Como se pode comprovar, em nenhum dos métodos anteriores se pode falar de um papel de destaque dado ao vocabulário. Em palavras de Cervero e Pichardo (2000: 21), “[...] hasta la llegada del enfoque comunicativo no se puede hablar en sentido estricto de actividades específicas de vocabulario, sino más bien de la utilización del mismo para la realización de ejercicios de traducción directa o inversa, en unos casos, o para la adquisición de las reglas del sistema de la lengua, en otros”.
Também em palavras de Summers (1988: 111), “There have been changing trends – from grammar-translation to direct method to the communicative approach – but none of these has emphasized the importance of the learner`s lexical competence over structural/grammatical competence”.
Com a chegada da abordagem comunicativa, o ensino da língua passa a dar maior importância às funções comunicativas do que às estruturas, sendo que a aprendizagem das palavras ou unidades lexicais ocorre de forma inconsciente através da prática de atividades. No entanto, é com a abordagem natural de Krashen e Terrell (1983), a qual defende que a exposição a um input compreensível origina aprendizagem (i+1), que o vocabulário conquista um lugar privilegiado no ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras. Desta forma, “cuanto más vocabulario, habrá mejor comprensión, y con mejor comprensión, habrá más adquisición” (Krashen e Terrell, 1983: 55 cit. por Gómez Molina, 2004: 501).
Na abordagem comunicativa, conhecer a língua significa dominar o vocabulário e a gramática. No que se refere ao vocabulário, a sua seleção realiza-se em função da frequência, da rentabilidade, utilidade, necessidade, interesse e adequação. Este é organizado por áreas temáticas e campos nocio-funcionais relativos a âmbitos do quotidiano e a sua apresentação faz-se através de amostras de língua devidamente contextualizadas e de suportes visuais e auditivos. Desta forma, o ensino do vocabulário desenvolve-se de maneira natural em contexto real de comunicação. Esta abordagem defende o desenvolvimento de estratégias para interpretar e usar a língua à semelhança dos nativos, sendo a fluidez mais importante do que a precisão.
A abordagem natural (The Natural Approach), de Krashen e Terrell (1983), defende que o vocabulário assume uma grande importância no processo de aquisição de uma língua, podendo-se potenciar o desenvolvimento lexical através da instrução. Defende ainda que quanto maior for a consciência das semelhanças e diferenças entre L1 e L2, mais fácil será encontrar estratégias de aprendizagem e produção, sendo o ensino das mesmas de grande importância.
2.3. Características das recentes abordagens
Vários autores que se dedicam a este campo de investigação são testemunha das progressivas mudanças ocorridas em relação ao léxico.
Appel (1996), no seu artigo “The lexicon in second language acquisition”, dedica o último ponto ao desenvolvimento lexical na sala de aula. Neste sentido, refere que a partir dos anos 70 duas questões passaram a ser centrais no ensino do vocabulário:
1ª O que significa aprender uma palavra na língua estrangeira? Já não se trata apenas de aprender o equivalente de tradução na L1, também é necessário aprender associações, relações entre outras palavras, diferentes significados, etc.
2ª Através de que tipo de abordagem didática todos os aspetos lexicais podem ser aprendidos?
Appel (1996: 397-399) refere que a maioria das recentes abordagens apresenta, pelo menos, as cinco características que se seguem, as quais são a base para uma forma mais eficaz de ensinar vocabulário:
1ª A competência recetiva deve anteceder a competência produtiva
Normalmente, associa-se que no estádio inicial de aprendizagem de uma L2 existe um período de silêncio durante o qual a competência recetiva é construída. Depois deste período emerge a competência produtiva. No entanto, isto acontece com a aquisição de qualquer elemento da L2, mesmo nos estádios mais avançados, o que implica que o processo de aprendizagem seja cíclico. Depois de cada “período silencioso” surge o “período produtivo”, no qual o aluno está apto para usar a L2. Por exemplo, no estádio 1, o significado de rosto é aprendido, no estádio seguinte, o aprendente é capaz de produzir adequadamente a palavra rosto e aprende a palavra queixo recetivamente. No estádio 3, queixo é usado (competência produtiva) e outra palavra é adquirida recetivamente e assim sucessivamente.
2ª A aprendizagem de palavras requer um esforço consciente e cognitivo por parte do aluno.
Nos primeiros métodos de ensino, a aprendizagem de vocabulário centrava-se essencialmente na memorização de palavras, ou seja, os alunos deviam aprender equivalências de pares de palavras na L1 e na L2. Atualmente, o propósito do ensino da L2 deve centrar-se no desenvolvimento de um conjunto de ações, as quais podem ser de dois tipos:
a) ações para relacionar uma palavra a outras e aos significados das palavras, de forma a fortalecer as redes semânticas;
b) ações para inferir o significado de uma palavra através do contexto[5]; estas devem ajudar na memorização da palavra, no conhecimento da categoria a que pertencem, as suas possíveis colocações, etc.
3ª As novas palavras devem ser apresentadas em contextos relevantes e significativos.
Este princípio pode ser relacionado, em traços gerais, com a hipótese do input de Krashen. Quando este princípio é aplicado, é possível que os alunos deduzam o significado das palavras pelo seu contexto. Quando as palavras são apresentadas em contextos significativos em relação com outras palavras, também as relações entre essas palavras são (implicitamente) aprendidas.
4ª É necessário repetir as novas palavras antes que estas sejam adquiridas.
Isto significa que as palavras não podem aparecer apenas uma ou duas vezes durante um curso de L2 ou ao longo de um manual didático de uma L2. Na realidade, o princípio da repetição é recorrente nos métodos de ensino; a novidade entre os métodos tradicionais e as novas abordagens reside na repetição das palavras tanto a nível da competência lexical recetiva como produtiva, sendo importante que cada vez que a palavra se repita se usem diferentes estratégias didáticas. Por exemplo, a primeira vez que a palavra queixo aparece num texto, os alunos devem deduzir o seu significado pelo contexto (conhecimento recetivo). A segunda vez pode aparecer numa lista de palavras relacionadas com alimentos na qual uma das palavras é incorreta (neste caso queixo), devendo o aluno sublinhar a palavra intrusa (conhecimento recetivo). A terceira atividade pode, por exemplo, consistir na substituição de palavras sobre as partes da cabeça (conhecimento produtivo).
5ª Devem ensinar-se não só palavras, mas também expressões idiomáticas, combinações sintagmáticas, expressões lexicalizadas.
O conhecimento destas sequências de palavras é de grande importância para o domínio lexical dos alunos, uma vez que, regra geral, a sua frequência na língua oral é elevada.
Estas cinco características representam um antes e um depois nos métodos didáticos, especificamente no que se refere ao ensino do vocabulário. Apesar desta mudança, e pela sucessão dos vários métodos, verifica-se que o método ideal não existe. Em palavras de Mohd Hayas (2006: 361), “Aprender léxico es una actividad que no acaba nunca. Los métodos proporcionados muchas veces no son idóneos para nuestros estudiantes. Es decir, no existe ningún método que sirva para todas las situaciones de enseñanza/aprendizaje de L2 o LE”.
Desta forma, a sucessão dos mesmos deve ser vista como um processo renovador e de ampliação e não de substituição total. Assim, o docente pode combinar atividades de diferentes métodos, sempre e quando estas sejam adequadas às necessidades e interesses dos alunos.
Também é interessante observar que a mudança registada em relação ao papel do léxico no ensino de línguas estrangeiras foi acompanhada por uma mudança de protagonismo em relação aos intervenientes (professor e aluno) neste processo. Isto é, se no método gramática-tradução o professor desempenhava o papel de protagonista, cuja função era proporcionar conhecimentos linguísticos e corrigir insistentemente os erros produzidos pelos alunos, com a abordagem comunicativa, o aluno passa a ser o centro do ensino-aprendizagem. Desta forma, os cursos, os programas, os manuais constroem-se em função das suas necessidades, objetivos e interesses. O vocabulário, cuja aprendizagem é entendida como essencial, deve fazer parte da programação didática de uma LE.
3. Ideias (eficazes) para o ensino de vocabulário
Com o objetivo de reivindicar a presença do ensino do vocabulário nas aulas de LE, concretamente nas aulas de Português Língua Estrangeira, apresentamos uma seleção de algumas ideias para o ensino do mesmo. Esta seleção baseia-se no artigo de Laufer, Meara e Nation[6] e em vários estudos da área.
O ensino-aprendizagem de vocabulário através do contexto é uma das técnicas mais citadas em trabalhos desta área de investigação (Suau Jiménez, 2000; Nation e Mera, 2002; Nation, 2003). Esta técnica promove a inferência lexical através de textos escritos e/ou orais.
Uma boa forma de usar esta técnica é através da leitura e audição (competências recetivas). Clarke e Nation (1980) comprovam que, aplicando a técnica de aprendizagem das palavras em contexto através de quatro passos específicos, os alunos são capazes de aprender novas palavras (inferência de significado) através da leitura dos textos. Esses passos consistem no seguinte procedimento: primeiro o aluno deve observar a própria palavra, normalmente no contexto de uma frase. O segundo passo consiste em dar atenção ao contexto gramatical, normalmente numa frase. O terceiro passo consiste em analisar o contexto mais amplo da palavra, normalmente após observar várias frases; o quarto e último passo consiste em adivinhar a palavra e verificar se esse significado é correto.
Nation (2003) propõe que o professor leia textos ou histórias em voz alta com o objetivo de apresentar o vocabulário de determinada área temática. O autor refere que a aprendizagem de vocabulário a partir de input recebido pode ser reforçada se se prestar atenção às palavras desconhecidas, se se examinarem as novas unidades, ou se o professor promover uma explicação rápida sobre as novas palavras, enquanto os alunos ouvem a história.
Meara[7] incentiva o ensino de vocabulário em contexto através, por exemplo, da leitura dos títulos dos jornais. Isto é, se num título aparecer alguma palavra desconhecida, a leitura da notícia dar-nos-á pistas sobre o significado e uso da mesma palavra.
A nosso ver, a aplicação desta técnica através de input escrito tem um duplo benefício, pois o aprendente, para além de inferir o significado das palavras, acede à sua forma gráfica. No entanto, será sempre importante adequar o material usado (tanto oral como escrito) ao nível dos conhecimentos dos alunos.
Para Laufer[8], é fundamental que o professor crie o seu próprio programa lexical, com base nos seus materiais de ensino, nas listas de frequência e nas próprias necessidades dos alunos. A autora recomenda que se verifique cada palavra no programa lexical sempre que os alunos se exponham a ela. O ideal seria proporcionar entre seis e dez exposições[9] até que a palavra seja adquirida.
Nestas exposições devem incluir-se não só a apresentação de palavras ou unidades lexicais, mas também a de combinações sintagmáticas[10] e a de expressões idiomáticas. Estas, na opinião da autora, constituem uma dificuldade inclusive entre os alunos de níveis avançados, pelo facto de, na sua maioria, diferirem da L1. Cervero e Pichardo (2000) referem que, dada a sua frequência e importância, tanto umas como outras devem ser introduzidas na aquisição de vocabulário. Por um lado, as expressões idiomáticas devem ser tratadas como unidades individuais de significado; por outro, a apresentação das possibilidades combinatórias das palavras é fundamental na aprendizagem e ensino do vocabulário.
Laufer[11] chama a atenção para o ensino-aprendizagem das chamadas formas lexicais semelhantes (synforms), mas com significados diferentes. Trata-se de pares de palavras, ou grupos de palavras, que apresentam grandes semelhanças a nível fonético, gráfico ou morfológico. Pelas suas características e pela dificuldade que representam para os alunos, que facilmente as confundem, a autora recomenda que não se apresentem ao mesmo tempo; antes devem ser trabalhadas individualmente até que o aluno as conheça e identifique o seu significado. Alguns exemplos para o português são: férias/ feira/ feriado; lençol/ lenço; manhã/ amanhã.
Partindo da evidência de que a aprendizagem de uma LE começa com a projeção do léxico da L1 na L2, assumimos que o fenómeno da transferência está presente neste processo e é uma das causas principais dos erros lexicais. Ao ensinar vocabulário através de uma perspetiva contrastiva, pretende-se pôr em evidência as semelhanças e diferenças presentes entre a L1 e a LE com o objetivo de reduzir os erros de interferência a nível da forma e significado. No caso de línguas próximas, como por exemplo, o ensino do português a falantes de espanhol, o fenómeno da transferência vê-se reforçado. Torna-se necessário selecionar e apresentar os conteúdos lexicais segundo uma perspetiva contrastiva, determinando as diferenças e semelhanças do ponto de vista formal e semântico.
Atualmente, os materiais autênticos assumem um papel primordial no ensino de línguas estrangeiras, pois o seu uso permite que o aluno conheça e esteja em contacto com o uso real da língua meta. Meara[12] recomenda a visualização de filmes em versão original. O autor sugere que o filme seja visto várias vezes (três ou quatro) acompanhado das respetivas legendas, seguido de uma última visualização, sem legendas. Nesta última passagem, o aluno será capaz de entender praticamente a totalidade do mesmo. O mesmo autor também recomenda a audição de canções para a aprendizagem de vocabulário. Está comprovado que o que se aprende com a interação de outros sentidos é mais facilmente retido na memória de longo prazo.
Como refere Folse (2004), defender o uso da tradução não significa voltar ao método tradicional. O recurso à tradução na aula de LE põe em evidência o uso de uma estratégia que, espontaneamente, é usada pelos alunos. Laufer[13] defende o uso desta estratégia de forma sensata e adequada, referindo ainda que as investigações comprovam que as traduções dadas pelo professor ou encontradas num bom dicionário bilíngue são benéficas para a compreensão leitora e a aprendizagem de palavras. Neste sentido, também Cervero e Pichardo (2000) referem que os glossários são válidos como ferramentas de trabalho na aprendizagem de vocabulário sempre que ofereçam ao aprendente informação complementar: gramatical, semântica, pragmática, etc.
Quanto ao uso do dicionário, consideramos que é um dos recursos mais rentáveis para a aprendizagem de vocabulário, mas pouco usada entre os alunos. Para o trabalho com o dicionário, recomendamos a consulta de Nation (2001: 281-282), o qual propõe atividades de compreensão, produção e aprendizagem para o uso do mesmo[14]. Para as atividades de compreensão, sugere que os alunos procurem palavras desconhecidas, as quais são registadas enquanto ouvem, leem ou traduzem alguma informação e que depois confirmem os significados dessas palavras através da consulta de dicionários.
Estas estratégias podem funcionar como atividades complementares à leitura de textos e livros na LE. Tanto Nation como Meara[15] incentivam a criação de um programa intensivo de prática da leitura.
Pelas investigações realizadas no campo da psicolinguística, sabe-se que de toda a informação que o ser humano retém, 80% da mesma perde-se num breve período de tempo - 24 horas – e, consequentemente, quanto mais tempo passe sem que essa informação seja utilizada, maior será a perda da mesma (Gairns e Redman 1992, Cervero e Pichardo Castro, 2000, Nation, 2001). Neste sentido, é necessário rever e reciclar o vocabulário aprendido na sala de aula. McCarten (2007: 21) afirma que: “Learning vocabulary is largely about remembering, and students generally need to see, say, and write newly learned words many times before they can be said to have learned them”.
Vários autores defendem que a revisão do vocabulário deve ser espaçada no tempo. As investigações comprovam que os alunos devem praticar as palavras em pequenas quantidades distribuídas ao longo de um período de tempo em vez de o fazerem de uma só vez numa única aula (Coady, 1995). Nation (2001) também defende a aprendizagem espaçada de vocabulário ao longo de um período de tempo, de forma a que o aluno esteja em contacto com essas unidades ao longo de vários dias, facilitando os mecanismos de retenção da informação na memória de longo prazo: “This spaced repetition results in learning that will be remembered for a long period of time. The repetitions should be spaced at increasingly larger intervals” (Nation, 2001: 76).
Quanto ao tipo de exercícios a utilizar, há uma infinidade de possibilidades, desde a aplicação de mapas mentais, sopa de letras, palavras cruzadas, o uso de cartões com a palavra na L1 e a sua tradução, ou pedindo aos alunos que escrevam todas as palavras de que se lembram sobre um tema estudado durante um determinado período de tempo (1 minuto).
As competências de produção, quer sejam escritas ou orais, constituem a comprovação de que o input recebido foi compreendido e assimilado. Meara[16] defende que a escrita é uma boa maneira de consolidar o conhecimento sobre as palavras. Permite comprovar as hipóteses sobre como se escreve ou soletra uma palavra e reforça as conexões entre as palavras que se usam no mesmo contexto. O autor ainda refere que este tipo de atividades não pressupõe um estado de ansiedade e pressão de tempo, pois permite aceder e ensaiar vocabulário que mais tarde se poderá usar no discurso oral.
Neste sentido, Nation[17] recomenda que os professores desenhem cuidadosamente atividades de escrita e expressão oral, pois são excelentes oportunidades para aprender vocabulário. Outra característica que se associa a estas competências de produção relaciona-se com a fluidez da execução de cada atividade. Nation e Meara (2002) e Nation (2003) propõem a técnica dos quatro minutos (4/3/2) para o desenvolvimento da fluidez da expressão oral dos alunos. A técnica consiste na realização de repetidas leituras de um texto de forma a conseguir a maior fluidez possível; o aluno deverá ler a mesma passagem do texto durante 4, 3 e 2 minutos. É necessário muito treino para conseguir o seu melhor tempo de leitura. Segundo os autores, a fluidez consiste em fazer o melhor uso daquilo que já é conhecido. Desta forma, para a realização desta técnica é necessário que o material lexical a utilizar seja familiar ao aluno e que as palavras sejam por ele conhecidas.
Limitar a aquisição de vocabulário às horas de aulas é limitar o desenvolvimento da competência lexical dos alunos. Desta forma, é necessário o ensino de estratégias com o objetivo de favorecer a autonomia e compromisso do aluno neste processo: “When class time is limited, encourage learners to keep individual vocabulary notebooks or computer files as a strategy for increasing vocabulary size” (Laufer et al., 2005: 3).
Capacitar os alunos com estratégias[18] de aprendizagem permite promover a autonomia dos mesmos na aprendizagem do vocabulário.
Conclui-se que o ensino de vocabulário nas aulas de LE deve fazer parte de um programa lexical estruturado, variado e significativo. O ensino do mesmo deve responder aos interesses e necessidades dos alunos.
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[1] O termo método é usado para nos referirmos às correntes metodológicas (Melero Abadía, 2000).
[2] Cf. Sánchez (1997), Melero Abadía (2000), Cervero e Pichardo (2000) e Morante Vallejo (2005).
[3] O termo abordagem tem como base uma reflexão teórica sobre a língua e/ou sobre a aprendizagem, e, em comparação com o termo método, permite mais liberdade para a interpretação e variação individual (Melero Abadía, 2000).
[4] Cf. Zimmerman (1997) e Morante Vallejo (2005).
[5] Sobre inferência lexical como estratégia cognitiva, consultar o trabalho de Suau Jiménez (2000).
[6] Neste artigo, cada autor propõe dez ideias para o ensino de vocabulário. Da totalidade das propostas, selecionámos aquelas que, na nossa opinião, mais se adaptam ao contexto de PLE. Cf. Laufer, Batia, Paul Meara e Paul Nation, “Ten best ideas for teaching vocabulary”, in The Language Teacher. 29. 7 (2005): 3-10. <http://www.victoria.ac.nz/lals/about/staff/publications/paul-nation/2005-Ten-best-ideas.pdf.> [08. 01. 2014]
[7] Laufer, Batia, op. cit., p. 4.
[8] Laufer, Batia, op. cit., p. 3.
[9] Sobre número de exposições, consultar Nation (1982, 2001), Gómez Molina (1997) e MacCarten (2007).
[10] “Cuando dos términos aparecen frecuentemente juntos y uno de ellos determina semánticamente al otro, se dice que forman una combinación sintagmática. (...) A diferencia de las frases hechas, su significado es la suma del significado de sus componentes. Algunas de ellas son abiertas, es decir, uno de los componentes admite varias determinaciones (“vino blanco, dulce, espumoso”, etc.), mientras que otras están limitadas en sus posibilidades combinatorias (el sol “sale”, la lluvia “cae”) (Cervero e Pichardo, 2000: 45).
[11] Laufer, Batia, op. cit., p. 4.
[12] Laufer, Batia, op. cit., p. 5.
[13] Laufer, Batia, op. cit., p. 4.
[14] Para o uso do dicionário e ensino de vocabulário, consultar Alvar Ezquerra (2003).
[15] Laufer, Batia, op. cit., pp. 4 e 6.
[16] Laufer, Batia, op. cit., p. 4.
[17] Laufer, Batia, op. cit., p. 6.
[18] Para exemplos de estratégias de aprendizagem, consultar Fernández López (2004) e Cervero e Pichardo (2000).
Lusismos no bengalês
Stephen Parkinson
Universidade de Oxford
(Reino Unido)
1. Português e Bengalês[1].
Os contactos entre o bengalês e o português remontam ao século XVI (Chatterji 1926). Embora as primeiras feitorias portugueses se estabelecessem na costa ocidental da India, o intercâmbio comercial com o Bengal, no este, se desenvolveu primeiro por via terrestre, antes de os portuguese chegaram por via marítima à costa oriental. Os portugueses implantaram-se em Hooghly (que chamavam Porto Pequeno) e Chittagong (Porto Grande) nos inícios do século XVI. Foram expulsos em finais do século XVII, mas o português continuou a ser o meio principal de comunicação entre bengaleses e europeus até meados do século XVIII.
A língua bengalesa incorpora muitos empréstimos ao português. Os vocábulos em (1) formam parte do léxico bengalês do dia a dia, e nem todos os falantes do bengalês os percebem como estrangeirismos[2]:
(1)
Bengalês |
Português |
||
['anarɔʃ] |
ananás |
(Beng [rɔʃ] =« sumo») |
|
['almari] |
armario |
||
[’bint̪i] |
«jogo de cartas» |
vinte |
|
[’bombeʈe] |
«pirata» |
bombardeiro |
|
[’bɔroga] |
verga |
||
['tʃabi] |
chave |
||
[’gɔrad] |
grade |
||
[’mast̪ul] |
mastro |
||
['mist̪iri] |
«artesano» |
mestre |
|
[pãu-ruʈi] |
pão |
([ruʈi] =«chapati») |
|
['pad̪ri] ~ ['pad̪ari] |
padre |
||
[’perek] |
prego |
||
[’ʃurt̪i] |
«lotaria» |
sorte |
Note-se como características da adaptação a separação de grupos consonânticos /pr tr gr rg/, e a combinação de elementos românicos e bengaleses por composição morfológica. Deste último citam-se numerosos exemplos, por exemplo os vocábulos en (2) que incorporam as formas portuguesas chapa e sala .
(2)
sala [’dʒoghoˌʃala] «sala de cerimónias»
[’naʈʃal] «teatro» [naʈ] «peça»
[’ʃabʰaʃal] «sala de reuniões»
chapa ’ [‘tʃʰapa]
[‘tʃʰapaˌkʰana] «prelo»
As vogais nasais finais portuguesas convertem-se em -/am/ ou /-an/, indicando que o processo de sincretismo de -/õ/ e –/ã/ do português antigo estava já avançado, ao menos até à fase intermédia, tipica do português médio, de –/ã/ final (Parkinson 2007). As formas citadas em (3) mostram não só o sincretismo das terminações mas também a reconversão da nasalidade portuguesa numa consoante nasal bengalesa, aleatoriamente –/m/ bilabial - ou –/n/ alveolar.
(3)
Beng [’botam] < PMed botã < PAnt botõ «botão»
Beng [’ʃaban ] < PMed sabã < PAnt sabõ «sabão»
Beng [’nilam] < PMed leilã «leilão»
Beng [’boiam] < Pt. boia + -ã < -õ «boião»
Beng [’kapitan ]< PAnt capitã «capitão»
Beng [’pãu ~’pan] < PAnt pã «pão»
Mantém-se também a africada /tʃ/ do Português médio, convertida mais tarde a /ʃ/ em dialectos portugueses do sul.
4)
Ptg chave Beng [‘tʃabi]
Ptg chapa Beng [‘tʃʰapa]
Ptg achar Beng [‘atʃar]
A fricativa portuguesa /f/, inexistente na fonologia bengalesa, é realizada pela oclusiva aspirada /ph/
(5)
Ptg fita Beng [‘pʰit̪e]
Ptg festa Beng [‘pʰest̪a]
Ptg cafre Beng [‘kapʰri]
ou como oclusiva surda não aspirada, em sincretismo com /v/
(6 )
Ptg alfinete Beng [’alpin]
Ptg calafate Beng [’kalapat̪i] «funileiro»
Ptg couve Beng [‘kopi] «couveflor»
A sibilante /s/ do português converte-se, conforme a fonologia bengalesa, na palatal /ʃ/ em todas as contextos (7a), salvo en grupos homorgânicos dentais (7b):
7a)
Ptg sabão Beng [‘ʃaban]
Ptg saia Beng [‘ʃae ̯a] «saia traziada debaixo do sari»
Ptg sorte Beng [‘ʃurt̪i] «lotaria»
Ptg espada Beng [’iʃpat] «lâmina»
7b)
Ptg mestre Beng [‘mist̪iri]
Ptg mastro Beng [’mast̪ul]
2. Dúvidas cronológicas
Entre as propostas de etimologia portuguesa emitidas pela crítica ou aceites pela tradição, alguns merecem um escrutínio mais demorado por razões cronológicas.
A palavra bengalesa [’ʈoka ] «chapéu de bambu» tem sido relacionada com Ptg antigo touca apesar de essa se documentar já no século XV em textos bengaleses, sendo portanto anterior aos contatos com o português. Do outro lado a palavra [’t̪ɑmak] ou [’t̪ambuk], «tabaco», também encontrada em textos bengaleses do século XV, é dita remontar ao Ptg tabaco apesar de esta não se abonar em português antes de 1594 (Houaiss 2002).
Para esclarecer tais dúvidas, sente-se a falta tanto de um dicionário cronológico bengalês, como de testemunhas certas da presença do étimo português na língua do século XVI. O nosso projecto de investigação visa definir as modificações regulares de palavras portuguesas, documentar as palavras portuguesas em textos literários bengaleses dos séculos XVI e XVI, e apurar fontes portugueses relevantes.
3. Português e inglês
Ao lado dos empréstimos portugueses, o bengalês sofreu uma forte influência inglesa, em escala crescente após a implantação de feitorias britânicas no século XVI.
8)
Ing cigarette Beng [‘ʃigareʈ] «cigarro»
Ing police Beng [‘puliʃ] «polícia»
Ing school Beng [‘iʃkul] «escola»
Ing station Beng [‘iʃʈiʃan] « estação»
Ing guernsey Beng [‘gendʒi] «camisola»
Ing box Beng [‘bakʃo] «caixa»
Ing table Beng [‘ʈebil] «mesa»
Ing double Beng [‘ɖɔbol] «dobro, duplo»
Note-se nos dois últimos exemplos o desdobramento do /l/ silábico inglês numa sílaba harmonizada com a vogal tónica.
Embora nem sempre resulte fácil identificar a fonte da palavras bengalesas baseadas no vocabulário comum europeu, verificou-se uma assimetria inesperada na adaptação fonológica de palavras portuguesas e inglesas. Enquanto as oclusivas dentais portuguesas, ilustradas em (9), se realizem como dentais no bengalês, as oclusivas correspondentes ingleses, alveolares, em (10), são realizadas como retroflexas:
(9)
Ptg balde Beng [‘balt̪i]
Ptg cadeira Beng [‘ked̪ara]
Ptg padre Beng [‘pad̪ri]
P tg toalha Beng [‘t̪oale]
Ptg fita Beng [‘pʰit̪e]
Ptg botão Beng [‘bot̪am]
Ptg ata Beng [‘at̪a] «fruta»
(10)
Ing table B [‘ʈebil] «mesa»
Ing time [‘ʈaim] «tempo»
Ing taxi [‘ʈæksi]
Ing notice [‘noʈiʃ] «cartaz»
Ing deputy [‘ɖepuʈi] «assistente»
Ing master B [‘maʃʈar] «dono, mestre»
Ing plaster B [‘plaʃʈar] «gesso»
Ing register B [‘redʒiʃʈar] « registo»
A fricativa surda dental /θ/ do inglês converte-se numa oclusiva dental surda aspirada no bengalês, mantendo o contraste entre dentais e alveolares ingleses.
(11)
Ing theatre [‘θɪətə] Beng [‘t̪ʰieʈar] «teatro»
Ing thank you [‘θæŋkju] Beng [‘t̪ʰæŋkiu] «obrigado»
Esta separação fonológica – interessantíssima aliás para a teoria fonológica da adaptação de neologismos (Lahiri et al 2013) --, permite esclarecer, se não resolver, algumas das dúvidas etimológicas já emitidas.
No vocábulo controverso [‘ʈoka], a oclusiva retroflexa conflui coma datação quinhentista para refutar a hipótese portuguesa. Do outro lado, a dental de [’t̪ɑmak] apoia uma origem portuguesa, embora no Beng [’bombeʈe] a hipótese portuguesa fica inesperadamente infirmada pela presença do t retroflexo[3].
A fonologia parece também resolver algumas questões de origem portuguesa ou inglesa. O bengalês [bot̪ol] «garrafa», que podia remontar ou ao Ing bottle ou ao português botelha, acusa a oclusiva dental que assinala origem portuguesa, ao mesmo tempo que exemplifica o tratamento do grupo /tl/ inglês. Igualmente no bengalês [‘pist̪ol] «pistola» a confluência da oclusiva dental e o vocalismo português parecem apoiar a hipótese de ascendência portuguesa pistola. No Bengalês [’kriʃʈan ] « cristão» a influência inglesa prevalece na articulação retroflexa do grupo –st-, embora a terminação pareça indicar influência portuguesa.
4. O Vocabulario em Idioma Bengala e Portuguez e o Léxico Marsden
Para suprir a informação cronológica de textos bengaleses, procurámos fontes lexicográficas contemporâneas. Entre as primeiras obras de descrição linguística do bengalês, cita-se o léxico bilingue Vocabulario em Idioma Bengala e Portuguez (VIBP) compilado pelo Padre Manoel da Assumpção e publicado em 1743 em Lisboa, como anexo a uma gramática bengalesa.
As primeiras consultas, através da edição parcial de Chatterji e Sen (1926), não resultaram fecundas, porque muitos vocábulos relevantes não se registaram. Sendo essa edição uma selecta de vocábulos de interesse para a lexicografia bengalesa, era impossível saber se a exclusão de vocábulos comuns como almari, alpin, era original ou editorial. Resulta mais interessante um léxico manuscrito Português-Bengalês localizado na biblioteca da School of Oriental and African Studies (SOAS) em Londres, e conhecido como o Marsden Lexicon (Léxico Marsden). [4]
O Léxico Marsden é um manuscrito do sec. XVII, que Hosten (1914) e Khondkar (1976) julgam ter sido compilado por um padre missionário Santucci por volta de 1680. Este léxico, destinado a apoiar o trabalho missionário dos portugueses, foi depois aproveitado – plagiado, na perspetiva crítica de Khondkar (1976) –, por Manoel da Assumpção. O manuscrito foi comprado pelo bibliófilo britânico William Marsden, e integrou o espólio que foi transferido primeiro para Kings College de Londres e depois para a SOAS.
Como obra de lexicografia portuguese o Léxico Marsden tem mais interesse do que o Vocabulario. Enquanto o Vocabulario é uma obra didática e de referência pública, o Léxico Marsden é um instrumento de trabalho vivo para a recolha de dados lexicais no local, comparável com os inquéritos dialectais da modernidade. O Léxico foi construído em três etapas que se diferenciam facilmente pelas mãos diferentes que nele intervêm:
1) compilação de uma lista de palavras e frases portuguesas, em ordem alfabética (mas com alguma particularidades), com atenção sistemática à derivação nominal. Assim para cada verbo indicam-se na lista portuguesa as possíveis substantivos deverbais, para cada adjectivo indicam-se os advérbios e substantivos correspondentes. Por exemplo, ao lado de aborrecer colocam-se aborrecida c[ousa][5], aborrecimento, aborrecedor, aborreciuel.
2) inserção por um informante bengalês da palavra ou das palavras equivalentes no bengalês.
3) inserção por outra mão portuguesa de lemas adicionais na lista alfabética, e de frases e anotações portuguesas no final das entradas.
Ignoramos as condições exatas da compilação da lista original. Corresponde em geral com o Tesouro da Lingua Portuguesa (Tesouro) do jesuíta Bento Pereira (1641), embora tenha sido ampliada com vocábulos de procedência indiana[6]. Entre os vocábulos acrescidas à lista contam-se achar (achar pera comer, para distingui-lo de achar verbo), e ata «fruta». A palavra casta tem uma entrada simples no Tesouro, enquanto no Léxico Marsden entra em cerca de trinta frases relativas ao sistema de castas indianas.
Para os nossos efeitos, a presença ou ausência de palavras portuguesas no Tesouro ou no Léxico Marsden tem uma alta relevância para hipóteses de empréstimo. Se uma palavra não se encontrar no Léxico Marsden, mormente se também faltar no Tesouro, pode se deduzir que não formava parte do léxico de pesquisa por faltar na língua contemporânea, e portanto que a etimologia será suspeita. Nesta comunicação apresento os resultados iniciais da análise em curso desta fonte.
O caso de [‘ʈoka] revela-se outra vez complexa, porque a palavra touca aparece já como palavra desusada no Tesouro, e ficou excluída da redação inicial do Léxico Marsden; sendo acrescentado na segunda fase. O Léxico Marsden levanta também dúvidas acerca de [’bot̪ol] e [’pist̪ol], visto que que faltam ambas as palavras portuguesas: botelha é registada apenas no Tesouro (f 26 col b) glosado como «cucurbita» (=cabaça),[7] enquanto pistola é registada no Tesouro com outro sentido, como variante de pastola, pastolete, glosado «fistula brevior». Bomba e bombardeiro estão ambos incluídos no Tesouro, mas não no Léxico Marsden.
Pelo contrário, o aparecimento de uma palavra portuguesa no Tesouro ou no Léxico Marsden, com o sentido adequado, constitui confirmação direta de que o vocábulo fazia parte do léxico ativo do sec. XVII, e que era portanto disponível como lusismo para ser incorporado no bengalês. O registo de uma adaptação ao bengalês como equivalente constituiria evidência da incorporação estar já acabada. É o caso de
(12)
chapa Beng [‘tʃʰapa] Léxico Marsden [tʃapa]
couve Beng [’kopi ] Léxico Marsden [koubi]
Constituem casos ambíguos as palavras portuguesas que não vêm acompanhadas de uma forma correspondente bengalesa. Em muitos casos compreende-se que o objeto não se identificava (ameia, ameijoa, alambique) ou que a forma morfológica não fazia parte do bengalês (acolchoador, acometedor). Contudo, apresentam-se também sem glosa alguns dos lusismos mais bem conhecidos:
(13)
almario
alfinete
alcatrão Beng [’alkatra]
balde
pipa Beng [’pipa]
prancha Beng [’parantʃi]
A interpretação mais lógica destas entradas será que o lusismo estava incorporado no bengalês, mas sempre reconhecível como palavra portuguesa e portanto sem interesse para quem procurasse vocábulos bengaleses.
Finalmente, encontramos casos em que a palavra portuguesa aparece glosada por palavras bengalesas distintas. Isto podia indicar que o lusismo ainda não se implantou (14a), ou que a etimologia seja outra (14b).
(14a)
botão não se glosa [’bot̪am], mas [’t̪okom]
calafate não se glosa [’kolapat̪i ] mas [’gaonda]
(14b)
gamela (proposta como origem de Beng [’gamla] glosa-se [’t̪agari]
7. Conclusões
Por essas informações, podemos reforçar as nossas conclusões etimológicas:
Beng [’ʈoka] não pode derivar do português touca;
Beng [’t̪ambuk] continua a ser de origem duvidosa, juntamente com Beng [bombeʈe];
Beng [’bot̪ol] e [’pist̪ol] devem relacionar-se principalmente com o inglês bottle e pistol, cruzados com formas portuguesas para explicar a consoante dental;
Beng [’bot̪am] é confirmado embora a data da incorporação do neologismo ainda não se confirmou.
Conformou-se por esta investigação que a contribuição lexical do português ao bengalês foi significativa, e verificável, e que a documentação disponível permitirá elaborar uma cronologia de contactos mais desenvolvida. Esperamos que a análise completa do Léxico Marsden e do Vocabulário em Idioma Bengala e Portuguez traga informações mais abrangentes.
[1] Tracing Portuguese-Bangla cultural base through Bengali phonology , projeto apoiado pelo John Fell Fund da Universidade de Oxford, Investigadores principais Aditi Lahiri e Stephen Parkinson, investigadora associada Ballari Ray Choudhury, Gokhale Memorial Girls’ College, Universidade de Calcuta.
[2] As formas bengalesas citar-se-ão em transcrição fonética. O acento da palavra no bengalês recai sempre na sílaba inicial, pelo qual a sua inclusão se torna dispensável.
[3] É possível que o [ʈ] retroflexo possa ser efeito assimilatório do /r/ precedente, mas tal evolução não se documenta noutras formas bengalesas.
[4] Na Biblioteca Pública de Évora existe um léxico manuscrito que parece ser borrão do léxico de Asssumpção, e portanto uma etapa intermediária entre o Léxico Marsden e o VIBP.
[5] Segundo o exemplo da Tesouro e dicionários anteriores (Verdelho & Silva 2007) o Léxico Marsden indica adjetivos pela construção com cousa, neste caso reduzido a um C, pelo qual a flexão canónica é feminina.
[6] Sobre a tradição lexicográfica até Pereira, veja-se Verdelho e Silva 2007: 115-20. A entrada adem «pato» no Tesouro (5c) amplia-se no Léxico Marsden, acrescentando-se brauia após a entrada principal.
[7] Note-se que Ptg garrafa aparece no Léxico Marsden, mas sem glosa bengalesa.
Bibliografia
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Pereira, Bento. Tesouro de Lingua Portuguesa Lisboa: Paulo Caasbeeck, 1641
Verdelho, T e J.P. Silva, eds. Dicionarística Portuguesa. Aveiro: Univ. de Aveiro, 2007.
Novas perspetivas sobre o papel do português na revitalização do galego
nos primórdios do século XXI
Xosé Ramón Freixeiro Mato
Universidade da Corunha
(Galiza)
O galego hoje em dia é uma língua em perigo que não tem garantido o seu porvir como idioma da Galiza, ainda que sim o tenha como língua internacional através das suas variantes, nomeadamente a portuguesa e a brasileira, continuadoras do primitivo galego, denominação original do romance que se formou na Gallaecia histórica e que na atualidade se converteu numa das línguas mais faladas no mundo. Em finais da Idade Média, como consequência da expansão do reino de Castela, a Galiza sofreu um processo de dominação política e cultural que levou consigo a sobreposição do castelhano como língua do poder, a iniciar-se assim um lento processo de substituição linguística que ainda continua na atualidade. Os perigos que ameaçam o galego no próprio território derivam principalmente da acelerada perda de falantes nos últimos tempos, da progressiva descomposição das suas estruturas internas por interferência do castelhano e de uma mudança de orientação regressiva nas políticas de normalização do galego a partir de 2009.
1. A evolução da situação sociolinguística do galego nos últimos anos
Até há pouco o galego não encaixava propriamente nos rótulos de ‘língua minoritária’, ‘língua menos estendida’ ou ‘língua menos usada’, de uso habitual para outras línguas minorizadas da Europa, tanto por pertencer a um dos sistemas linguísticos, o galego-português, mais utilizados em todo o mundo como por ser ainda a língua maioritariamente falada pelos habitantes da Galiza. Porém, esta situação parece ter mudado nestes últimos anos. Com dados do Mapa Sociolingüístico de Galicia de 1992 (MSG-92), 68.6% da população declarava ter como língua habitual o galego, face a 31.4% que dizia ter como tal o castelhano. Embora estes dados globais fossem favoráveis ao galego, já alertavam de uma deriva perigosa para o espanhol: nas pessoas de mais de 65 anos o uso preferencial do galego chegava a 85%, enquanto nas pessoas de menos de 26 anos baixava a 46%. O alarme surge na distribuição dos dados por idades e por habitat: aquele 68.6% de pessoas que dizia ter o galego como língua habitual no conjunto do território desce a 38% no meio urbano e a 14% entre a gente mais nova[1].
No entanto, pode dizer-se que na última década do século XX o galego ainda conservava a condição de língua maioritariamente falada no conjunto da Galiza, embora perdesse tal condição no âmbito citadino e entre a gente jovem. Apesar das políticas de normalização linguística impulsionadas pelas instituições públicas galegas a partir dos primórdios da década de 80, a língua própria da Galiza continuou a perder falantes durante todo esse período. O mesmo Seminario de Sociolingüística da Real Academia Galega realizou a princípios do atual século um novo estudo sobre a situação sociolinguística para tentar medir a evolução produzida nesses doze anos que vão de 1992 até 2004. Os três volumes deste novo Mapa Sociolingüístico de Galicia 2004 (MSG-04) trazem dados bastante mais negativos para o galego; contudo, deve ter-se em conta que mudou a metodologia a respeito do MSG-92, pois agora só se mede a população entre 15 e 54 anos e também se alteram as opções de resposta, bem como o número de pessoas entrevistadas, muito escorado para o mundo urbano; os resultados dos dois estudos, portanto, apresentam alguns problemas para uma comparação sem mais; no entanto, com essas matizações para o diretor do MSG-04 as conclusões da comparação continuam a ser válidas (González 2008).
Segundo os dados do primeiro volume, publicado em 2007, em doze anos ter-se-ia produzido uma diminuição de 40% de pessoas que têm o galego como língua inicial ao passar de 60.3% no MSG-92 a 20.6% no MSG-04 (1: 63), dado que indicaria a ruptura brutal da transmissão familiar. Também põe este estudo em relevo o avanço do monolinguismo inicial em espanhol, do bilinguismo inicial e das pessoas que aprenderam a falar noutro idioma. Não menos alarmantes para o futuro da língua galega são os dados que recolhe o segundo volume do MSG-04, centrado nos usos linguísticos: nesses doze anos duplicar-se-ia o número de pessoas que nunca a falam (de 13% a 25.8%), dividir-se-ia em metade o de monolíngues nesta língua (de 30.5% a 16%) e reduzir-se-ia em 22 pontos o número de pessoas que a têm como língua habitual (de 61% a 39%); isto é o mesmo que dizer que o uso monolíngue do galego se reduziu em 14.5 pontos percentuais, que o monolinguismo em espanhol avançou 12.8 pontos e que em geral se mantém o bilinguismo mas com uma subida importante de 9.3 pontos na categoria ‘mais castelhano’ e uma queda de 7.6 na de ‘mais galego’ (MSG-04, 2: 41). Com estes dados inverter-se-ia praticamente a situação linguística relativamente a 1992 e pela primeira vez proclamar-se-ia estatisticamente que o galego é a língua minoritária da Galiza.
Se seguir o ritmo de perda de falantes dos últimos anos e se não mudarem as circunstâncias sociolinguísticas, com políticas de planificação linguística mais eficazes, não se torna nada disparatado supormos que tal percentagem se irá reduzindo nas próximas décadas até chegar a 10% ou 15% de galego-falantes resistentes, como afirma algum analista com experiência em normalização (Sarille 2007: 19). Ainda podemos perguntar se essa base militante no compromisso com a língua constituiria um chão firme a partir do qual seria possível reiniciar a conquista de novos falantes ou se mesmo se poderiam perder mais. É difícil de prever, mas deve ter-se em conta que na Corunha, por exemplo, segundo o MSG-04 só são monolingues em galego 3.4% e em Vigo 4.3%, enquanto os valores mais altos das sete cidades principais correspondem a Lugo com 13.4% de monolíngues e a Santiago com 13.2% (MSG-04, 2: 53). Isto quer dizer que nas duas urbes mais povoadas e dinâmicas da Galiza já se está muito por baixo dessa suposta base de resistência, ao passo que nas mais galeguizadas esta não chega a 15%.
Em resumo, o galego está a converter-se em língua minoritariamente falada na Galiza e, em troca, o espanhol vai emergindo como maioritária da sociedade galega, além de conservar o seu status de língua de maior prestígio e de poder que teve nos últimos cinco séculos. O caminho que a partir desta constatação se perfila está cheio de dificuldades para o galego.
2. Perspetivas de futuro
Existe um amplo consenso entre as pessoas especialistas no reconhecimento de avanços qualitativos e de recuamento quantitativo nas últimas décadas. A partir daí, produz-se um dissenso entre pessimistas e otimistas (Regueira 2006: 76), os primeiros a porem o acento na perda da transmissão intergeracional e na falta de compromisso político-institucional, e os segundos a valorizarem a melhoria do prestígio e das atitudes e a existência de uma minoria urbana comprometida com o uso consciente da língua. Como exemplo de posicionamentos otimistas podem ser citados Ferro Ruibal (2005) ou Bouzada (2003: 328), o qual afirma que a redução do número de falantes não é um indicador tão alarmante porque se compensa com o incremento do prestígio da língua. A visão pessimista é capaz de ser exemplificada com a afirmação de Sarille (2007: 15) de que o galego “vive actualmente a peor situación da súa historia, cunha masiva e incontrolada perda de falantes” que preludia a sua conversão numa língua residual a curto prazo. Entre as pessoas pessimistas situa-se também o professor Roca (1997), ao qual logo voltaremos, que a partir de uns dados muito mais positivos que os do MSG-04 afirmava já em 1994 que o galego era uma língua moribunda.
Para o futuro do galego na era da globalização deverão ser tidas em conta diferentes situações que muito provavelmente vão continuar a dar-se e que terão de ser aproveitadas do modo mais favorável possível: monolinguismo ativo ou defensivo em galego (Monteagudo 2002: 33) no setor linguisticamente mais consciencioso da sociedade galega, monolinguismo institucional em galego –hoje questionado– como elemento de coesão social e espaço simbólico partilhado (Sanmartín Rei 2009: 49), bilinguismo com o galego em posição dominante nas pessoas que falam o galego como língua habitual ainda que utilizem o espanhol em contextos determinados, bilinguismo com o galego em situação dominada –bilinguismo harmónico (Regueiro Tenreiro 1999)– nas pessoas que têm o espanhol como língua habitual e que cada vez são mais competentes em galego e que o falam em contextos propícios[2], monolinguismo em espanhol com o galego como língua oficial assumida naquelas pessoas que são falantes tradicionais dessa língua, monolinguismo resistente em castelhano naqueles setores minoritários da sociedade que se posicionam ideologicamente em contra do galego, reintegracionismo galego-português como via de futuro, etc.
Onde realmente está ameaçado o galego é no território da Galiza, núcleo da Gallaecia histórica em que se formou, mas não no mundo, onde goza de boa saúde com o nome de ‘português’. No UNESCO Atlas of the World’s Languages in Danger, a respeito das línguas faladas no Estado espanhol, o galego figurava no ano 2001 dentro do grupo de ‘línguas em perigo’; mas na terceira edição, lançada em versão digital[3] em 2009, foi eliminado dessa listagem pela sua proximidade do português; trata-se, pois, de uma questão metodológica e não de terem mudado favoravelmente as condições do galego. Com efeito, não é uma das línguas em perigo do mundo porque como ‘português’ é falado em vários continentes e goza de plena normalidade; mas não acontece o mesmo onde conserva o seu nome originário de ‘galego’[4], com outro problema acrescentado: as pessoas galego-falantes não se identificam em geral com o português, tanto por preconceitos históricos e sociais a respeito de Portugal como por a Galiza viver de costas para o mundo lusófono. Dos três modos de desaparecimento de uma língua que assinala Hagège (2000: 93-95) –transformação, substituição e extinção–, a ameaça que pesa sobre o galego é uma combinação dos três, pois o espanhol progressivamente vai absorvendo tanto os falantes do galego como as suas estruturas linguísticas, de modo que se iria convertendo em galego-castelhano para terminar em simplesmente castelhano, como já temera Carvalho Calero (1983: 33).
Em finais da Idade Média iniciou-se na Galiza um processo de assimilação cultural e linguística que conduz à substituição do galego pelo castelhano. Quando uma cultura assimila outra, a sequência de eventos que afetam a língua em perigo parece ser a mesma em toda a parte; Crystal (2003: 120-123) pondera a esse respeito três fases: na primeira produz-se uma “inmensa presión” sobre as pessoas para que falem a língua dominante; na segunda as pessoas tornam-se cada vez mais competentes na língua dominante; e na terceira a geração mais nova vai identificando-se mais com esta ao mesmo tempo que desvaloriza a própria. O bilinguismo seria assim um passo intermediário para a substituição linguística, como já afirmaram destacados sociolinguistas (veja-se, p. e., Calvet 1993: 73 ou Ninyoles 2005: 41-44) e como se observa no caso galego com os dados demoscópicos existentes (Recalde 2004: 370). Na Galiza existiu uma forte pressão para o uso do castelhano, a qual propiciou o aparecimento de um bilinguismo emergente que foi evoluindo para o monolinguismo em espanhol das classes altas já no século XIX e que na atualidade vai a caminho de se consagrar também entre as gerações mais novas e entre a população urbana. No entanto, os tempos são distintos, pois o processo de desenvolvimento da primeira e da segunda fases foi muito lento, de mais de 500 anos, nomeadamente pelo carácter maioritariamente rural e pelo isolamento económico, geográfico e político da Galiza; mas também se torna evidente a aceleração do processo na última fase, devido sobretudo ao que Krauss (1992: 6) denomina “assimilatory education” e “electronic media bombardment”, em especial a televisão. Nestes momentos o ponto forte do galego provém do que Ninyoles (2005: 43) chamou “sectores rurais monolingües”, que na Galiza começam a dar mostras de abandono do monolinguismo na língua própria, como se põe em relevo no MSG-04[5]. Mas também Ninyoles afirma a seguir que no momento “en que estes sectores comezan a falar os dous idiomas estamos perante o inicio da desaparición da lingua minoritaria”.
Quanto à possibilidade de deter o processo de assimilação cultural e linguística, Crystal (2003: 122) assinala que onde se podem conseguir realmente avanços é na segunda fase, a do bilinguismo emergente, e portanto é aí onde segundo ele se devem concentrar os esforços. A língua dominante resultaria atrativa e necessária porque facilita o movimento externo da comunidade indígena, e a língua dominada, pelo contrário, não facilita a comunicação internacional ou intercultural, mas exprime “a identidade dos falantes como membros da súa comunidade”. O galego viveu séculos nessa segunda fase de bilinguismo emergente, que na realidade era uma situação de diglossia, como tradicionalmente foi definida pela sociolinguística galega (García Negro 1991: 72-92). Mas nesse longo período não se conseguiram mudar substancialmente as atitudes no que diz respeito à língua dominada, como preconizava Crystal, nem se conseguiram superar os preconceitos linguísticos historicamente vigorantes. E agora talvez esteja já mais próximo dessa terceira fase de onde o professor galés considera que é mais difícil sair. Para o poder fazer com sucesso, o galego dispõe de uma vaza que muitas das línguas dominadas de que ele fala não têm e que até ao momento não se aproveitou convenientemente: a estreita vinculação com o português.
3. O português como ajuda para a revitalização do galego
Além da função identitária, o galego também possui a função de comunicação internacional própria de muitas línguas dominantes, pois através dos colonizadores portugueses estendeu-se pelo mundo e hoje, com as variantes lógicas e sob a denominação de ‘português’, fala-se em Portugal, no Brasil e noutros lugares da África e da Ásia. Às lógicas diferenças entre entre as modalidades linguísticas galega e portuguesa, motivadas pela variação diatópica e pelo afastamento político e social das comunidades de falantes, une-se a adoção na Galiza de uma norma ortográfica moderna, hoje com carácter oficial, que está substancialmente próxima do espanhol e que é ruturista a respeito do galego-português medieval e do português atual, em confronto com outros standards[6]. Face a este galego oficial, pratica-se também na Galiza um galego ‘reintegrado’ ou galego escrito com a grafia portuguesa (e galego-portuguesa) que, ao mesmo tempo, procura escolhas morfológicas e lexicais coincidentes no possível com a variedade lusitana. Este é outro galego existente e praticante na Galiza, outro galego possível (Fagim 2001), mesmo com diferentes graus de aproximação ao português, desde a adoção direta deste como manifestação escrita do galego, passando pela norma da Associaçom Galega da Língua (AGAL), até a uma normativa de mínimos reintegracionistas próxima do galego oficial, vigorante na década de 80 e hoje praticamente desaparecida porque no ano 2003 a Real Academia Galega aceitou algumas modificações na norma oficial que facilitaram a aceitação desta por parte das pessoas que a utilizavam.
Sem que hoje exista, pois, uma controvérsia social sobre a norma do galego de proporções significativas, porém continua a circular o discurso da conveniência da aproximação ao português como recurso para dotar o galego de maior prestígio e para que a sociedade perceba melhor a sua utilidade. Se calhar, e à vista dos últimos estudos demoscópicos, são horas de jogar a fundo esta vaza, que nunca se utilizou com convicção desde nenhuma esfera oficial. Inclusive desde posicionamentos linguísticos tradicionalmente afastados do reintegracionismo se começa a apontar nesta direção, a assinalar o português como uma boa ajuda para a sobrevivência e normalização do galego. Assim, o professor da Universidade de Santiago de Compostela Xosé Luís Regueira (2006: 90), após indicar que a perda de poder do estado-nação como consequência do processo de europeização oferece a possibilidade de fugir da opressão do “nacionalismo español”, acrescenta que a “eurorregión Galicia-Norte de Portugal puede ser una gran oportunidad para el gallego”; noutros trabalhos mais achegados à atualidade vem insistindo o mesmo autor na conveniência de o galego se aproximar do português no processo de fixação de modelos linguísticos, tanto orais como da linguagem administrativa: “A exposición aos medios portugueses permitiría, coa base linguística do galego, elaborar modelos que seguirían os criterios invocados antes: identidade, delimitación fronte ao espanhol, aproximación ao portugués” (Regueira 2012a: 197); “É un feito que a pesar da proximidade de Portugal e da factibilidade de recibir os medios electrónicos falados em portugués, a sociedade galega só accede aos medios españois” (Regueira 2012b: 35), etc. E o também professor da mesma universidade e anterior secretário do Consello da Cultura Galega, Henrique Monteagudo (2002: 42), aventura um futuro para o galego em que este se achegará ao português e se intensificarão os contatos com Portugal e os países lusófonos, até ao ponto de que, com um pequeno esforço, a competência no primeiro idioma habilitará para manter uma fluída intercomunicação com os falantes do segundo.
Nesta mesma direção incide o politólogo e investigador social Xaime Subiela (2002: 171) ao pedir a abertura à área comunicativa do português, “o que permite comprender ao galego non só como algo querido por propio, senón tamén como unha oportunidade para vincularse a outro espacio comunicativo internacional”. Com maior ênfase e concreção trata o tema o advogado e ativista em prol do galego López de Castro Ruíz (2002: 129), que considera “indispensábel que o portugués se ofrecese nos currículos como segunda lingua estranxeira” e que lembra a existência de um artigo do Estatuto de Autonomia da Galiza que permite solicitar ao governo espanhol a assinatura de convénios ou tratados para o estabelecimento de relações culturais com os estados com que a Galiza “manteña particulares vínculos culturais ou lingüísticos”, a se mostrar também partidário de a médio prazo ir a “unha integración cultural a grande escala con Portugal, Brasil e África, designadamente mediante a Comunidade de países de lingua portuguesa”.
No mesmo sentido de incorporar o português ao ensino incide o informe de um organismo oficial, o Consello da Cultura Galega, sobre a análise e as perspetivas da política linguística na Galiza no período 1980-2000 quando, ao dar conta da opinião das pessoas expertas mediante a técnica DELPHI, afirma que “son maioritarias as opinións que sinalan que os responsábeis lingüísticos deberan apostar de forma mais decidida por achegar o galego á área luso-brasileira” e que “é maioritario o acordo sobre a necesidade de incorporación do portugués ao ensino” (Monteagudo / Bouzada 2002: 200). Já mais adiante, no capítulo de conclusões sobre a situação social da língua galega, diz-se que a linha central de proteção do galego pode ter um bom complemento difundindo o seu valor de vínculo a outro espaço comunicativo internacional, o que suporia que a comunidade galega pudesse dispor sem esforço de duas línguas de comunicação internacional, com a consequente vantagem comparativa que isso suporia para as pessoas galegas. Para tal objetivo afirma que se devem estreitar “os vínculos simbólicos da lingua galega co portugués”, de maneira que isso “teña unha proxección positiva cara ao conxunto da sociedade”. Ainda acrescenta o informe que se devem incrementar os intercâmbios comunicativos entre as comunidades de língua portuguesa e a Galiza, e de modo especial com o norte de Portugal, na procura de uma “expansión da competencia operativa en portugués” (Monteagudo / Bouzada 2002: 236). Opiniões muito parecidas são emitidas por uma ampla maioria das 56 pessoas destacadas da cultura galega que se recompilam numa recente publicação (Neves / Taibo 2013).
Nas considerações precedentes está a apontar-se indiretamente para o ‘sesquilinguismo’ como proposta do professor Moreno Cabrera (2006) para preservar a diversidade linguística da Europa, incluídas as línguas minorizadas. De facto, o sesquilinguismo já se vem praticando nos países nórdicos (Suécia, Dinamarca e Noruega) ou mesmo na África e apresenta a vantagem de que todas ou a maioria das pessoas de uma comunidade política plurilíngue compreendem todas as línguas dessa comunidade ainda que as não falem. O sesquilinguismo permitiria, portanto, que numa sociedade plurilíngue se pudessem usar realmente todas as línguas e promoveria o plurilinguismo, pois desse modo não haveria falantes que tivessem de renunciar ao seu idioma por medo de não serem entendidos. Esta proposta de sesquilinguismo torna-se especialmente proveitosa para a Galiza, pois com pouco esforço podem-se adquirir altas competências nas variedades galega, portuguesa, brasileira e inclusive africana do mesmo sistema linguístico galego-português, além da possibilidade de logo ampliar a competência passiva às outras línguas romances da Europa. Neste sentido, as aulas de língua galega nos diferentes níveis do ensino obrigatório poderiam incluir o estudo das diferenças a respeito do português europeu, do português brasileiro e das modalidades africanas, além da generalização do estudo do português como língua estrangeira. Desta forma reforçar-se-ia o próprio galego e socialmente visualizar-se-ia a sua utilidade como língua de projeção internacional. Portanto, independentemente da norma em que se escreva o galego –aspecto contudo de grande relevância e definidor por si próprio de um espaço intercultural partilhado–, o português pode converter-se num importante instrumento de ajuda para a revitalização do idioma da Galiza.
4. O português como solução para o galego
Já no movimento galeguista do século XIX eram muito frequentes as alusões à vinculação entre galego e português na procura de uma melhor valorização do primeiro, para legitimar a tentativa de o elevar à categoria de língua literária, para conseguir que se convertesse em matéria de estudo, para frear o processo de perda de uso e, em resumo, para reivindicar a sua utilização em todos os âmbitos (Hermida 1992: 117). Se na primeira parte do século XX se vai insistir no argumento da identificação entre o galego e o português na procura do prestígio do primeiro, na segunda metade do século vai desatar-se uma polémica de grande profundidade e interesse para o galego. Tomando por assente que o galego e o português (ou galego-português) derivam do romance galaico formado na antiga Gallaecia por evolução nesse território do latim vulgar (Freixeiro 2002: 19-51), discute-se se ainda estamos perante uma mesma língua ou se a separação progressiva entre galego e português conduziu à divisão em duas línguas diferentes. Na altura de 1973 vai estabelecer-se publicamente a controvérsia entre duas posições defrontadas: uma que propugna o português como modelo do galego culto e outra que procura uma via própria para a fixação desse modelo; a primeira é defendida por Rodrigues Lapa (1979: 53-65) e a segunda acha-se recolhida na imediata réplica de Ramón Piñeiro (1973). A visão do primeiro era partilhada por uma parte importante da intelectualidade galega, mas também outra parte reagiu contra essa proposta. Este debate sobre o modelo do galego culto desloca-se no final do século XX e primórdios do XXI para o interior da própria Galiza, conectando com o que já se produzira na segunda metade do XIX e na primeira parte do XX, ainda que agora mais achegado ao plano prático, pois dele vão surgir diferentes propostas normativas, umas reintegracionistas em diferentes graus e a não-reintegracionista.
Por ser esta já velha polémica entre reintegracionismo e não-reintegracionismo um tema plenamente instalado na sociedade galega e com as posições bem delimitadas entre os partidários de um ou de outro, é de interesse a opinião que desde fora dá um experimentado linguista como o professor I. M. Roca, da Universidade de Essex. No já referido artigo (Roca 1997), que significativamente dedica à memória de Ramón Piñeiro, começa por afirmar que a língua galega está moribunda e que necessita com urgência de uma mudança radical para evitar a extinção. Faz a seguir um percurso pelo passado e pelo presente da língua galega para tirar a conclusão de que a Galiza histórica está morta ou a ponto de morrer, e com ela essa Galiza campesina tradicionalmente galego-falante, e que a acelerada desintegração interna do galego como resultado das interferências da língua dominante, própria das línguas moribundas, e o seu esgotamento externo também acelerado como consequência de uma constante perda de falantes, anunciam a sua morte iminente[7]. Apresentado este texto em 1994, transcorreram 20 anos e a evolução sociolinguística parece caminhar na direção marcada pelo autor, como antes se viu.
Tenta este estudioso adivinhar o futuro da língua galega, para o qual parte da consideração de a maioria das pessoas galegas não estar verdadeiramente interessada na sua sobrevivência por o velho idioma rural resultar disfuncional no mundo moderno. Também estima que uma língua morta não pode ser revitalizada, contrapondo o exemplo do hebreu, que para ele nada tem que ver com o galego, com o caso mais próximo e válido do irlandês, cuja inequívoca experiência lhe dá pé para afirmar que um processo de substituição linguística não pode ser detido desde cima. A partir de aqui encara a definição do galego e a sua sempre discutida relação com o português. Para ele o galego é o português do norte, como o português é o galego do sul, com a peculiaridade de que a variedade setentrional evoluiu mais próxima do espanhol; além disto, a ortografia oficial do galego e a sua língua literária distanciaram-se deliberadamente das correspondentes portuguesas.
Tendo isto em conta e dando por imparável o processo de desaparecimento do galego tradicional, e portanto natural, Roca (1997: 480) só acha três vias realistas de escolha: completar o atual processo de substituição do galego pelo espanhol, manter durante um período não muito longo a ficção da viabilidade do galego artificial como se fosse tão galego como o galego natural, ou reconhecer ativamente o galego como um componente do complexo dialetal português. As duas primeiras hipóteses conduziriam a que o galego natural continuasse a perder falantes durante mais umas poucas décadas até que só ficasse dele um punhado de eruditos apoiados por umas poucas instituições e algumas cátedras universitárias, acabando por desaparecer. A outra rota possível, a opção terceira, pressupõe o reconhecimento por parte dos galegos de um lugar e de um papel para o galego no firmamento do português. Isto implicaria de entrada que a maioria dos galegos continuaria a ter ou considerar o espanhol como a sua língua, uma minoria decrescente continuaria a falar o galego natural e outra pequena minoria continuaria a cultivar o standard ou galego artificial, de modo que não se produziria nenhuma mudança repentina na situação. Ao mesmo tempo, a ‘intelligentsia’ far-se-ia gradualmente competente em português, que conviveria com o seu natural ou adquirido galego, como acontece com casos similares em muitos outros lugares da Europa e do mundo.
As vantagens desta opção residiriam no acesso a uma comunidade de 200 milhões de falantes estendidos por quatro continentes sem por isso renunciar à outra comunidade de espanhol-falantes, de maneira que um bilinguismo mais ou menos perfeito asseguraria a comunicação com praticamente 500 milhões de pessoas no mundo, uma quantidade comparável com a de falantes de inglês. Evidentemente, o caminho empreendido pela ‘intelligentsia’ deveria ser seguido pelo ‘stablishment’ político, que implementaria políticas apropriadas, em particular o ensino do standard português, introduzido conjuntamente com o ensino atual do galego “as two ends of one and the same spectrum” (Roca 1997: 483). Recalca o autor que a sua proposta não é substituir o galego pelo português, mas acrescentar este ao repertório linguístico das pessoas galegas, ou quando menos àquelas que desejarem aproveitar esta oportunidade única para ampliarem o seu horizonte linguístico, cultural e se calhar também social e económico. Isto poderia incentivar a transmissão do galego natural às novas gerações e inevitavelmente este iria mudando e mergulhando dentro do português standard, mas de modo gradual e espontâneo como parte da vida natural da língua[8].
Esta proposta do professor I. M. Roca, que no seu momento não concitou a atenção do estamento linguístico oficial na Galiza seguramente por a considerar muito próxima do reintegracionismo tão doestado nas duas últimas décadas do século XX, começa hoje a ser considerada, embora seja parcelar e subrepticiamente, por alguns linguistas que estiveram sempre muito afastados dos postulados reintegracionistas. O próprio professor se põe à margem das disputas entre reintegracionistas e isolacionistas, e pretende emitir um juízo puramente científico. Em confronto radical com a opinião de Ramón Piñeiro, afirma que precisamente para não renunciar ao galego é necessário afastá-lo do castelhano e virá-lo para o português, “at present a sine qua condition for its survival” (Roca 1997: 485). Invoca mesmo a sua capacidade investigadora para proclamar solenemente que não há futuro para o galego, nem sequer a curto prazo, se não começa urgente e veementemente a transformar-se em “portugalego”, quiçá também na própria denominação. Acaba, pois, por coincidir com o movimento reintegracionista, a achegar-se inclusive às posições da Academia Galega da Língua Portuguesa criada há poucos anos.
Partilha portanto I. M. Roca com o movimento reintegracionista a opinião de que a virada do galego para o português é condição imprescindível e solução única neste momento para a sobrevivência do galego. Tal posicionamento, ainda que no seu momento tenha sido particularmente ignorado, hoje começa a surgir timidamente, como se viu, em setores vinculados com os postulados linguísticos oficiais. A gravidade dos dados sobre a deriva da língua galega talvez seja a que aconselha esta nova olhada para o português, juntamente com o novo marco europeu de relações entre a Galiza e o norte de Portugal através do Eixo Atlântico e o contexto geral de globalização em que se movem os povos. Com todos os matizes precisos, talvez já convenha não esperar mais e começar a dar os primeiros passos na mesma direção que sonharam os galeguistas de outrora. Quiçá o galego não vá morrer tão pronto como teme o professor Roca, mas o seu continuado declive exige medidas contundentes que o evitem. O recurso ao português, bem como simples ajuda, bem como tábua de salvação, deve ser já ativado desde as esferas oficiais.
Um passo positivo neste sentido parece ser a admissão a trâmite no Parlamento galego em 2013, por unanimidade, da Iniciativa Legislativa Popular que leva o nome do ilustre galeguista Valentín Paz Andrade, convertida em lei em março de 2014 após um processo negociador em que o Partido Popular rebaixou algumas das expetativas. Ora, falta por ver se há vontade real de a levar a cabo, sobretudo por parte do Governo galego; o de Madrid, com certeza, nunca vai estar especialmente interessado em favorecer um achegamento do galego ao português. Aliás, a via de aproximação ao português mediante a melhora da qualidade linguística, que se vem defendendo desde práticas normativas oficiais (Sanmartín 2009, Freixeiro 2009), está a encontrar eco no âmbito mais definidamente reintegracionista, que também acha possível avançar por esse caminho. Tratar-se-ia em definitivo de transitarmos do “galego-castelhano para o galego-português” tanto pela via rápida (Fagim 2010)[9] como aproveitando e melhorando as velhas estradas existentes, isto é, sendo reintegracionistas desde a norma oficial (Freixeiro 2006: 144-148), “sen que a familia saiba” (Maragoto 2013). O esforço por melhorar a qualidade linguística também pode ser uma estratégia útil e eficaz para conseguir esse “galego converxente” que inteligentemente propõe este autor: “Usar un estándar de calidade é, para nós, como xa terás notado, o mesmo que usar un modelo de lingua converxente co portugués e estábel fronte á presión do castelán” (Maragoto 2013: 21). Contudo, nessa viagem do galego para o galego-português não se deve esquecer a presença de espanholismos no português que o galego não tem, do qual nos está a advertir ultimamente o professor Fernando Venâncio (2007, p. e.), e que não seria lógico reproduzirmos: para que repolho ou cavalheiro quando repolo e cavaleiro estão plenamente vigorantes na Galiza?
5. Conclusão
O galego é hoje uma língua em perigo pela pressão abafante do espanhol num contexto geral de globalização que joga em contra das línguas minorizadas. Para tentar superar esta situação a aposta no português torna-se imprescindível, bem seja como uma ajuda para poder transmitir a utilidade da língua própria a uma parte importante da sociedade galega que nem é reintegracionista nem se sente comprometida com o galego, bem seja como a solução em que o movimento reintegracionista e uma parte destacada do galeguismo e do nacionalismo acredita para garantir o futuro do idioma. Um melhor conhecimento do português e uma relação intensificada entre a Galiza e Portugal, bem como uma maior presença e prestígio do Brasil no concerto mundial como grande potência emergente, acabarão por fazer visível na sociedade galega a identidade fundamental entre as variedades linguísticas galego-portuguesas e a conveniência de uma maior confluência com elas, também ortográfica. Desta forma derrubar-se-iam igualmente preconceitos ainda vigorantes relativamente à falta de utilidade do galego. Ao mesmo tempo, a melhoria da qualidade deste, para cuja consecução o português deve operar como referente inescusável, torna-se uma estratégia adequada tanto na perspetiva de garantir o seu futuro como de o aproximar das outras variedades do sistema.
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[1] É de interesse o comentário destes dados que se realiza em Monteagudo / Kabatek / Fernández (2004: 129-162). Com base no mesmo mapa, Iglesias Álvarez (1999: 33) tira em conclusão que as pessoas galego-falantes habituais no mundo rural são 87.2%, nas vilas 65.4% e no mundo urbano 42.7%.
[2] Esta é a situação hoje dominante na Galiza e, com o nome de ‘bilinguismo harmónico’, foi também a doutrina linguística seguida pela maioria dos governos galegos desde a implantação do sistema autonómico no Estado espanhol.
[3] http://portal.unesco.org/ci/en/ev.php-URL_ID=28377&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html
[4] Como dissera o professor Coseriu (1989: 800), não é que o galego seja português, é o português o que é galego.
[5] Veja-se MSG-04 (2: 52), onde se fala de uma “forte caída no rural, que passa do 55.3% ao 40.7%”.
[6] Contudo, não é objeto deste trabalho analisar um tema tão debatido e polémico como o processo de elaboração de um standard para o galego, nem as correntes ideológicas e estratégias sócio-culturais postas em jogo; neste sentido pode ver-se Torres Feijó (2000) ou Samartim (2004, 2005), entre outros trabalhos destes autores. Para uma breve síntese do percurso da ortografia galega veja-se Freixeiro (2002: 144-154); para uma análise mais profunda do conflito normativo desde duas perspetivas diferentes, reintegracionista e isolacionista, veja-se Herrero Valeiro (2011) e Sánchez Vidal (2010). Para uma análise teórica da variação linguística é de grande interesse Sánchez Rei (2011).
[7] A fórmula que o autor utiliza é: ‘Accelerated internal desintegration + accelerated external depletion = imminent death’ (Roca 1997: 465).
[8] De modo similar a como na atualidade o galego se está a misturar com o espanhol e a perder a ligação com o português (Roca 1997: 484). Convém lembrar aqui a afirmação de Rafael Dieste (1981: 34) de que quanto mais galego for o galego, mais se parecerá com o português.
[9] Ajudam também a transitar desde o galego oficial para um galego mais autêntico, e portanto mais galego-português, alguns manuais publicados nos últimos anos pela editora Através, como Vasquez Corredoira (2011), Fagim / Pichel Campos (2012), Outeiro / Garrido (2012); também Garrido (2011).
Comissão Organizadora
Elias J. Torres Feijó, Presidente (Universidade de Santiago de Compostela)
Roberto Samartim, Secretário (Universidade da Corunha)
Regina Zilberman (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Cristina Robalo Cordeiro (Universidade de Coimbra)
Manuel Brito-Semedo (Universidade de Cabo Verde)
Comissão Científica
Raquel Bello Vázquez (Presidente)
Vogal Editora da Revista Veredas - Grupo Galabra-USC
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Anna Maria Kalewska (Universidade de Varsóvia)
António Firmino da Costa (CIES-IUL)
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Cândido Oliveira Martins (Universidade Católica)
Cristina Pinto-Bailey (Washington and Lee University)
Cristina Robalo Cordeiro (Universidade de Coimbra)
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Germana Sales (Instituto de Letras e Comunicação UFPA)
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Hélio Seixas Guimarães (Universidade de São Paulo)
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José Luís Jobim (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Judite de Encarnação Nascimento (Universidade de Cabo Verde)
Laura Cavalcante Padilha (Universidade Federal Fluminense)
Lourenço Conceição Gomes (Universidade de Cabo Verde)
Lucia da Cunha (Universidade de Santiago de Compostela)
M. Carmen Villarino Pardo (Universidade de Santiago de Compostela)
Manuel Brito-Semedo (Universidade de Cabo Verde)
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Regina Zilberman (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
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